quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Flores para o meu pai



Se fosse vivo, o meu pai faria hoje 116 anos, mas morreu com 78, figura presente de um passado sempre vivo na nossa recordação. Mas ainda bem que já não está, poupado a uma época de mentira e despudor, de farsa pegada, muito bem descrita por dois jovens cronistas do nosso prazer de leitura jornalística, que o seriam dele também, nos seus tempos de leitura, se tal se passasse como hoje. Outras coisas viveu, afinal sem esperança já, e por isso sofreu, na crispação, em família. E por isso os dedico a ele, in memoriam, como se fossem dois ramos de flores a perfumar o seu cantinho.
Já posso crispar-me outra vez?
João Miguel Tavares
Público, 7 de Janeiro de 2017
O Presidente da República ficou desgostoso por os portugueses terem elegido “geringonça” como palavra do ano. Ele teria optado por “descrispação”. É uma escolha surpreendente de Marcelo, desde logo porque a palavra não existe. Porto Editora, Houaiss, Aurélio, Academianenhum dicionário cá de casa a reconhece. Mas o que em Cavaco seria ignorância, em Marcelo é imaginação, e “descrispação” está em linha com a bonita mensagem que nos deixou na passagem do ano, quando elogiou o “clima menos tenso, menos dividido, menos negativo cá dentro e uma imagem mais confiável lá fora”.
Estamos mais descrispados, de facto, e descrispámo-nos graças a um trabalho conjunto de Marcelo e António Costa, um a dar beijos e abraços, o outro a distribuir sorrisos, numa autêntica suruba de afectos. O resultado de tanta energia positiva está à vista. Clima menos tenso? Confere. Menos dividido? Confere. Menos negativo? Confere. Uma imagem mais confiável lá fora? Não confere. Ups, há qualquer coisa que falha nesta narrativa. Ninguém pode sinceramente dizer que o país está em 2017 com uma imagem “mais confiável lá fora”, e a prova disso é que os juros a 10 anos da nossa dívida não param de crescer. Acabámos de passar a barreira psicológica dos 4%, e nada indica que fiquem por aí. E é neste ponto preciso que a história da descrispação e do clima menos tenso, menos dividido e menos negativo se revela aquilo que realmente é: uma autêntica e descabelada fraude.
Desta fraude, nem António Costa, nem Marcelo Rebelo de Sousa, devem ser considerados inocentes no dia em que o diabo chegar – porque ele, acreditem, não vai falhar à chamada. Nós estamos há um ano a gostar de ser enganados pelos actuais governantes. Garantem que é possível safarmo-nos assim, com um regoverno cheio de reversões e falho de reformas. Muitos acreditam nisso. Mas não é possível. Quando falo em “fraude” não estou a dizer que a descrispação não exista. Pelo contrário: ela existe. Estou a dizer que não deveria existir, tendo em conta o estado lastimável em que Portugal se encontra e a sua dependência total de decisões sobre as quais não tem qualquer controlo – seja o fim do programa de compra de dívida do BCE, seja a subida de juros nos EUA. O primeiro-ministro e o Presidente da República uniram as mãos para anestesiar o país: um colocou a máscara e o outro abriu o oxigénio.
Portugal, contudo, não deixa de estar deitado na mesa de operações, dependente, incapaz de tomar decisões difíceis, semi-comatoso. Ninguém está a fazer nada por ele. A esta anestesia sem intervenção cirúrgica tem-se chamado “descrispação”. Mas serve para muito pouco e está longe de ser qualquer coisa próxima de uma cura. É mesmo só um entorpecimento momentâneo, que nos distrai e alivia. Uma bebedeira de facilidades. Uma alienação dos problemas que nunca deixaram de existir. Eles permanecem lá todos, e nem sequer estão adormecidos – o simples passar do tempo agrava os seus efeitos.
Agora que os juros chegaram aos 4% que alegadamente assustam as agências de rating, e António Costa se vê obrigado a reafirmar a sua confiança no país a partir da Índia, convinha começar a substituir o optimismo descerebrado pelo realismo lúcido, e admitir que a “descrispação” é apenas um novo nome para uma velha prática: adiar ao máximo a resolução dos problemas difíceis. Querem um conselho, caros leitores? Vejam se se apressam a crisparem-se outra vez, porque nada de bom aguarda este país.
