São dois artigos de Francisco
Assis, impecáveis na expressão de um pensamento claro e sério -o primeiro
sobre as surpresas que a roda do tempo trouxe este ano para as políticas internacionais,
que estão longe de fazer prever um seguimento pacífico no contexto
internacional - o Brexit, a eleição de D. Trump, o desenho de novos
espaços políticos europeus; o segundo, do foro interno, as
artimanhas voluntariosas de A. Costa, os maneirismos sedutores mas descabidos
de Marcelo R. de S., a figura de frustração de Passos Coelho.
Dois textos concisos e
de extrema elegância expressiva e isenta, natural em Francisco Assis:
1º Texto: Pensar o acontecimento
Num
registo que, no plano da dramaturgia, parece relevar sobretudo da longa
tradição cómica começada por Aristófanes, assistimos ao primeiro esboço de um
conflito institucional entre a Presidência da República e o Governo.
Público,
22 de Dezembro de 2016
1. “Pensar o acontecimento para
não sucumbir à actualidade”. Estas palavras de Hannah Arendt
revelam-se de uma pertinência excepcional na fase histórica que estamos a
atravessar. Perante a sucessão de ocorrências que até há pouco tempo
consideraríamos da ordem do inimaginável, impõe-se a necessidade de
estabelecer um certo distanciamento face à realidade imediata como condição
para a compreensão do que nela vai sucedendo. Desse ponto de vista, o ano que
agora termina foi particularmente pródigo. A decisão do povo britânico de
abandonar a UE, a opção dos norte-americanos pela eleição de uma figura como
Donald Trump para a respectiva Presidência, o avanço das correntes
ultranacionalistas em vários países do Leste europeu, a derrota de Matteo Renzi
em Itália, o excelente resultado obtido por um candidato de extrema-direita na
Áustria, e a banalização dos atentados terroristas na Europa, põem em causa
modelos tradicionais de representação e compreensão dos fenómenos políticos e
sociais. A
tentação de remeter tudo isto para uma espécie de bestiário alheio à
capacidade de racionalização humana é enorme. Contudo, esse caminho impede o
entendimento do que quer que seja e limita-se a demonizar comportamentos e
opções que devem, pelo contrário, ser estudados, analisados e criticados no
plano político.
Como
tenho vindo a insistir nas páginas do PÚBLICO, considero profundamente erradas as explicações de
natureza monocausal, tenham
elas por referência a dimensão económica ou dimensões de outro tipo, como a
política, a cultural ou a própria dimensão antropológica. Também não
adiro às teses declinistas, hoje muito em voga nalguns sectores do
pensamento ocidental, que em tudo descortinam
manifestações de uma irreversível crise de civilização. Tal como o progresso não é linear, também o
retrocesso não é inevitável. Estamos a passar por um momento especialmente
caótico, que decorre das transformações em curso nas principais esferas do
pensamento e da actividade humanas.
Como
é próprio destas épocas, abundam as explicações simplistas e multiplicam-se
os bodes expiatórios. Para os
extremistas de direita,
tudo resulta de uma crise daquilo que designam — abusivamente — por uma
civilização cristã ocidental; para
os extremistas de esquerda, todo o mal provém de uma globalização
hiperliberal que habitualmente definem de forma grosseira e primária. Pensar
o acontecimento para não correr o risco de sucumbir à actualidade é talvez a
tarefa mais importante do nosso tempo. Tarefa a que têm obrigação de se dedicar
todos quantos intervêm no espaço público, sob pena de traírem as suas
responsabilidades perante as comunidades em que se integram.
Acontecimentos como o "Brexit" ou a vitória
de Trump só podem ser devidamente percebidos se integrados numa apreciação mais
ampla do processo de recomposição económica, social e cultural das sociedades
em que ocorreram. A decisão britânica, por muito surpreendente que tenha
parecido, não colide radicalmente com a histórica relutância que sempre
identificou a posição do Reino Unido face ao continente europeu. O que terá
sido excepcional na história dessa relação terá sido mesmo a adesão à então
Comunidade Económica Europeia, concretizada num momento histórico muito
particular. Mesmo durante o período em que integraram a União Europeia, os
britânicos optaram sempre por um relativo distanciamento, o que os levou, entre
outras coisas, a não adoptarem a moeda única e a não participarem no Espaço
Schengen.
