terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Não sei se o animal é o mesmo, o patriotismo sim



São histórias de partir a loiça, a de Andrew Jackson e a de Trump, que ao que parece o quer imitar, ainda sem tempo de escolher a mascote, mas julgo que ele não vai contentar-se com o burro. A gravata vermelha aponta mais as suas cóleras para preferências taurinas, só que ainda se está no princípio, até pode ser que se fique também pelo burro, que para todos os efeitos é um bichinho meigo e simpático, para mais em vias de extinção, que conviria devolver ao nosso espaço, enterrado que ficou no anedotário de fabulistas convencionais. Jackson parece que teve origens mais humildes mas foi lutador e estudioso, fez cursos e negócios, cheio de espírito de competição e de raiva contra os aristocratas. As raivas de Trump são mais mediáticas, agora é tudo muito visível, por isso ele tem os seus pruridos contra os jornalistas mexeriqueiros e nisso até lhe dou razão. Jackson não teve dessas intrusões na sua vida, foi um combatente apenas, que soube conquistar o poder, coisa apetecível para toda a gente, nós por cá até temos o Tino de Rans que também se candidatou, mesmo sem burro, de que não precisou, sempre rodeado de fans. Quanto à gravata vermelha, também me lembro de a ver no nosso primeiro ministro, que se equipara aos grandes conquistadores na coragem do desafio, sem olhar a meios, donde concluo que grandes homens há por toda a parte, mesmo cá.
Mas é tempo de rever os magníficos textos que seguem, de Jorge Almeida Fernandes e de Diogo Queirós de Andrade, sobre o homem que ainda não escolheu mascote e já vai dando tanto que falar, conquanto tudo seja tão fugaz, que um dia ninguém se lembrará dele, como aconteceu com Jackson. Embora Trump se lembre.

Uma estória: Trump, Jackson e o burro
A ascensão do populismo jacksoniano foi vivida como a invasão de Roma pelosbárbaros.
Jorge Almeida Fernandes
Público, 21 de Janeiro de 2017  - Ponto de vista

Andrew Jackson (1767-1845) foi o primeiro Presidente populista dos Estados Unidos. A sua tradição ainda hoje pesa consideravelmente na cultura política americana. Um dos seus estudiosos, Walter Russell Mead, faz um paralelo entre ele e Donald Trump. “A abordagem de Trump na política externa é fundamentalmente jacksoniana: os Estados Unidos não devem celebrar grandes acordos comerciais, nem tentar difundir a democracia no mundo e menos ainda acreditar nos aliados. Devem manter um forte exército que lhes permita não depender de ninguém e perseguir o seu próprio interesse nacional. Igualmente marcante é a sua influência na política interna. Para isso devemos fazer um resumo da presidência e dos princípios que guiaram Jackson, o primeiro “plebeu” a ocupar a Casa Branca contra a “aristocracia” política da Nova Inglaterra e da Virgínia. Nascido no Tennessee, filho de imigrantes miseráveis do Ulster, foi agricultor, negociante de terras, cavalos e índios, e depois advogado. Em 1801, é eleito chefe da milícia do Tennessee com a patente de coronel e, no ano seguinte, promovido a general. Torna-se “herói” na batalha de Nova Orleães na guerra de 1812 contra a Inglaterra. Passa a ser um ídolo popular.
Eleito para a Câmara dos Representante e depois senador, candidatou-se à presidência em 1824, contra “notáveis” como John Quincy Adams ou Henry Clay. Ficou em primeiro lugar mas sem maioria absoluta no Colégio Eleitoral, o que passou a decisão para a Câmara dos Representantes. Um acordo político com Clay, que ficaria com o Departamento de Estado, permitiu a Adams ser eleito. Jackson teve quatro anos para denunciar esta “negociata corrupta”, para reorganizar o Partido Democrático e preparar a revanche. 

