quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Balanços



São dois artigos de Francisco Assis, impecáveis na expressão de um pensamento claro e sério -o primeiro sobre as surpresas que a roda do tempo trouxe este ano para as políticas internacionais, que estão longe de fazer prever um seguimento pacífico no contexto internacional - o Brexit, a eleição de D. Trump, o desenho de novos espaços políticos europeus; o segundo, do foro interno, as artimanhas voluntariosas de A. Costa, os maneirismos sedutores mas descabidos de Marcelo R. de S., a figura de frustração de Passos Coelho.
Dois textos concisos e de extrema elegância expressiva e isenta, natural em Francisco Assis:
                                                                                                                                                                  
1º Texto: Pensar o acontecimento
Num registo que, no plano da dramaturgia, parece relevar sobretudo da longa tradição cómica começada por Aristófanes, assistimos ao primeiro esboço de um conflito institucional entre a Presidência da República e o Governo.
Público, 22 de Dezembro de 2016

1.Pensar o acontecimento para não sucumbir à actualidade”. Estas palavras de Hannah Arendt revelam-se de uma pertinência excepcional na fase histórica que estamos a atravessar. Perante a sucessão de ocorrências que até há pouco tempo consideraríamos da ordem do inimaginável, impõe-se a necessidade de estabelecer um certo distanciamento face à realidade imediata como condição para a compreensão do que nela vai sucedendo. Desse ponto de vista, o ano que agora termina foi particularmente pródigo. A decisão do povo britânico de abandonar a UE, a opção dos norte-americanos pela eleição de uma figura como Donald Trump para a respectiva Presidência, o avanço das correntes ultranacionalistas em vários países do Leste europeu, a derrota de Matteo Renzi em Itália, o excelente resultado obtido por um candidato de extrema-direita na Áustria, e a banalização dos atentados terroristas na Europa, põem em causa modelos tradicionais de representação e compreensão dos fenómenos políticos e sociais. A tentação de remeter tudo isto para uma espécie de bestiário alheio à capacidade de racionalização humana é enorme. Contudo, esse caminho impede o entendimento do que quer que seja e limita-se a demonizar comportamentos e opções que devem, pelo contrário, ser estudados, analisados e criticados no plano político.
Como tenho vindo a insistir nas páginas do PÚBLICO, considero profundamente erradas as explicações de natureza monocausal, tenham elas por referência a dimensão económica ou dimensões de outro tipo, como a política, a cultural ou a própria dimensão antropológica. Também não adiro às teses declinistas, hoje muito em voga nalguns sectores do pensamento ocidental, que em tudo descortinam manifestações de uma irreversível crise de civilização. Tal como o progresso não é linear, também o retrocesso não é inevitável. Estamos a passar por um momento especialmente caótico, que decorre das transformações em curso nas principais esferas do pensamento e da actividade humanas.
Como é próprio destas épocas, abundam as explicações simplistas e multiplicam-se os bodes expiatórios. Para os extremistas de direita, tudo resulta de uma crise daquilo que designam — abusivamente — por uma civilização cristã ocidental; para os extremistas de esquerda, todo o mal provém de uma globalização hiperliberal que habitualmente definem de forma grosseira e primária. Pensar o acontecimento para não correr o risco de sucumbir à actualidade é talvez a tarefa mais importante do nosso tempo. Tarefa a que têm obrigação de se dedicar todos quantos intervêm no espaço público, sob pena de traírem as suas responsabilidades perante as comunidades em que se integram.