A descrispação é uma treta
Observador,  9/1/2017
Os portugueses não gostam de chatices. E, no final do dia, talvez lhes seja mais apetecível ter um governo pior que assegure a paz, em vez de um governo melhor que só tenha de enfrentar guerras.
Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República e não o comentador televisivo (convém relembrar), discorda da escolha de “geringonça” para palavra do ano em 2016. Fosse ele a escolher, a palavra eleita seria “descrispação”. Não admira. Essa palavra é inventada pelo próprio (ou seja, não existe nos dicionários). Foi por ele utilizada várias vezes nas suas intervenções ao longo do ano (em Março, quando tomou posse, e depois, por exemplo, em Setembro, Outubro, Novembro). E, também por isso, descreve e valida a leviandade que caracterizou os bastidores políticos nacionais em 2016. A de Marcelo, sobretudo, que passou um ano a ignorar os dois pilares que suportam essa “descrispação”.
Primeiro, a exaltação de uma paz social que é, inequivocamente, artificial. Se hoje não há crispação é porque a esquerda que apoia o governo detém o monopólio da contestação social. Em 2016, deixou de haver sindicatos e associações mobilizados em protestos nas ruas, simulando representar o povo mas defendendo apenas os seus próprios interesses e a agenda do PCP. Tal como deixaram de ser ouvidos alarmismos reproduzidos na comunicação social contra a austeridade e a destruição do Estado Social – não que os problemas estejam todos resolvidos, mas porque, para esses mesmos sindicatos e associações, deixou de haver benefício em empolá-los no debate público. Ou seja, para se segurar no poder, o PS comprou a paz social. E aceitou pagar o preço: sacrificou o interesse nacional para, em determinados sectores da vida pública, entregar a governação a interesses organizados – nomeadamente revertendo reformas e prejudicando o trabalho contínuo que ministros de várias cores políticas foram construindo. Enaltecer essa paz social, sob a forma de “descrispação”, desvalorizando o seu significado e custo para o país, é alinhar na farsa.
O segundo pilar que sustenta a “descrispação” está na recusa da legitimidade de um governo de direita. Note-se que a “descrispação” se refere, forçosamente, a um estado anterior de “crispação” – o governo PSD-CDS liderado por Passos Coelho. E note-se também que ver uma vitória no actual simulacro de paz social é, paralelamente, ver uma derrota num eventual regresso da contestação. Ora, se amanhã houvesse eleições e PSD-CDS alcançassem uma maioria absoluta que fizesse de Passos Coelho primeiro-ministro, alguém duvida que a “crispação” voltaria instantaneamente? A “descrispação” não tem qualquer relação com a vontade popular. E só existirá enquanto a direita estiver na oposição e enquanto PCP e BE estiverem de mão dada com o poder. Que um Presidente da República enalteça algo que deriva desta interpretação política é leviano e irresponsável.
Vamos ao ponto. Uma coisa é ser leviano e irresponsável. Outra coisa é ser tonto. E se Marcelo sempre se ajustou à leviandade do comentário televisivo, tonto é que ele nunca foi. Afinal, farsa ou não, a “descrispação” traz sossego e diminui as maçadas – e, em Portugal, não ter chatices é meio caminho para a felicidade. Quantos empresários não preferem aturar más leis ou a ausência de reformas desde que lhes garantam uma certa paz social? Quantos pais não toleram más opções educativas para os seus filhos desde que a educação não vire palco de greves e de escolas fechadas? E quantos são os que aceitam cortes orçamentais nas suas áreas profissionais (aqueles cortes que antes denunciavam) desde que lhes dêem condições sociais para trabalhar? O ponto é este: os portugueses não gostam de chatices. E, no final do dia, talvez lhes seja mais apetecível ter um governo pior que assegure a paz, em vez de um governo melhor que só tenha de enfrentar guerras.
É esse o poder da contestação organizada – decidir pelo ruído quem deve e quem não deve governar. Um poder ilegítimo que Marcelo legitimou ao longo de todo o ano e, agora, na viragem para 2017, fazendo da “descrispação” uma conquista política. Afinal, não foi apenas António Costa quem comprou a paz, Marcelo seguiu-lhe os passos. Não sobram dúvidas que, como escreveu André Abrantes Amaral, 2016 foi o ano em que ninguém quis saber. Sim, a “descrispação” pode ser uma treta. Mas é, pelos vistos, uma treta apreciada por muita gente.

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