Na
onda de espiritualidade favorecida pela leitura da descodificação da Bíblia, em
tradução directa do grego, pela palavra elegante e criteriosa de Frederico
Lourenço, aliada à quadra natalícia
que acabámos de passar, senti-me mais motivada para a leitura dos textos de Frei
Bento Domingues publicados no Público, aos domingos, que
geralmente ignorava, e encontro o que segue, de 30 de Novembro passado. A forma
simples mas desassombrada de nele criticar o fundamentalismo religioso, mesmo
da Igreja católica, despertou-me a curiosidade sobre a pessoa e procurei na
Internet algum esclarecimento sobre Frei Bento. Leio que Frei Bento Domingues foi e é um religioso
pouco submisso, mesmo aos convencionalismos da tradição católica - de
obediência estrita aos ditames rigorosos e hirtos dos dogmatismos cristãos - o
que confirmou a impressão colhida na leitura do artigo, sobre um espírito livre, com propostas
próprias que passam pela reflexão das suas muitas fontes de conhecimento, como
revela no seu texto - “Não invocar
o nome de Deus em vão”. Condena os fundamentalismos disparatados e
medievalistas sobre os castigos divinos como forma de retaliação dos pecados,
condena os populismos políticos que levaram à eleição assustadora de Trump,
compara os textos das homilias litúrgicas com os textos de teor político do
jornal “Público” (14/11/2016), anunciadores de catástrofe.
Curiosas
e arrojadas as afirmações como “seguindo Tomás de Aquino, não temos
nenhum conceito adequado para falar de Deus. A nossa linguagem é e permanece
limitada. É uma linguagem terrestre para coisas terrestres.” ou “
é inexprimível: nós não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos,
apenas, um esplendor fraco através do mundo criado e no decurso da nossa
história no mundo, história feita de acontecimentos felizes e de tragédias. Não
é só o Deus incognoscível, mas também as expressões ou os dogmas sobre Deus que
pertencem, à sua maneira, ao objecto da fé.” ou “A auto-revelação
de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à
“Palavra de Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a
Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam
numa tradição particular da experiência religiosa.”É por isso que E.
Schillebeeckx, no uso litúrgico, utiliza, o menos possível, a conclusão solene:
“palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala assim. São
crentes que falam.” ou “A experiência cristã de Deus também não pode ser
transmitida” e finalmente “Em qualquer caso, não podemos usar
o nome de Deus em vão como legitimação das afirmações, frutos da nossa
responsabilidade ou irresponsabilidade.»
É,
realmente, um texto muito curioso, revelador de um espírito aberto e sábio.
Não invocar o nome de Deus em vão
Frei Bento Domingues
1. Apesar do Papa Francisco e das
suas intervenções carregadas de humanidade divina, o fundamentalismo
religioso, mesmo no seio da Igreja católica, não desarma. Panfletos como
o da folha dominical de uma paróquia da Califórnia - votar no Partido Democrata
é pecado mortal; declarações como a do padre italiano à emissora católica Rádio
Maria- os sismos, em Itália, são um castigo divino pelas uniões civis dos
homossexuais, ou as expressas à revista Família Cristã pela responsável da
Associação de Psicólogos Católicos - um filho homossexual é como ter um filho
toxicodependente, são afirmações que não pecam por muito inteligentes.
Infelizmente há outras mais tóxicas. Cresce um mal-estar muito vasto não só
em relação ao tom e ao conteúdo fundamentalista das homilias dominicais, como
acerca das desastradas atitudes no acolhimento aos pedidos de baptismo e de
casamento. Em certos casos, em vez de constituírem uma oportunidade de
evangelização, resultam em afastamento e azedume contra a Igreja.
Talvez
mais perigoso ainda, sob todos os pontos de vista, é o populismo político que
tomou proporções alarmantes com a eleição do pobre Trump. Geralmente, há sempre
queixas por os eleitos não cumprirem as promessas eleitorais. Neste caso, até
os republicanos gostariam que ele não as cumprisse todas. O homem é um susto e
a aliança com o Putin faz aquecer a guerra fria. A Europa, que teve momentos de
lucidez, já não tem certezas de nada. Tudo pode acontecer.
Com
perspectivas diferentes, existe uma curiosa coincidência de desassossego entre
os textos de encerramento do ano litúrgico e os textos políticos do PÚBLICO [1] desta
segunda-feira, em que escrevo.
2. Não vou regressar ao meu texto do
Domingo passado. Dizem-me que gozei com a exclusão definitiva das mulheres
ao sacerdócio, embora pelo baptismo sejam tão sacerdotes como os homens. As
minhas razões eram e são de ordem teológica. Não são apenas minhas, que não
teriam importância nenhuma. Como diz Edward Schillebeeckx[2],
seguindo Tomás de Aquino, não temos nenhum conceito adequado para falar de
Deus. A nossa linguagem é e permanece limitada. É uma linguagem terrestre para
coisas terrestres.
Deus
é inexprimível: nós não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos,
apenas, um esplendor fraco através do mundo criado e no decurso da nossa
história no mundo, história feita de acontecimentos felizes e de tragédias. Não
é só o Deus incognoscível, mas também as expressões ou os dogmas sobre Deus que
pertencem, à sua maneira, ao objecto da fé. Isto não implica, porém, de modo
nenhum, que devam ser tratados em pé de igualdade.
A
auto-revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca
temos acesso à “Palavra de Deus” de modo imediato. Estritamente falando, a
Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes
que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. É
por isso que E. Schillebeeckx, no uso litúrgico, utiliza, o menos possível, a
conclusão solene: “palavra do Senhor”, precisamente porque Deus nunca fala
assim. São crentes que falam.
Isto
significa que, se em todo o dogma uma verdade se exprime de facto, fá-lo, no
entanto, sempre de modo defeituoso e historicamente condicionado. Enquanto
expressão verbal da fé, o dogma pode mudar no decurso do tempo. A partir das
nossas questões, a fidelidade ao Evangelho e aos dogmas da Igreja pode, por
vezes, exigir de nós romper com a imagem ultrapassada do ser humano e do mundo,
na qual a verdade evangélica foi outrora expressa.
Há
aí uma missão importante de diálogo no seio do cristianismo, missão que
constitui uma missão própria para os teólogos. O que nos é transmitido a
partir do Antigo e do Novo Testamento são interpretações de experiências de
Deus. Ora, experiências não podem ser comunicadas a outros enquanto
experiência. Cada geração deve, ela mesma e de modo pessoal, fazer a
experiência. A experiência cristã de Deus também não pode ser transmitida.
Podemos apenas permitir que essas expressões e descrições se abram, em nós,
como experiência pessoal. Só a partir do ponto de falhanço de todas as nossas
palavras é que podemos falar do mistério divino. Mas nessa palavra, decifração
rigorosa e tacteio razoável no seio das possibilidades culturais de
compreensão, o Deus vivo já “se dirigiu” silenciosamente a nós, antes mesmo de
termos podido exprimir a nossa experiência. São experiências humanas que
são, no entanto, realmente suscitadas pelo Deus incompreensível, esse Deus
activo, embora não intervenha nem se imponha.
3. E. Schillebeeckx, neste texto,
como em várias das suas obras, diz as razões pelas quais um dogma pode
mudar. A sua expressão já não serve para defender o que estava em causa
quando foi formulado. Mas se um dogma pode mudar, quanto mais uma declaração
que só é definitiva porque foi declarada como tal, mesmo que pretenda
interpretar uma tradição secular.
Em
qualquer caso, não podemos usar o nome de Deus em vão como legitimação das
afirmações, frutos da nossa responsabilidade ou irresponsabilidade.
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