Penso nos meus bisnetos - o Pedrinho da Ana, de
seis meses, e o Nuno da Catarina, que vai nascer. E afinal, nos meus netos
todos, os quatro mais novos ainda em preparação para essa vida de realização
que queremos para eles, meninos que seguem, sob a orientação dos pais atentos.
João Miguel Tavares receia por eles, os filhos
e netos e bisnetos, num novo mundo que não é para os novos como o mundo que foi
para os mais velhos. De facto, quando vemos as gerações mais novas perderem
tanto tempo da sua vida, quase desde os seus primeiros anos, agarrados a uma
caixinha ou defronte a uma televisão vibrando com histórias de imaginação nas raias
do impossível, criando neles gradualmente uma noção de um falso mundo de irrealidades
que os vão talvez subtraindo ao decoro do bom senso, mesmo na imaginação,
receamos por eles. É certo que essas caixinhas também lhes dão destreza manual
e mental, nos jogos espectaculares que lhes proporcionam, mas que
simultaneamente os isolam da participação sadia junto dos outros, ou até do
interesse pelo conhecimento provindo da leitura que, indiscutivelmente, é a
maior fonte de riqueza espiritual que
poderão ir obtendo, não só para reflectir como para disciplinar o pensamento e
a ortografia. Mas o lúdico impõe-se nos nossos tempos, e a vida de relação
esvai-se, ou faz-se pela caixinha, à distância, desequilibrada e falsa, de
mensagens sem conteúdo e sem ortografia.
Por outro lado, os governos vão atamancando as
suas políticas como podem, no sentido de proporcionar trabalho aos mais novos,
mas permitindo os desmandos da trafulhice contínua, pelos egoísmos dos
ambiciosos que naturalmente vão empobrecendo cada vez mais os que não têm iguais
competências de absorção ávida e desonesta.
E num país como o nosso, com uma dívida
crescente, de juros crescentes, sem um arranque efectivo de criação de riqueza,
sempre de mão estendida a suplicar que outros nos salvem, esse descalabro de
que trata João Miguel Tavares dos nossos filhos sem futuro é bem assustador.
Mas a Terra sempre foi atravessada de convulsões,
que acabaram em estabilidade durante uns tempos, em ondas contínuas de vaivém. Pensemos
que esta época de incerteza será mais uma que passa. E desejemos para os nossos
filhos e netos e bisnetos que cultivem o seu jardim ou a sua horta o melhor que
puderem. Com esperança sempre, que é a última a morrer. E coragem, como a que
nós tivemos, numa travessia de luta. Às ondas também.
Lembro uma canção brasileira - de 1947, leio na
Internet - que poderia trazer um resquício de ilusão na aceitação mordaz da
realidade, em vários ângulos de visão, que davam então sabor à vida, na
convicção de que há sempre uma alternativa:
Pode Ser Que Não Seja
Refrão:
Nem tudo que reluz é ouro
Oi, nem tudo que balança cai!
(bis)
Nem tudo que reluz é ouro
Oi, nem tudo que balança cai!
(bis)
A moça que a gente
conhece
Todo dia rezando na igreja,
Pode ser que ela seja uma santa
Mas também pode ser que não seja!
Todo dia rezando na igreja,
Pode ser que ela seja uma santa
Mas também pode ser que não seja!
Refrão
O moço que a gente
conhece
Todo dia bebendo cerveja,
Pode ser que ele seja um pau-d'água
Mas também pode ser que não seja!
Todo dia bebendo cerveja,
Pode ser que ele seja um pau-d'água
Mas também pode ser que não seja!
Refrão
O homem que diz que
não foge,
Que enfrenta sorrindo a peleja,
Pode ser que ele seja um valente
Mas também pode ser que não seja!
Que enfrenta sorrindo a peleja,
Pode ser que ele seja um valente
Mas também pode ser que não seja!
Refrão
A flor que nasce no
mangue
E no meio do lodo viceja,
Pode ser uma flor muito pura
Mas também pode ser que não seja!
E no meio do lodo viceja,
Pode ser uma flor muito pura
Mas também pode ser que não seja!
Este mundo não é para novos
João Miguel Tavares
31 de Dezembro de 2016
Em
época de balanços gostava de partilhar convosco um dos artigos que mais me
marcaram em 2016. Foi escrito por David Leonhardt, jornalista e
colunista do New York Times, e coloca pela primeira vez números fiáveis em cima
daquilo que é uma intuição partilhada por todos: a crescente possibilidade
de os nossos filhos virem a ganhar menos do que nós e de as próximas gerações
terem uma qualidade de vida inferior à nossa.
O
artigo chama-se The American Dream, quantified at
last, e essa quantificação é devastadora: na década
de 40, a probabilidade de um recém-nascido americano vir a ganhar mais do que
os seus pais era de 92%; a probabilidade de uma criança americana nascida na
década de 80 vir a ganhar mais do que os seus pais caiu para os 50%. O
jornalista do New York Times fala especificamente do desaparecimento do Sonho
Americano, porque os números que tem disponíveis dizem respeito aos Estados Unidos,
mas não é difícil extrapolá-los para o resto do mundo ocidental. Não sabemos se
em Portugal as percentagens são aquelas, mas sabemos que a tendência é a mesma.
E, tendo em conta a dimensão da nossa dívida, os nossos problemas de
produtividade, o envelhecimento da população e a falta de dinâmica social, é
até possível que a situação portuguesa seja mais grave.
Leonhardt
retirou estes números de um estudo que recorre a “milhões de declarações de
impostos que abarcam várias décadas” (após o sucesso planetário de O
Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, big data é a nova palavra bonita dos
estudos económicos), reunidos pela equipa de Raj Chetty, professor de Economia
na Universidade de Stanford. O projecto ganhou um nome e um site próprios — The Equality of Opportunity Project — e
não há como desvalorizar o impacto desta terrível constatação no mundo em que
vivemos. Se a tendência se mantiver — os últimos dados disponíveis reportam-se
a 1985, ou seja, a pessoas que estão agora na casa dos 30 anos —, isso
significa que as crianças do século XXI já nem sequer estão na linha dos
50/50, mas muito abaixo disso. O mais provável, de facto, é que a qualidade de
vida dos nossos filhos venha a ser bastante inferior à nossa.
Aquele
que foi o nosso quadro mental, o quadro mental dos nossos pais e o quadro
mental dos nossos avós — de que, com algum esforço e algum estudo, as gerações
seguintes conseguiriam com naturalidade ter uma vida melhor do que as gerações
anteriores — está a afundar-se, vai implodir, possivelmente já morreu.
Claro
que parte do problema está relacionada com a diminuição do crescimento
económico, que dificilmente regressará aos níveis das décadas de 50 e 60. Mas a
outra parte do problema está relacionada com o aumento das desigualdades e com
a má distribuição da riqueza. Em 1980, Portugal cresceu 4,8%.
Em 2015 cresceu apenas 1,6%. Mas o PIB per capita em 2015 é
quase o dobro do PIB per capita em 1980. Este aumento deveria bastar para os
nossos filhos poderem vir a ganhar mais do que nós. Se o bolo aumentou para
o dobro, mas há cada vez mais gente a comer menos bolo do que antes, é porque
as fatias estão a ficar cada vez mais mal distribuídas. Mal distribuídas por
falta de taxação das grandes fortunas, sem dúvida. Mas também mal distribuídas
por causa do peso crescente dos direitos adquiridos. Esta é uma situação
profundamente injusta. Nunca nos preocupámos tanto com o bem-estar dos nossos
filhos — e, no entanto, nunca como hoje fomos tão maus pais. Um feliz
2017 para todos.
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