Acontecimentos como o "Brexit" ou a vitória de Trump só podem ser devidamente percebidos se integrados numa apreciação mais ampla do processo de recomposição económica, social e cultural das sociedades em que ocorreram. A decisão britânica, por muito surpreendente que tenha parecido, não colide radicalmente com a histórica relutância que sempre identificou a posição do Reino Unido face ao continente europeu. O que terá sido excepcional na história dessa relação terá sido mesmo a adesão à então Comunidade Económica Europeia, concretizada num momento histórico muito particular. Mesmo durante o período em que integraram a União Europeia, os britânicos optaram sempre por um relativo distanciamento, o que os levou, entre outras coisas, a não adoptarem a moeda única e a não participarem no Espaço Schengen.
Olhemos agora para o fenómeno Trump. Há nos EUA uma velha tradição populista, doutrinariamente bastante confusa, pronta a aflorar em momentos de significativas mudanças. Esse populismo, que para tormento da nossa rigidez conceptual tem uma clara filiação democrática, teve várias manifestações históricas assaz repugnantes. Felizmente, essas manifestações nunca se impuseram de forma definitiva e não puseram em causa o trajecto histórico da grande democracia estado-unidense. Donald Trump, um flibusteiro com escasso pensamento e poucos princípios, insere-se numa tradição que parece condenada à derrota. Apesar de não querer minimizar os perigos que a sua eleição comporta, e de não acreditar na teoria da metamorfose institucional da personagem, não antevejo nenhuma razão para vislumbrar algo mais que um episódico erro de parte substancial do eleitorado.
Já no que diz respeito ao recrudescimento dos velhos nacionalismos europeus, nalguns casos sob formas de inspiração racista e xenófoba, estamos a assistir a uma reacção ao processo de afirmação de uma nova entidade supranacional, a União Europeia. Só por grande ingenuidade se poderia admitir que este processo seria linear, consensual e isento de momentos de grande tensão política. É, aliás, de crer que grande parte do debate político europeu se vá fazer no futuro entre correntes defensoras de uma maior integração e outras opositoras a esse projecto, independentemente do posicionamento ideológico originário de uns e de outros. Isso vai provavelmente conduzir a interessantes reconfigurações da paisagem política europeia, com reflexo directo na organização dos sistemas partidários nacionais.
Hannah Arendt, como vimos, tinha toda a razão. Sem projectar os acontecimentos na história, abdicando de os pensar nas suas múltiplas dimensões, caímos no erro imperdoável de ficarmos prisioneiros de uma crónica da actualidade, intelectualmente fruste, e politicamente infértil.
2. O último acto da Cornucópia, companhia de teatro para com quem o país ficará para sempre com uma dívida inestimável, ficou marcado pela inesperada entrada em cena do Presidente da República, do ministro da Cultura e de um dos maîtres-à-penser da solução governativa em vigor. Num registo que, no plano da dramaturgia, parece relevar sobretudo da longa tradição cómica começada por Aristófanes, assistimos ao primeiro esboço de um conflito institucional entre a Presidência da República e o Governo. Nada de surpreendente, ou até de especialmente grave. Aliás, o que me levou a referir aqui o assunto foi justamente o seu lado cómico, exemplarmente manifestado no momento em que o Presidente da República se virou para o ministro da Cultura e lhe formulou num tom decerto não propositadamente jocoso: “Então o senhor ministro, afinal de contas, não foi à Covilhã?”.
3. Este episódio ensina-nos uma coisa: os membros do Governo só mesmo por motivos de absoluta força maior é que devem deixar de ir à Covilhã. 

