Dois textos de João Miguel
Tavares que o identificam como pessoa bem formada, pois, reconhecendo embora
tantos erros e defeitos na figura de Mário Soares, soube valorizá-lo naquilo
que nele foi mais significativo para a nação portuguesa - o ter sido o padrão da
tal liberdade que ele sempre procurou e que implantou no país. De resto, pouco
mais me pareceu ter sido, limitado nos seus discursos que não ultrapassavam o
que se lhe pediu que dissesse, homem contente, que viveu com esses palavrões-chave
do nosso status: democracia e liberdade.
Lembro-me duma entrevista a
Felipe Gonzalez e a ele próprio, em que o discurso do primeiro ministro
espanhol logo se superiorizou em conteúdo programático e eu senti íntima
vergonha com o balbucio repetitivo de Mário Soares a respeito das conquistas do
25 de Abril, único alvo buscado, ao que parecia. E de facto, as tais democracia
e liberdade logo fizeram despenhar o país no caminho da penúria, provavelmente
por má direcção do bote, que tantos marinheiros se aprestaram a conduzir, nunca
sem proveito próprio, contrariamente ao mesquinho do Salazar que do erário
público apenas colheu aquilo a que tinha direito, ao que se diz, como
funcionário probo de um país de penúria endividada, que convinha erguer do
caos económico.
Mas são águas passadas. Mário Soares,
quanto a mim, não foi mais do que o semeador de uma viragem de que foi símbolo,
embora limitado, viageiro convicto, à custa do património, contador de
histórias, avidamente colhidas por quem se lhe soube colar à ilharga, em
subserviência admirativa ou apenas interesseira.
De qualquer maneira, também
reparei na falta de comparência do povo português à última chamada, o que me
fez pensar que o povo português é razoavelmente são de espírito. De facto, a
Amália Rodrigues teve um funeral mais apoiado pelo amor de todos, mesmo dos que
assistiam pela televisão. Apesar das lágrimas sinceras de muitos, embalados
pelas referências que os meios mediáticos amplamente propalaram, escondendo
sempre os lados negativos, endeusando a figura do bom “pastor”, só
aparentemente paternalista, consumido que foi de ambição e azedume ou capricho disfarçados
pelas conveniências sociais, que nos anos finais completamente se desmanchou em
discursos pueris, convenientemente aceites pela imprensa servil.
De toda a maneira, concordo
com João Miguel Tavares. Tão arreigado temos o sentimento da sua
representatividade na transformação da nação, que também entendo que devíamos
ter sido mais solidários, assistindo-o no último cortejo. Afinal, eu própria
também chorei quando, de chofre, a minha filha me informou de que Mário Soares havia
morrido, meia hora antes. Julgava-o imortal. Mas vai sê-lo.
Lembremos, uma vez mais, e em
homenagem, Reinaldo Ferreira:
Receita para fazer um herói
Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.
Por que foi tão pouca gente ao
funeral de Soares?
É muito triste esta incapacidade de nos sentirmos em
dívida para com os melhores de nós. E de lhes prestarmos o justo tributo
enquanto tal.
João Miguel Tavares
Público,
12 de Janeiro de 2017
Não
faltou nada ao funeral de Mário Soares. Honras de Estado. Três dias de luto
nacional. Fotografias espalhadas pela capital. Altos dignitários. O rei de
Espanha. Uma cerimónia impecavelmente organizada. Momentos íntimos e
comoventes. A voz de Maria Barroso a declamar “Os dois sonetos de amor da hora
triste”: “Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro/ Do que tu – não deixes
de fechar-me os olhos / Meu Amor.” O belíssimo discurso de Isabel Soares. As
televisões e as rádios em directo. Jornais e revistas desdobrando-se em
homenagens. Não faltou nada. Excepto gente.
A
desproporção entre a cerimónia oficial e a cobertura mediática, por um lado, e
o número de pessoas na rua, por outro, foi tão gritante que Ferro Rodrigues
veio justificar a falta de povo com o facto de ser “dia de trabalho” e de
muitos estarem ali “em pensamento”. Mas quando os campeões europeus chegaram a
Portugal a 11 de Julho também era dia de trabalho, e nem por isso o país deixou
de sair à rua. “Hoje é feriado!”, proclamou Éder na Alameda. Não era. Mas
parecia. Com Soares não se passou nada disso, e o argumento de que só o futebol
faz mover multidões não colhe: o funeral de Cunhal, em 2005, foi acompanhado
por um banho de gente, e as fotos da Avenida Morais Soares apinhada de
bandeiras vermelhas impressionam. Como justificar este abismo na adesão
popular?
Claro:
existe a extraordinária capacidade de mobilização do PCP, e o facto de a
devoção comunista estar mais próxima de um fenómeno religioso do que político.
Mas existe um outro problema, mais complexo, e, a meu ver, mais grave: a
incapacidade da nossa democracia em produzir os seus próprios heróis. Talvez
como reacção ao excesso de ganga nacionalista do Estado Novo, e ao facto de a
guerra colonial ter sido assimilada como desonra (e com boas razões para isso),
nós olhamos para o século XX português e não encontramos vestígio de heróis
políticos ou militares. Em parte, porque eles não existem. Em parte – Salgueiro
Maia será o caso mais evidente – porque não fomos capazes de os construir e
promover.