A “invasão dos bárbaros” 

Os whigs (futuros republicanos) tratavam por burros (jackasses) os “ignorantes” adeptos de Jackson. Este teve uma ideia genial: fez do burro o símbolo dos democratas — um animal trabalhador, nobre e teimoso, capaz de dar coices mortais nos decadentes “leões” da oligarquia. Jackson assinava e devorava os jornais populares. Conhecia melhor do que a elite os sentimentos que cresciam na opinião pública. Nas eleições de 1828 esmagou Adams e os outros adversários. Foi um sismo político. A sua investidura, a 4 de Março de 1829, foi “histórica” e descrita pelos contemporâneos como a “invasão de Roma pelos bárbaros”. Em lugar de jurar dentro do Congresso, exigiu fazê-lo no exterior do edifício perante um “mar agitado” de 10 ou 20 mil pessoas electrizadas. Algumas viajaram 800 km em carroças para assistir ao momento histórico. As pessoas não o idolatravam pelo seu programa mas por aquilo que ele encarnava: era um deles e sempre se manteve próximo do povo.
Havia a seguir a recepção na Casa Branca. Jackson montou o seu cavalo branco e partiu, rodeado pela multidão. Seguiu-se o caos. A massa entrou na Casa Branca. O Presidente teve de ser protegido para não ser esmagado. Adeptos de botas ferradas subiam para cima de móveis e poltronas de cetim para o verem. Houve um assalto à comida e às bebidas. Partia-se porcelana chinesa e manchavam-se tapetes com pedaços das centenas de libras de queijo trazidas para oferecer a Jackson. Um funcionário teve a ideia brilhante de levar para o exterior os barris de punch e cervejaA elite teve de se adaptar aos “bárbaros”. O sufrágio universal masculino foi generalizado. Nas eleições de 1824 votaram 356 mil pessoas; em 1836, 1,5 milhões; em 1849, 2,4 milhões. Jackson conseguiu uma aliança poderosa: reunir o apoio dos “pioneiros” do Oeste aos operários da nascente indústria da Costa Leste e do Centro, cuja protecção assumiu. Prometeu e conseguiu encerrar o Second American Bank, antecessor da Reserva Federal, não por ser mal gerido mas por ter excessivo poder. Para isso, teve de demitir dois secretários do Tesouro e vetar sucessivas decisões do Congresso.
O legado de Jackson tem lados mais escuros. Foi inimigo dos índios, cuja deportação em massa acelerou para dar terras ao homem branco. No Oeste, intensificaram-se os linchamentos. A herança da sua política económica de laissez faire, laissez passer abriu as portas ao capitalismo selvagem do fim do século.

O apelo jacksoniano

O credo político de Jackson pode resumir-se em poucas frases”, escrevem os historiadores Allan Nevis e Henry S. Commanger: “Confiança nas capacidades do homem comum, crença na igualdade política, crença na igualdade das oportunidades, ódio aos monopólios, aos privilégios e à selva da finança capitalista.”Jackson não deixou uma ideologia, mas sobretudo uma “tradição”. Russell Mead aponta um “código de honra” fundado em três grandes princípios: autoconfiança, igualitarismo, individualismo. Define-se melhor pelo que combate: as elites e as oligarquias. As elites queriam o primado da competência no acesso aos cargos públicos; os “burros” preferiam a lei da maioria, pois qualquer homem razoável é susceptível de participar na governação. “Os jacksonianos nunca tiveram grande respeito pelos mais educados e credenciados”, conclui Russell Mead. É fácil compreender a sedução jacksoniana — presente nos dois grandes partidos — entre os operários e nas classes médias brancas que se sentem em declínio, real ou imaginário, desde há duas gerações. Trump entendeu-o. O inimigo continua a ser a elite. E a “tirania da banca” passou a ser a “tirania da globalização que rouba os nossos empregos”. Os jacksonianos são “radicalmente igualitaristas, radicalmente pró-classe média, radicalmente patriotas e radicalmente pró-segurança social”, escreveu Russell Mead durante a campanha. “Hoje, Donald Trump é uma espécie de ecrã em branco em que os jacksonianos projectam as suas esperanças. (...) O apelo jacksoniano de Trump criou uma grande desorientação no Partido Republicano, demonstrando o abismo entre a ideologia conservadora republicana e o nacionalismo jacksoniano.”Ao contrário de Jackson, o discurso de inauguração de Trump não electrizou os adeptos. E também os Estados Unidos de hoje não são os do tempo de Jackson. O populismo nacionalista que partilham tem um alcance radicalmente diferente. Hoje, o populismo nacionalista diz respeito a todo o planeta.

