sábado, 14 de janeiro de 2017

Um naco de Gil Vicente, a propósito de Lutero



De muito interesse o artigo de Carlos Fiolhais, publicado recentemente no Público, que me pareceu corolário de um recente “Saber às pinguinhas” transposto de uma História para o 8º ano, sobre o papel da Reforma na evolução do pensamento. Um pensamento anquilosado por um ensino de orientação religiosa, por cá, a Reforma proposta por espíritos críticos de humanistas não conformes com o extraordinário viver de uma Igreja cujos ditames aos seus fiéis contrastavam com um viver de luxo, luxúria, intriga e corrupção, bem distantes da doutrina primeira, de que tratam os Evangelhos. E esses grandes mentores, de que Lutero foi cabeça, causaram profunda reforma cultural numa Europa a breve trecho extremada em duas, a do Norte e Centro, protestante, mais aberta à evolução filosófica e científica, a do Sul, seguidora dos princípios de uma Contra-Reforma perversa e fechada ao progresso do pensamento.
O nosso Gil Vicente, cuja obra também passou pelo cadinho do Índex Expurgatório, mostra, no seu saboroso “Auto da Feira” entre outras peças de crítica irónica, o seu espírito aberto, na condenação de uma Igreja libertina, com a personagem Roma, que tem o “poder na Terra”, suplicando na Feira, ao Tempo, Mercúrio e Serafim, apaz dos Céus”, mesmo a troco das tais indulgências, se necessário fosse. Não resisto a transcrever o excerto do extraordinário fundador do teatro português.
O ano de Lutero
Carlos Fiolhais, Professor universitário
Público, 4 de Janeiro de 2017
Não sabemos o que se vai passar em 2017, mas sabemos o que se passou há 500 anos ou há 100 anos. A 30 de Outubro festejar-se-ão os cinco séculos da afixação das 95 teses do monge agostiniano Martinho Lutero na igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha. E a 7 de Novembro comemorar-se-á um século da tomada de poder pelos sovietes, em Petrogrado, na Rússia. Estou em crer que o primeiro evento foi mais determinante para o futuro da Europa e do mundo. Respaldo-me em Eduardo Lourenço, que, numa conferência em Coimbra, afirmou:A Europa já existiu quando se chamava a Cristandade, antes do clash que é porventura o acontecimento mais importante da história europeia, que foi a Reforma. A Reforma traçou, dividiu a Europa, por dentro, em duas. É um drama, mas ao mesmo tempo é uma peripécia absolutamente extraordinária da História do Mundo, porque não há nada mais importante para a definição de uma entidade, (...) dum povo, duma nação, do que a sua inserção em qualquer coisa que nós poderemos chamar da ordem da crença”. O bater de asas da borboleta foi, em 1517, uma reacção contra o pagamento a Roma de indulgências para remissão dos pecados. Passados três anos, Lutero era excomungado, vendo-se porém protegido por sete príncipes alemães que assinaram a Confissão de Augsburg. O vendaval reformista que se seguiu levou à existência hoje de mil milhões de protestantes no mundo, cerca de 40 por cento da Cristandade. E, mais do que isso, à emergência de uma nova mundividência. O sociólogo alemão Max Weber defendeu, num livro tão famoso quanto controverso, a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Seja qual for a causa, o certo é que a Europa do Norte se desenvolveu mais rapidamente do que a do Sul e que, nos nossos dias, o futuro da Europa tem muito que ver com o modo como evoluirá essa clivagem.
Lutero foi um professor de Teologia (para o cardeal francês Yves Congar, “um dos maiores génios religiosos de toda a história, no mesmo plano que Santo Agostinho e São Tomás de Aquino”) e, em particular, um devoto tradutor da Bíblia. A Bíblia luterana, que saiu do prelo em 1534, ajudou a formar o Hochdeutsch. Frederico Lourenço, na apresentação da sua recente tradução do Novo Testamento a partir do grego, chama a atenção para o atraso da tradução da Bíblia em português. Consta que o rei D. Dinis foi o primeiro tradutor de parte do Génesis para a língua portuguesa. Mas só – pasme-se! - em 1753 se acabou de publicar em Jacarta a primeira tradução portuguesa integral dos textos sagrados, pela mão principal de João Ferreira de Almeida, o pastor da Igreja Reformada Holandesa que, nascido em Mangualde, viveu na Indonésia. Existia, na época, uma interdição pela Santa Sé da leitura da Bíblia em qualquer língua que não fosse o latim da Vulgata, língua que poucos dominavam.
Em Portugal houve, como é sabido, Contra-Reforma sem haver Reforma. A Inquisição, que aqui chegou em 1536, era principalmente dirigida aos judeus, mas logo desde o início se encarregou de quebrar quaisquer veleidades aos luteranos. Um dos casos mais famosos foi o de Damião de Góis, condenado por ter falado, comido e bebido com o “maldito Martinho Lutero”. Outro foi o do egresso dominicano Fernão de Oliveira, autor da primeira História de Portugal e da primeira gramática de português, culpado por defender, inter alia, que o rei da Inglaterra não era herege. Outro ainda foi o de três lentes do Colégio das Artes de Coimbra - Diogo de Teive, João da Costa e George Buchanan, este escocês - que foram sentenciados por opiniões heréticas. Os estrangeiros eram vistos com especial suspeição e as prevaricações severamente punidas: William Gardiner, mercador inglês estabelecido em Lisboa, foi queimado vivo a mando do Santo Ofício por um atentado à Eucaristia na capela real.
Na Alemanha haverá numerosos eventos sobre Lutero. Um deles, na Casa de Lutero em Wittenberg, será a exposição “95 tesouros – 95 pessoas”, que falará da influência dele em Johann Sebastian Bach, Thomas Mann, Martin Luther King e até Edward Snowden, o mais moderno dos cismáticos. Em Roma o papa Francisco celebrará o ecumenismo. Em Lisboa realizar-se-á, em Novembro, o congresso internacional “Um Construtor de Modernidades: 500 anos das teses de Lutero.” Es lebe Luther!