Olhemos agora para o fenómeno Trump. Há nos EUA uma
velha tradição populista, doutrinariamente bastante confusa, pronta a aflorar
em momentos de significativas mudanças. Esse populismo, que para tormento da
nossa rigidez conceptual tem uma clara filiação democrática, teve várias
manifestações históricas assaz repugnantes. Felizmente, essas manifestações
nunca se impuseram de forma definitiva e não puseram em causa o trajecto
histórico da grande democracia estado-unidense. Donald Trump, um flibusteiro
com escasso pensamento e poucos princípios, insere-se numa tradição que parece
condenada à derrota. Apesar
de não querer minimizar os perigos que a sua eleição comporta, e de não
acreditar na teoria da metamorfose institucional da personagem, não antevejo
nenhuma razão para vislumbrar algo mais que um episódico erro de parte
substancial do eleitorado.
Já no que diz respeito ao recrudescimento dos velhos
nacionalismos europeus, nalguns casos sob formas de inspiração racista e
xenófoba, estamos a assistir a uma reacção ao processo de afirmação de uma nova
entidade supranacional, a União Europeia. Só por grande
ingenuidade se poderia admitir que este processo seria linear, consensual e
isento de momentos de grande tensão política. É, aliás, de crer que grande
parte do debate político europeu se vá fazer no futuro entre correntes
defensoras de uma maior integração e outras opositoras a esse projecto, independentemente
do posicionamento ideológico originário de uns e de outros. Isso vai
provavelmente conduzir a interessantes reconfigurações da paisagem política
europeia, com reflexo directo na organização dos sistemas partidários
nacionais.
Hannah
Arendt, como vimos, tinha toda a razão. Sem projectar os
acontecimentos na história, abdicando de os pensar nas suas múltiplas
dimensões, caímos no erro imperdoável de ficarmos prisioneiros de uma
crónica da actualidade, intelectualmente fruste, e politicamente infértil.
2. O último acto da Cornucópia,
companhia de teatro para com quem o país ficará para sempre com uma dívida
inestimável, ficou marcado pela inesperada
entrada em cena do Presidente da República, do ministro da Cultura e de um
dos maîtres-à-penser da solução governativa em vigor.
Num registo que, no plano da dramaturgia,
parece relevar sobretudo da longa tradição cómica começada por Aristófanes,
assistimos ao primeiro esboço de um conflito institucional entre a Presidência
da República e o Governo. Nada de surpreendente, ou até de especialmente grave.
Aliás, o que me levou a referir aqui o assunto foi justamente o seu lado
cómico, exemplarmente manifestado no momento em que o Presidente da República
se virou para o ministro da Cultura e lhe formulou num tom decerto não
propositadamente jocoso: “Então o senhor ministro, afinal de contas, não foi à
Covilhã?”.
3. Este episódio ensina-nos uma coisa: os membros do
Governo só mesmo por motivos de absoluta força maior é que devem deixar de ir à
Covilhã.
2º Texto: António Costa, príncipe da ambiguidade esclarecida
Público, 29 de Dezembro de 2016
Os tempos que vivemos apelam à utilidade metafórica
da imaginação poética
"Isto está
cheio de gente
falando ao mesmo
tempo
e alguma coisa está
fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em
qualquer lugar"
Manuel António Pina
A
grande poesia – e cada vez mais me convenço que Manuel António Pina foi
um dos maiores poetas portugueses da época contemporânea – tem essa qualidade
extraordinária de se libertar de todas as amarras, ignorar os dados
circunstanciais e adquirir vida própria. Na Teoria da literatura é conhecido o
conceito de “obra aberta”. É um pouco nesse sentido que recorro a
um extrato de um poema do autor supracitado. Os tempos que
vivemos apelam à utilidade metafórica da imaginação poética. Doutro modo
tornar-se-iam imensamente sombrios. Há na poesia, na autêntica, nessa que não
consiste num cacarejar pretensamente lírico de lugares-comuns, alguma coisa que
contribui para iluminar tudo o que é humano. Manuel António Pina (que recordo
sempre no mesmo sítio, quase sempre na mesma mesa do restaurante Convívio, no
Porto), ajuda-nos postumamente a compreender os dias que correm. Não era
decerto essa a sua intenção. Os poetas têm mais que fazer do que ajudar-nos a
compreender o mundo; essa talvez seja a tarefa dos filósofos, que, como é
sabido, têm grande tendência para falhar em tal mister.