O populismo no Capitólio
A América até pode voltar a ser tão grande como o novo Presidente deseja, mas o custo vai ser alto.
Público, 21 de Janeiro de 2017  - Editorial

Donald Trump não quer estado de graça. Entrou ao ataque e fez um primeiro discurso sem tons de cinzento, mostrando que o mundo até é fácil de entender desde que as vistas sejam curtas e não se olhe para lá das fronteiras.
Populista, nacionalista e a agitar o fantasma do racismo, o líder da América ainda começou por dar a entender uma aproximação à união da América, mas não resistiu ao discurso divisivo de quem não sabe ganhar. Elencou promessas que prometem restaurar a grandeza económica e garantiu que vai erradicar o terrorismo islâmico, para gáudio das multidões que encheram o Capitólio.
Com a mão na bíblia e a cabeça no Twitter, o novo Presidente fez um discurso em que misturou tiradas de livros de auto-ajuda, invocações de poderes divinos e apelos ao ódio. Tudo embrulhado numa densidade discursiva digna apenas de uma campanha eleitoral. Frases curtas, que se esgotam em si mesmas, seguidas de outras no mesmo tom, com a cadência dada pelas palmas nas pausas para respirar.
O efeito é o mesmo do conseguido em campanha: moralizar o povo para ganhar força na luta contra a elite e o poder instalado de que ele, paradoxalmente, é o máximo representante. Trump sabe que ganhou com este discurso e sabe que é ele que o pode suster nas próximas lutas. Não vão ser quatro anos fáceis: O Presidente vai lutar contra o Congresso republicano, contra a justiça, a imprensa e os próprios serviços de inteligência. E em todos os embates vai usar a lógica do “nós contra eles” – receita infalível, dogmática e fácil de apreender pela turba ululante que compra os bonés de basebol.
Com isto, os americanos abandonaram a lógica bipartidária. Não basta dizer muitas vezes América para fazer um conservador, não chega repetir a crença no povo para defender a democracia. O conservadorismo sai de cena, não pelo extremismo do Tea Party mas pelo populismo com tiques autoritários de Donald Trump. Nesse sentido, os Estados Unidos são mais uma peça no dominó populista que tem varrido as democracias ocidentais e que pode ter os próximos desenvolvimentos na Holanda e em França. 
A partir de hoje, os EUA escolheram estar contra a globalização e a favor de um mundo com fronteiras. Um mundo contra a diferença, contra o clima, contra o comércio livre e contra a estabilidade. A América até pode voltar a ser tão grande como o novo Presidente deseja, mas o custo vai ser alto.

domingo, 29 de janeiro de 2017

E tudo foi dito



O artigo de António Barreto está o máximo de eficiência discursiva, quer ao nível da mensagem, e a sua sucessiva progressão argumentativa, quer ao nível do estilo, simultaneamente pausado e arrebatado de virulência crítica, e uma ironia de exaltação quase épica, em que um motivo de ignorância generalizada, desta vez aos repórteres televisivos, ou aos críticos partidários é acentuado, na referência à banalidade excitada e monocordicamente repetida e grotesca dos assuntos excitantes, a lembrar o Hissope de António Dinis da Cruz e Silva e a “espantosa guerra” que ele “excitou na Igreja de Elvas”, por uma questão de indigente e sebáceo motivo de ausência da conveniente vassalagem a um bispo visitante da Sé, a quem foi negada a deferência da aspersão com o hissope.
Não, não vale a pena confirmar. António Barreto diz tudo o que devia ser dito, de forma literariamente trabalhada, em que a acumulação dos elementos analíticos, de contrastes e paralelismos acompanham um pensamento de indignação impotente, que é pena não surta efeito nos programadores  televisivos, nem nos repórteres jornalísticos, que aparentemente tiraram um curso superior para se revelarem na mais completa e atrevida penúria expositiva que a frase seguinte resume:Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo.”
Por isso, melhor será relermos Garrett, na sua paixão de tormenta, como escape à indignação exposta magistralmente por António Barreto, pela escassez da notícia do mundo nas nossas televisões - a menos que ela seja vultosa em mortes e suas repercussões - e com isso ignorarmos as questões políticas ou noticiosas, tratadas, na nossa casa pobrezinha, sem o necessário estudo e mestria.
É apenas um escape, a leitura de um poema de paixão, na sua sequência emotiva, de um presente dolorosamente sofrido, transformado em “inferno de amar”, na primeira estrofe,  um passado pacífico sem arrebatamento amoroso na estrofe seguinte, o passado próximo do encontro fatal com a pessoa do trocadilho luz, transmissora da vida verdadeiramente significativa, na terceira estrofe. Simplicidade e arte, neste escape veemente de um poeta intimista que, usando os truques jornalísticos noticiosos dos interrogativos quem, como, quando, nos põe igualmente a nós, a interrogar-nos sobre o porquê da nossa constante e cada vez mais perversa penúria, nos tais “directos” televisivos:
Este Inferno de Amar
Este inferno de amar - como eu amo! -
Quem mo pôs aqui n'alma... quem foi?  
Esta chama que alenta e consome,
Que é a vida - e que a vida destrói -
Como é que se veio a atear,
Quando - ai quando se há-de ela apagar?