A
monarquia acabou sem glória. A Primeira República foi um caos. A participação
na Primeira Guerra foi patética. O Estado Novo foi uma ditadura de 40 anos. E a
guerra colonial foi injusta. Qual é, afinal, o último grande herói político ou
militar português? Talvez Mouzinho de Albuquerque, e mesmo esse matou-se a tiro
na Estrada das Laranjeiras. Os meus filhos estão condenados a viverem com os
heróis dos outros. Eles sabem quem foi Lincoln, Churchill e Roosevelt, em breve
saberão quem foi De Gaulle ou Luther King, mas nenhum deles é capaz de nomear
um herói português com menos de 400 anos.
Por
muito que nos desmereçamos enquanto povo, não é possível que em meio milénio
não tenhamos produzido figuras admiráveis e merecedoras da nossa devoção.
Simplesmente, não fomos capazes de as inserir na narrativa do novo regime, seja
através de livros, filmes, séries, monumentos, celebrações ou museus. Há um
meio termo entre a propaganda patriótica à António Ferro e o nada – mas nós
ainda não o encontrámos. Talvez seja o trauma pela perda do império. Talvez
seja a falta de sucesso económico em democracia. Talvez seja a eterna
desconfiança face ao Estado e a ausência de uma verdadeira sociedade civil. Não
sei o que é. Mas sei que é muito triste esta incapacidade de nos sentirmos em
dívida para com os melhores de nós. E de lhes prestarmos o justo tributo
enquanto tal.
O meu Soares não foi o melhor Soares
Soares não teve sempre razão, mas teve razão nos
momentos fundamentais, e essa é uma dívida inestimável que o país tem para com
ele.
João Miguel Tavares
Público,
10 de Janeiro de 2017
Quando
comecei a ouvir fado e a gostar de fado, no final dos anos 80, Amália Rodrigues
era já uma sombra da extraordinária artista que revolucionara a canção de
Lisboa nas décadas de 50 e 60. Os seus espectáculos ao vivo eram penosos e o
que a minha geração conhecia dela eram as paródias nos programas do Herman –
cabeleira postiça, braços abertos, queixo levantado, “palminhas, palminhas”. A
grande Amália, a maior artista portuguesa do século XX, tinha de ser procurada
nos discos antigos.
Quando
comecei a escrever artigos de opinião, em 2003, Mário Soares era já uma sombra
do extraordinário político que esteve na primeira linha da luta pela democracia
e pela liberdade nos anos quentes da revolução, e que nunca abdicou de sonhar
com um Portugal europeísta. A guinada à esquerda da década final da sua vida é
tão penosa quanto os últimos espectáculos de Amália, e tenho muita pena que
tudo o que eu próprio escrevi sobre Soares tenham sido textos ácidos e críticas
virulentas. Ele incomodava-me tanto mais quanto o seu presente me parecia em
total contradição com o seu passado. O grande Soares, o maior político da
democracia portuguesa, pertence a uma História à qual já pouco assisti – mas é
lá que ele tem de ser procurado.
Não
digo isto por desrespeito à sua memória. Bem pelo contrário: é para que a minha
geração, e as gerações mais novas do que a minha, que apenas conheceram ao vivo
o fervoroso defensor de Hugo Chávez e de José Sócrates, mais os discursos
apocalípticos sobre o Portugal da troika, a caminho de uma nova ditadura
(dizia ele) e onde já havia mais pobreza do que no tempo do Salazar – o Soares
da Aula Magna, enfim, e de tantos artigos inconcebíveis no Diário de
Notícias –, esse Mário Soares não é aquele que mais importância tem, nem
aquele que vai ficar nos livros de História. Pelos jornais, pelas rádios e
pelas televisões só têm praticamente desfilado pessoas que o conheceram nas
décadas de 60, 70 ou 80. Abaixo dos 40 anos de idade, e muito em particular à
direita, aquilo que eu noto é uma cortina de silêncio incómodo, composta por
gente que não está para o elogiar porque não suportou os seus últimos 20 anos
de vida, mas também não o quer criticar por respeito à sua morte.
Ora,
Soares merece muito mais do que esse silêncio compungido, atitude que sempre
declinou. Há que recusar a tese idiota de que Soares teve sempre razão, mesmo
quando não o compreendíamos – porque Soares nem sempre teve razão, e no final
da vida quase nunca teve razão –, tal como há que recusar a menorização do seu
papel histórico, como se não tivesse sido ele a construir a primeira linha de
resistência ao comunismo. Soares não teve sempre razão, mas teve razão nos
momentos fundamentais, e essa é uma dívida inestimável que o país tem para com
ele. Claro que é possível compor uma longa lista de amigos desagradáveis,
favores suspeitos e casos mal explicados, tal como é possível considerar que
Soares sempre agiu como pai do regime, e que – pior – o regime sempre o tratou
como pai, dispensando-o de um escrutínio que reservava aos outros. É triste,
mas é humano. O mais importante está longe de ser isso. O mais importante é
aquilo que está escrito na nota que o Partido Comunista Português escreveu
acerca da sua morte. Soares, lamenta o PCP, destacou-se “no combate ao rumo
emancipador da Revolução de Abril”. Acreditem: não há mais belo obituário. É
por causa desse combate que todos devemos tanto a Mário Soares.
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