Olhando
para o país de hoje, observando as coisas visíveis e percebendo tudo o que é do
domínio do invisível, sentimos um certo socorro nas palavras poéticas de Manuel
António Pina. Na verdade toda a gente fala; fala-se mesmo porventura demais na
vida política portuguesa. O Presidente
da República parece dar o mote: entre abraços e beijos, generosamente
despendidos numa cerimónia de celebração da ginjinha, no Barreiro, até a um
fúnebre comunicado relativo à morte de George Michael, o Professor Marcelo vive
num estado de permanente logorreia. O Presidente é simpático,
indesmentivelmente inteligente, nas horas de recolhimento deve rir-se que nem
um perdido das circunstâncias que lhe são dadas viver. É quase impossível não
gostar dele, mesmo quando consideramos detestável essa sobreexposição pública
que não favorece a instituição Presidência da República. Chegará o dia em que ele próprio perceberá a suprema
importância que o silêncio também tem na política.
Já
o primeiro-ministro, como bem se notou na sua mensagem de Natal, possui
uma rara qualidade: a de falar de uma coisa encenando estar a falar de
coisa completamente distinta. António
Costa, entre outras coisas, ficará para a nossa história contemporânea como um
príncipe da ambiguidade esclarecida. Nele as palavras adquirem polivalência,
mas nunca ganham autonomia. Por isso mesmo a hermenêutica dos seus discursos
deveria ser uma disciplina para levar a sério, não fora o excesso de
credulidade ou de impreparação de grande parte dos analistas nativos.
Com António Costa – é justo que se diga – não entramos na dimensão agora
aclamada da “pós-verdade”. Quando muito ficaremos no domínio da “para-verdade”,
que não é assim tão rara no discurso político.
Como
homem avisado que é, ele sabe que está a entrar na fase decisiva da sua
acção como Primeiro-Ministro e com o líder da improvável coligação das esquerdas.
Por isso mesmo vai dando sinais à navegação que não devem ser desvalorizados.
Por mérito próprio, soube colocar-se muito acima da solução, por natureza
contraditória, que concebeu e aplicou. Uma só coisa – mas essa coisa é
muito importante – deve tirar-lhe o sono: a eficácia do demiurgo esgota-se em grande parte no instante em que a
sua obra nasce. Depois a obra ganha asas, e adquire de tal
forma vida própria que não raro se volta contra o seu próprio criador.
Nessa perspectiva, a grande interrogação que se vai colocar é a de saber em
que estado ficam as vacas depois de aterragens forçadas, quando se dissipa a
ilusão de um voo impossível. Haverá as que morrem e haverá as que sobrevivem, e
entre estas últimas haverá as que sobrevivem intactas e as que ficarão
condenadas a coxear para o resto dos seus infelizes dias.
Já
da oposição se pode dizer que fez de um certo silêncio a tentativa mais ousada
de permanecer viva. Pedro Passos Coelho percebe-se a si próprio e como tal
apresenta-se ao país como uma espécie de Primeiro-Ministro no exílio. Acredito
que isso corresponda simultaneamente ao seu estado psicológico e à sua
percepção do que corresponde ao seu interesse político imediato. Depois de
uns longos quatro anos de aplicação de uma política de austeridade pura e dura,
assistirá agora, com perplexidade, à festiva governação que lhe sucedeu.
No fundo sente-se um incompreendido, que só uma grave crise a curto prazo
poderá reconciliar com o seu próprio país. Só que esse é precisamente o seu
drama político mais profundo; não sendo – estando mesmo muito longe de o ser –
um abutre, corre sérios riscos de o país o confundir com essa ave tão pouco
popular. Pelo meio, alguns verdadeiros abutres, que os há a sério no PSD, já
sobrevoam despudoramente aquilo que antecipam como o seu cadáver político. Tem
a seu favor o facto de a história estar repleta de aves dessa natureza
condenadas ao fracasso pela precipitação de falsas partidas.
No
fundo, em 2017 o país político girará em torno destas três personalidades,
todas elas respeitáveis a seu modo. E todas elas igualmente criticáveis,
como é próprio de uma sociedade aberta, democrática e pluralista.
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