2º Texto: António Costa, príncipe da ambiguidade esclarecida
Público, 29 de Dezembro de 2016

Os tempos que vivemos apelam à utilidade metafórica da imaginação poética
"Isto está cheio de gente
falando ao mesmo tempo
e alguma coisa está fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em qualquer lugar"
Manuel António Pina
A grande poesia – e cada vez mais me convenço que Manuel António Pina foi um dos maiores poetas portugueses da época contemporânea – tem essa qualidade extraordinária de se libertar de todas as amarras, ignorar os dados circunstanciais e adquirir vida própria. Na Teoria da literatura é conhecido o conceito de “obra aberta”. É um pouco nesse sentido que recorro a um extrato de um poema do autor supracitado. Os tempos que vivemos apelam à utilidade metafórica da imaginação poética. Doutro modo tornar-se-iam imensamente sombrios. Há na poesia, na autêntica, nessa que não consiste num cacarejar pretensamente lírico de lugares-comuns, alguma coisa que contribui para iluminar tudo o que é humano. Manuel António Pina (que recordo sempre no mesmo sítio, quase sempre na mesma mesa do restaurante Convívio, no Porto), ajuda-nos postumamente a compreender os dias que correm. Não era decerto essa a sua intenção. Os poetas têm mais que fazer do que ajudar-nos a compreender o mundo; essa talvez seja a tarefa dos filósofos, que, como é sabido, têm grande tendência para falhar em tal mister.
Olhando para o país de hoje, observando as coisas visíveis e percebendo tudo o que é do domínio do invisível, sentimos um certo socorro nas palavras poéticas de Manuel António Pina. Na verdade toda a gente fala; fala-se mesmo porventura demais na vida política portuguesa. O Presidente da República parece dar o mote: entre abraços e beijos, generosamente despendidos numa cerimónia de celebração da ginjinha, no Barreiro, até a um fúnebre comunicado relativo à morte de George Michael, o Professor Marcelo vive num estado de permanente logorreia. O Presidente é simpático, indesmentivelmente inteligente, nas horas de recolhimento deve rir-se que nem um perdido das circunstâncias que lhe são dadas viver. É quase impossível não gostar dele, mesmo quando consideramos detestável essa sobreexposição pública que não favorece a instituição Presidência da República. Chegará o dia em que ele próprio perceberá a suprema importância que o silêncio também tem na política.
Já o primeiro-ministro, como bem se notou na sua mensagem de Natal, possui uma rara qualidade: a de falar de uma coisa encenando estar a falar de coisa completamente distinta. António Costa, entre outras coisas, ficará para a nossa história contemporânea como um príncipe da ambiguidade esclarecida. Nele as palavras adquirem polivalência, mas nunca ganham autonomia. Por isso mesmo a hermenêutica dos seus discursos deveria ser uma disciplina para levar a sério, não fora o excesso de credulidade ou de impreparação de grande parte dos analistas nativos. Com António Costa – é justo que se diga – não entramos na dimensão agora aclamada da “pós-verdade”. Quando muito ficaremos no domínio da “para-verdade”, que não é assim tão rara no discurso político.
Como homem avisado que é, ele sabe que está a entrar na fase decisiva da sua acção como Primeiro-Ministro e com o líder da improvável coligação das esquerdas. Por isso mesmo vai dando sinais à navegação que não devem ser desvalorizados. Por mérito próprio, soube colocar-se muito acima da solução, por natureza contraditória, que concebeu e aplicou. Uma só coisa – mas essa coisa é muito importante – deve tirar-lhe o sono: a eficácia do demiurgo esgota-se em grande parte no instante em que a sua obra nasce. Depois a obra ganha asas, e adquire de tal forma vida própria que não raro se volta contra o seu próprio criador. Nessa perspectiva, a grande interrogação que se vai colocar é a de saber em que estado ficam as vacas depois de aterragens forçadas, quando se dissipa a ilusão de um voo impossível. Haverá as que morrem e haverá as que sobrevivem, e entre estas últimas haverá as que sobrevivem intactas e as que ficarão condenadas a coxear para o resto dos seus infelizes dias.
Já da oposição se pode dizer que fez de um certo silêncio a tentativa mais ousada de permanecer viva. Pedro Passos Coelho percebe-se a si próprio e como tal apresenta-se ao país como uma espécie de Primeiro-Ministro no exílio. Acredito que isso corresponda simultaneamente ao seu estado psicológico e à sua percepção do que corresponde ao seu interesse político imediato. Depois de uns longos quatro anos de aplicação de uma política de austeridade pura e dura, assistirá agora, com perplexidade, à festiva governação que lhe sucedeu. No fundo sente-se um incompreendido, que só uma grave crise a curto prazo poderá reconciliar com o seu próprio país. Só que esse é precisamente o seu drama político mais profundo; não sendo – estando mesmo muito longe de o ser – um abutre, corre sérios riscos de o país o confundir com essa ave tão pouco popular. Pelo meio, alguns verdadeiros abutres, que os há a sério no PSD, já sobrevoam despudoramente aquilo que antecipam como o seu cadáver político. Tem a seu favor o facto de a história estar repleta de aves dessa natureza condenadas ao fracasso pela precipitação de falsas partidas.
No fundo, em 2017 o país político girará em torno destas três personalidades, todas elas respeitáveis a seu modo. E todas elas igualmente criticáveis, como é próprio de uma sociedade aberta, democrática e pluralista.

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