quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Talvez não seja assim



Penso nos meus bisnetos - o Pedrinho da Ana, de seis meses, e o Nuno da Catarina, que vai nascer. E afinal, nos meus netos todos, os quatro mais novos ainda em preparação para essa vida de realização que queremos para eles, meninos que seguem, sob a orientação dos pais atentos.
João Miguel Tavares receia por eles, os filhos e netos e bisnetos, num novo mundo que não é para os novos como o mundo que foi para os mais velhos. De facto, quando vemos as gerações mais novas perderem tanto tempo da sua vida, quase desde os seus primeiros anos, agarrados a uma caixinha ou defronte a uma televisão vibrando com histórias de imaginação nas raias do impossível, criando neles gradualmente uma noção de um falso mundo de irrealidades que os vão talvez subtraindo ao decoro do bom senso, mesmo na imaginação, receamos por eles. É certo que essas caixinhas também lhes dão destreza manual e mental, nos jogos espectaculares que lhes proporcionam, mas que simultaneamente os isolam da participação sadia junto dos outros, ou até do interesse pelo conhecimento provindo da leitura que, indiscutivelmente, é a maior fonte de  riqueza espiritual que poderão ir obtendo, não só para reflectir como para disciplinar o pensamento e a ortografia. Mas o lúdico impõe-se nos nossos tempos, e a vida de relação esvai-se, ou faz-se pela caixinha, à distância, desequilibrada e falsa, de mensagens sem conteúdo e sem ortografia.
Por outro lado, os governos vão atamancando as suas políticas como podem, no sentido de proporcionar trabalho aos mais novos, mas permitindo os desmandos da trafulhice contínua, pelos egoísmos dos ambiciosos que naturalmente vão empobrecendo cada vez mais os que não têm iguais competências de absorção ávida e desonesta.
E num país como o nosso, com uma dívida crescente, de juros crescentes, sem um arranque efectivo de criação de riqueza, sempre de mão estendida a suplicar que outros nos salvem, esse descalabro de que trata João Miguel Tavares dos nossos filhos sem futuro é  bem assustador.
Mas a Terra sempre foi atravessada de convulsões, que acabaram em estabilidade durante uns tempos, em ondas contínuas de vaivém. Pensemos que esta época de incerteza será mais uma que passa. E desejemos para os nossos filhos e netos e bisnetos que cultivem o seu jardim ou a sua horta o melhor que puderem. Com esperança sempre, que é a última a morrer. E coragem, como a que nós tivemos, numa travessia de luta. Às ondas também.
Lembro uma canção brasileira - de 1947, leio na Internet - que poderia trazer um resquício de ilusão na aceitação mordaz da realidade, em vários ângulos de visão, que davam então sabor à vida, na convicção de que há sempre uma alternativa:

Pode Ser Que Não Seja
Refrão:
Nem tudo que reluz é ouro
Oi, nem tudo que balança cai!
(bis)
A moça que a gente conhece
Todo dia rezando na igreja,
Pode ser que ela seja uma santa
Mas também pode ser que não seja!
Refrão
O moço que a gente conhece
Todo dia bebendo cerveja,
Pode ser que ele seja um pau-d'água
Mas também pode ser que não seja!
Refrão
O homem que diz que não foge,
Que enfrenta sorrindo a peleja,
Pode ser que ele seja um valente
Mas também pode ser que não seja!
Refrão
A flor que nasce no mangue
E no meio do lodo viceja,
Pode ser uma flor muito pura
Mas também pode ser que não seja!

Este mundo não é para novos
João Miguel Tavares
31 de Dezembro de 2016
Em época de balanços gostava de partilhar convosco um dos artigos que mais me marcaram em 2016. Foi escrito por David Leonhardt, jornalista e colunista do New York Times, e coloca pela primeira vez números fiáveis em cima daquilo que é uma intuição partilhada por todos: a crescente possibilidade de os nossos filhos virem a ganhar menos do que nós e de as próximas gerações terem uma qualidade de vida inferior à nossa.
O artigo chama-se The American Dream, quantified at last, e essa quantificação é devastadora: na década de 40, a probabilidade de um recém-nascido americano vir a ganhar mais do que os seus pais era de 92%; a probabilidade de uma criança americana nascida na década de 80 vir a ganhar mais do que os seus pais caiu para os 50%. O jornalista do New York Times fala especificamente do desaparecimento do Sonho Americano, porque os números que tem disponíveis dizem respeito aos Estados Unidos, mas não é difícil extrapolá-los para o resto do mundo ocidental. Não sabemos se em Portugal as percentagens são aquelas, mas sabemos que a tendência é a mesma. E, tendo em conta a dimensão da nossa dívida, os nossos problemas de produtividade, o envelhecimento da população e a falta de dinâmica social, é até possível que a situação portuguesa seja mais grave.
Leonhardt retirou estes números de um estudo que recorre a “milhões de declarações de impostos que abarcam várias décadas” (após o sucesso planetário de O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty, big data é a nova palavra bonita dos estudos económicos), reunidos pela equipa de Raj Chetty, professor de Economia na Universidade de Stanford. O projecto ganhou um nome e um site próprios — The Equality of Opportunity Project — e não há como desvalorizar o impacto desta terrível constatação no mundo em que vivemos. Se a tendência se mantiver — os últimos dados disponíveis reportam-se a 1985, ou seja, a pessoas que estão agora na casa dos 30 anos —, isso significa que as crianças do século XXI já nem sequer estão na linha dos 50/50, mas muito abaixo disso. O mais provável, de facto, é que a qualidade de vida dos nossos filhos venha a ser bastante inferior à nossa.
Aquele que foi o nosso quadro mental, o quadro mental dos nossos pais e o quadro mental dos nossos avós — de que, com algum esforço e algum estudo, as gerações seguintes conseguiriam com naturalidade ter uma vida melhor do que as gerações anteriores — está a afundar-se, vai implodir, possivelmente já morreu.
Claro que parte do problema está relacionada com a diminuição do crescimento económico, que dificilmente regressará aos níveis das décadas de 50 e 60. Mas a outra parte do problema está relacionada com o aumento das desigualdades e com a má distribuição da riqueza. Em 1980, Portugal cresceu 4,8%. Em 2015 cresceu apenas 1,6%. Mas o PIB per capita em 2015 é quase o dobro do PIB per capita em 1980. Este aumento deveria bastar para os nossos filhos poderem vir a ganhar mais do que nós. Se o bolo aumentou para o dobro, mas há cada vez mais gente a comer menos bolo do que antes, é porque as fatias estão a ficar cada vez mais mal distribuídas. Mal distribuídas por falta de taxação das grandes fortunas, sem dúvida. Mas também mal distribuídas por causa do peso crescente dos direitos adquiridos. Esta é uma situação profundamente injusta. Nunca nos preocupámos tanto com o bem-estar dos nossos filhos — e, no entanto, nunca como hoje fomos tão maus pais. Um feliz 2017 para todos.

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