O
esboço biográfico de cariz histórico, de
Vasco Pulido Valente, sobre Mário Soares, é importante, naturalmente, para a
história dos feitos da nossa história, que todos gostamos de conhecer. Como
sempre, a sua pena concisa e percuciente, vai esclarecendo e informando, ora
desfazendo no passado amorfo, ao que parece, para ele, como “tempo desértico”
de má memória, de um povo amordaçado por um chefe incontestavelmente de maior
carisma, que soube preservar e defender o seu país, quer do ponto de vista
económico, quer do ponto de vista patriótico. Isto para Pulido Valente é palha,
que ele nem se dá ao trabalho de referir, riscando de um traço, com desprezo,
esse passado, tal como o lápis azul da mesa censória desse mesmo passado o
fazia com qualquer novidade de
resistência progressista.
E
assim, é, naturalmente, com simpatia, que V.P.V. vai descrevendo esse passado
de Mário Soares, que, provavelmente por não precisar de lutar pelo pão de cada
dia, se pôde entreter a infiltrar-se pelos interstícios de acesso a outros
poderes, que dele só exigiriam o blá-blá das novidades políticas, sem prestação de contas pela
actuação prestada.
Gostamos
de lhe conhecer a história, desse Mário Soares de uma rebeldia bem sucedida, responsável pelo virar de página
espectacular, numa história velha de séculos que um piparote fez ruir. Numa
boa.
O Diário de Vasco
Pulido Valente
Mário
Soares, um esboço biográfico (Parte 1)
ObservadorM14/1/2017
No
dia em que Mário Soares desembarcou em Lisboa, em Santa Apolónia, em Abril de
1974, não desembarcava sem apoios, sem um instrumento e sem um papel. Havia muita
força sob a sua aparente fraqueza.
A
carreira de Mário Soares não teve nada de particularmente notável até 1962. Como
muito boa gente começou aos vinte anos pelo PC, atraído pela aventura (e os
perigos dela), pelo radicalismo e pelo facto simples de não existir na oposição
qualquer outra alternativa. Com o PC e pelo PC trabalhou no MUD e, a seguir, na
candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. A “colaboração” com
os comunistas, se assim se pode chamar, porque ele chegou a dirigente, não
resistiu à ineficiência e à intolerância geral da seita. Em 1950, é expulso do
“Partido” por “indisciplina” e “derrotismo”.
Isto,
que lhe deu tempo para acabar de se formar em Histórico-Filosóficas e começar o
curso de Direito, também o deixou isolado e sem destino político evidente. Fora
a actividade platónica de um pequeno círculo de advogados da Baixa, não
havia nesse tempo desértico nada a que ele pudesse aplicar a sua
habilidade e energia política. De quando em quando, lá vinha um
abaixo-assinado ou protesto de personalidades, que no fundo só serviam para
actualizar os ficheiros da PIDE. A oposição foi um incómodo para a Ditadura,
mas nunca foi uma verdadeira ameaça. Certamente sem grande esperança e por puro
desemprego cívico, Soares funda em 1955, a Resistência Republicana com uma
dezena de amigos, que não se distinguiu por coisa alguma na vida política
portuguesa; e adere ao Directório Democrático Social de três figuras venerandas
da democracia (António Sérgio, Jaime Cortesão e Azevedo Gomes), que eram um
símbolo mais do que uma força.
Entretanto
o mundo mudava. Em 1958, aparece surpreendentemente a candidatura
de Humberto Delgado (com o apoio de Soares), que revelou ao melancólico país da
Ditadura a extensão e a fúria de uma boa parte da população. E, em 1962, a
chamada “crise académica”, para grande estupefacção dos próceres do
regime, veio provar que nem com os filhos da burguesia podiam contar. Infelizmente,
as relações entre os dirigentes da “crise” e Mário Soares não foram boas.
Primeiro, por culpa dos dirigentes da “crise”, que com uma ridícula arrogância
desprezavam a “velha” oposição republicana (mas não o PC). Eles mobilizavam de
um dia para o outro milhares de estudantes, tinham uma espécie de imprensa (em
stencil), tinham instalações, tinham automóveis e tinham dinheiro. E o que
tinham os democratas da Baixa, excepto 30 anos de mal empregada indignação e de
conspirações falhadas? Mas, fora isso, que já não era pouco, o pessoal do
movimento académico, quando não militava no Partido Comunista, exibia – por
competição e para defesa própria – um radicalismo que Soares já várias vezes
rejeitara. A geração de 1962 ficou por isso longe da social-democracia europeia
e do futuro PS até muito depois do “25 de Abril”.
De
qualquer maneira estas pequenas questões domésticas interessavam pouco perante
a guerra de África, que em 1961 começou em Angola. Dos políticos portugueses
com uma certa notoriedade só Soares percebeu que a Ditadura deixara de ser um pequeno
problema de um país pequeno e sem influência para se tornar um problema
internacional, em que tarde ou cedo as grandes potências se envolveriam. A
oposição já não se fazia, ou devia fazer, em Lisboa ou no Alentejo, mas na
América e na Europa, principalmente na Europa. Em 1962, Soares transformou a
Resistência Republicana em Resistência Republicana Socialista e, em 1964, criou
na Suíça a Acção Socialista Portuguesa, uma maneira hábil de se ir ligando aos
grandes partidos europeus.