Eu não sei, não me lembra: o passado,
A outra vida que dantes vivi
Era um sonho talvez... - foi um sonho -
Em que paz tão serena a dormi!
Oh! que doce era aquele sonhar...
Quem me veio, ai de mim! despertar?

Só me lembra que um dia formoso
Eu passei... dava o sol tanta luz!
E os meus olhos, que vagos giravam,
Em seus olhos ardentes os pus.
Que fez ela? eu que fiz? - Não no sei;
Mas nessa hora a viver comecei...         Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'

As notícias na televisão magistral
António Barreto
DN, 25/1/17 - Sem Emenda
É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional.
Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol.
Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano.
Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez.
É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega.
Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.
A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga.
Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.
A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor!
Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Saúde para P.B.



Chegou-me por email, mandou-mo o meu filho João e achei graça. Já fui colega do Pedro Barroso, talvez ainda nos anos 70, num dos liceus da linha, encontrámo-nos num júri de exames orais, era ele presidente de júri, sem funções de avaliador, apenas estava ali como membro de autoridade e construtor de ilações, talvez para as suas canções sardónicas. Percebi, pelo breve diálogo que com ele mantive, que era dos seres privilegiados que vivia em esferas de intelectualidade habituadas a julgar e a interpretar, ainda que só as modulações de voz ou os jeitos do parceiro que, ao lado, interrogava as criancinhas. Nessa altura ainda não o conhecia como cantor, mas julgo que já era conhecido, pois lembro-me de umas colegas pertencentes à mesma esfera de intelectualidade, verdadeira ou falsa, cantando, sorridentes e provocadoras, um pouco mais tarde, da canção “Cantar brejeiro” , o excerto malandro “Olha a perninha da menina a dar a dar”.
Comecei a ouvi-lo, sobretudo na Rádio, e sempre me admirei por não ser mais solicitado para as televisões, com as suas canções poderosas, de mensagem e interpretação, numa voz perfeitamente modulada, tantas vezes provocatória, de quem morde na vida.
Procurei-o na internet e leio que também a doença o agarrou. Transcrevo o excerto da Internet, desejando que consiga vencer o seu problema. Julgo que sim, Pedro Barroso é dos lutadores com garra. O poema “O Cerco”, que é recente, mostra bem essa garra, os convencionalismos, que também se apoderam das camadas intelectuais, nas atitudes provocatórias de inversão das normas, não o afectando a ele. Mas importante é que consiga ultrapassar a sua doença física.
O texto do email:

Não consegue ser "gay" mas sente-se bem assim
Peço desculpa se algum dos meus prezados correspondentes se sentir "incomodado" com a declaração do Barroso.​ Cada um usa o seu corpo como quiser. Isto é, às vezes quer e não pode. Mas isso já são contas de outro rosário...
Até que enfim, alguém começa a remar contra a onda!!!   
Cantor Pedro Barroso confessa que não consegue ser “gay” mas que se sente bem assim
POEMA
O cerco
Venho aqui pedir desculpa
de não ser evoluído,
apesar destas campanhas
na rádio, na televisão,
em toda a parte, insistindo
na urgência do assunto…
Eu não consigo gostar;
- não consigo mesmo, pronto.
Sei que pertence ser gay,
toda a gente deve ser.
Mas eu, lamentavelmente
não sou como toda a gente;
Como aconteceu... não sei,
peço desculpa por isso,
mas confesso: sou… diferente.
Sei que vos pode ofender
esta minha enfermidade,
pois um gajo que assim pensa
hoje em dia, não tem nexo;
deveria ser banido,
expulso da comunidade.
É uma vergonha indecente
Gostar de mulher, ter filhos
Casar, afagar, perder-se
Com pessoa doutro sexo!
Uma nojeira repelente;
Dar-lhe, até, beijos na boca
em público! E declarar
Esta sua preferência
Que eu nem sei classificar!
Tenho uma vergonha louca
E desejo penitência
por tal desconformidade,
retardamento, machismo,
doença, fatalidade!
Já tentei tudo: - inscrevi-me
em saunas, aulas de dança
cursos de perfumaria
origami, greco romana,
ioga - para ter ousadia
boxe - p’ra ganhar confiança...
Mas quando chega o momento
De optar… sou… decadente,
Recorrente e insistente.
Opróbrio raro e demente,
Ver uma mulher seduz-me,
Faz-me vibrar, deslumbro.
Vê-la falar, elegante;
Vê-la deslizar, sensual
Como vestal, deslumbrante
Seu peito assim, saltitante
Sua graça embriagante
olho com gosto, caramba,
lamento ser tão ...normal.
Mas eu confesso que sinto
- neste corpo tão cansado
Que da vida já viu tanto...
Ainda sinto um desejo
Que m’ envergonha bastante
Por ser já tão deslocado
tão antigo, assim tão fora
do mais moderno critério.
Valia mais estar calado
Mas amigos, já agora
Assumo completamente:
- Tenho esse problema sério.
Nunca integrarei partidos
Onde não sou desejado.
No planeta das tais cores
não tenho dia aprazado,
nem bandeira, nem veado,
nem “orgulho” especial!
Sou mesmo do “outro lado”
dito “heterossexual”
e já me chateia um bocado
Ter que dizer, embaçado,
que me atrai o feminino
e sou apenas “normal”!
- e, portanto, avariado.
Mas… mesmo assim, - saudosista,
imensamente atrasado,
terrivelmente cercado,
conservador nesse ponto,
foleiro, desajustado...
perdoai-me tal pecado
- Não me sinto ...assim tão mal!

O texto da Internet:
Cultura | 12-05-2016
Cantor Pedro Barroso confessa que não consegue ser "gay" mas que se sente bem assim
Afastado dos palcos deu prova que a quimioterapia não lhe afectou o sentido de humor.
O cantor, compositor e poeta, Pedro Barroso, que se encontra temporariamente afastado dos palcos, devido a doença, deu prova em verso, esta Quinta-feira, 12 de Maio, na sua página do Facebook, que a quimioterapia não lhe afectou minimamente o seu conhecido sentido de humor, nem a inspiração. Num poema ligeiro, Pedro Barroso, provocou as mais diversas reacções ao declarar de forma irónica que não consegue ser "gay" mas que, apesar disso, não se sente mal.
Numa breve conversa telefónica com O MIRANTE, o conhecido "trovador" diz que tem imensos amigos com outras preferências sexuais e que nunca gostaria menos de alguém por isso e lembrou, a propósito, que foi amigo do poeta José Carlos Ary dos Santos e do actor e encenador escalabitano Mário Viegas, homossexuais assumidos.
Os versos irónicos que escreveu diz, são a propósito da pressão que leva a que certos temas como o casamento gay ou como a adopção por casais do mesmo sexo sejam prioritários em termos de agenda política, em relação a matérias ultra preocupantes como o desemprego, a injustiça fiscal gritante, o terrorismo, o colapso do sistema bancário. "Sou belenenses e não gosto que me pressionem com a superioridade e o orgulho benfiquista, por exemplo. Sejamos todos felizes dentro da nossa condenada condição humana. Mas não me chateiem; não me rodeiem; não me obriguem; não me cerquem. Pim!".
E ainda a propósito da "nossa condenada condição humana", sem se alargar muito em explicações, disse que, como muitos milhares de pessoas luta contra o cancro para tentar voltar a estar em palco com os seus músicos, junto ao seu público.