Estabelecer
a credibilidade da oposição portuguesa num Ocidente anticomunista e desconfiado
era uma extraordinária tarefa para um extraordinário homem. Sem a sobre-humana
simpatia e a sobre-humana confiança de Mário Soares talvez fosse impossível.
Mas, pouco a pouco, ele conseguiu; e Salazar percebeu. O regime não se
inquietava excessivamente com a agitação da Baixa ou com um ou outro protesto
de estudantes, nem sequer com as raras greves que o PC ia promovendo. Mas
Soares falando à solta na América, na Alemanha ou em Inglaterra, era um risco
real, ainda por cima com uma guerra em curso e sendo ele advogado do general
Humberto Delgado, que a PIDE matara. Salazar não hesitou em o desterrar para S.
Tomé.
Quando
ascendeu a Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, provavelmente para mostrar
o seu duvidoso liberalismo, arranjou uma tranquibérnia jurídica para
permitir que Soares voltasse a Portugal. Voltou e imediatamente concorreu à
eleição para a Assembleia Nacional (como na altura se chamava o “parlamento”)
com uma lista de gente socialista ou próxima do socialismo, rompendo com a
tradição de “unidade” anti-salazarista sob a qual o Partido Comunista se
disfarçava sempre. Mais do que isso. Marcelo prometera eleições “honestas”
(que evidentemente o não seriam) e Mário Soares trouxe a Portugal um grupo de
inspectores da Internacional Socialista, que as declararam falsas. Dali em
diante, a presença em Portugal do homem que o denunciara em público como
mentiroso e que lhe retirara qualquer espécie de legitimidade era
intolerável para Marcelo Caetano. Ameaçando Soares com a prisão e o desterro,
Marcelo conseguiu que ele ficasse num exílio forçado até 1974. Mas perdeu
mais com esta manobra do que ganhou. Por uma vez relativamente livre, Soares
tinha tempo e meios para expandir e fortalecer a ASP, que em 1972 a
Internacional Socialista admitiu como membro pleno; e para escrever um livro, o
“Portugal Amordaçado”, publicado em francês. Mas nem nestes anos de
solidão se aproximou dos novos “resistentes”, que haviam fugido à PIDE, à
guerra e a Penamacor (uma unidade penal), e que em Paris se deixaram absorver
pelo “renascimento marxista”, conduzido por um louco, Louis Althusser, que
acabou por se proclamar um profeta e matar a mulher. De revista para revista,
esta gente discutia com ódio teológico as miudezas da sua fé, enquanto Soares
tratava do que era importante e consequente.
Por
essa altura, já o império soviético se começava a desfazer. A Europa de Leste e
a própria URSS estavam endividadas ao Ocidente até ao pescoço e a URSS, em
particular, não queria pagar uma segunda Cuba ao dr. Álvaro Cunhal e mesmo
depois do “25 de Abril” foi parca com o PCP e crítica da política
“revolucionária”. A Europa ocidental, pelo contrário, ainda não sentia a
gravidade da sua decadência e abria a porta a um (ainda modesto) alargamento.
Soares já se tornara parte dessa Europa. Conheceu Brandt, Schmidt, Callaghan,
Nenni, Mitterrand e a generalidade das grandes personagens que, tarde ou cedo,
decidiriam do nosso destino.
Em
1973, fundara o PS na Alemanha, com dinheiro alemão e o patrocínio do SPD, e no
dia em que desembarcou em Santa Apolónia não desembarcava sem apoios, sem um
instrumento e sem um papel. Havia muita força sob a sua aparente fraqueza.
(Continua)
Não
resisto, contudo, a mostrar a minha versão da figura, embora superficial,
publicada em tempos em “Cravos Roxos”, e que vem corroborar o descritivo
de V.P.V. no que toca ao retrato de um herói, sem outras armas que as do
oportunismo no furo que a vida lhe proporcionou e que a pátria lhe soube
agradecer:
«Admiração
Sempre
admirei o Dr. Mário Soares desde que o conheci - e deu-se tal acidente por
alturas da descolonização a vapor, que só diferiu da sua antónima colonização
porque esta foi mais lenta - a remos - facto perfeitamente aceitável dada a
falta de elementos progressistas, como o Dr. Mário Soares, a acicatarem o
vapor.
Admirei,
pois, a sua figura bonacheirona, e a impecabilidade da letra V com que figurava
nos jornais e revistas mundanas empunhando o braço e abrindo os dedos indicador
e maior, sem jamais se enganar, como eu já vi fazer muitas pessoas, entre as
quais um dos cinco amigos no filme de Lelouch “Aventura é aventura”, o que me
chocou imenso, pois dobrava os dedos maior e anelar para baixo, e o mendinho e
o indicador para cima, numa deprimente prova de ignorância do abecedário.
Ao
mesmo tempo que formava o V impecável, primeira causa da minha admiração,
também viajava muito, segunda causa da minha admiração, pois tais viagens só
poderiam traduzir um índice económico igualmente impecável, e esse aspecto
estimula sempre a admiração.
Consistiu
a terceira causa a presteza com que o Dr. Mário Soares decidiu entregar os
territórios portugueses aos terroristas, antes de se dispor a visitá-los - a
eles, aos territórios, claro, porque com os terroristas mantinha naturais
relações de afecto, bem evidentes aquando dos abraços apertados ao camarada
Samora Machel em Lusaka e noutros sítios.
(Continua)
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