Gil Vicente, (Auto da Feira)
Entra um Serafim enviado por Deus a petição do Tempo, e diz:
SERAFIM: À feira, a feira igrejas, mosteiros,
pastores das almas, Papas adormidos;
comprai aqui panos, mudai os vestidos,
buscai as samarras dos outros primeiros,
os antecessores.
Feirai o carão que trazeis dourado;
ó presidentes do crucificado,
lembrai-vos da vida dos santos pastores
do tempo passado.
Ó Príncipes altos, império facundo,
guardai-vos da ira do Senhor dos Céus;
comprai grande soma do temor de Deus
na feira da Virgem, Senhora do Mundo,
exemplo da paz,
pastora dos anjos, luz das estrelas.
À feira da Virgem, donas e donzelas,
porque este mercador sabei que aqui traz
as cousas mais belas…..

ROMA
Eu venho à feira direita
comprar paz, verdade e fé.
DIABO A verdade pera quê?
Cousa que não aproveita,
e aborrece, para que é?
Não trazeis bons fundamentos
para o que haveis mister;
e a segundo são os tempos,
assim hão-de ser os tentos,
pera saberdes viver.
E pois agora à verdade
chamam Maria Peçonha,
e parvoíce à vergonha,
e aviso à ruindade,
peitai a quem vo-la ponha,
a ruindade digo eu:
e aconselho-vos mui bem,
porque quem bondade tem
nunca o mundo será seu,
e mil canseiras lhe vem.
Vender-vos-ei nesta feira
mentiras vinte três mil,
todas de nova maneira,
cada uma tão subtil,
que não vivais em canseira:
mentiras pera senhores,
mentiras pera senhoras,
mentiras pera os amores,
mentiras, que a todas as horas
vos nasçam delas favores.
E como formos avindos
nos preços disto que digo,
vender-vos-ei como amigo
muitos enganos infindos,
que aqui trago comigo.
ROMA Tudo isso tu vendias,
e tudo isso feirei
tanto, que inda venderei,
e outras sujas mercancias,
que por meu mal te comprei.
Porque a troco do amor
de Deus, te comprei mentira,
e a troco do temor
que tinha da sua ira,
me deste o seu desamor;
e a troco da fama minha
e santas prosperidades,
me deste mil torpidades;
e quantas virtudes tinha
te troquei polas maldades.
E pois já sei o teu jeito,
quero ir ver que vai cá.
DIABO As cousas que vendem lá
são de bem pouco proveito
a quem quer que as comprará.
….
Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:
ROMA Tão honrados mercadores
não podem leixar de ter
cousas de grandes primores;
e quant' eu houver mister
deveis vós de ter, senhores.
SERAFIM Sinal é de boa fé
irem a ela as donas tais,
e pois vós sois a primeira,
queremos ver que feirais
segundo vossa maneira.
Cá, se vós a paz quereis
senhora, sereis servida,
e logo a levareis
a troco de santa vida;
mas não sei se a trazeis.
Porque, senhora eu me fundo
que quem tem guerra com Deus,
não pode ter paz c ' o mundo ;
porque tudo vem dos céus,
daquele poder profundo.
ROMA A troco das estações
não fareis algum partido,
e a troco dos perdões,
que é tesouro concedido
pera quaisquer remissões?
Oh, vendei-me a paz dos céus,
pois tenho o poder na terra.
SERAFIM Senhora, a quem Deus dá guerra,
grande guerra faz a Deus,
que é certo que Deus não erra.
Vede vós que lhe fazeis,
vede como o estimais,
vede bem se o temeis ;
atentai com quem lidais,
que temo que caireis.
ROMA Assi que a paz não se dá
a troco de jubileus?
MERCÚRIO Ó Roma, sempre vi lá
que matas pecados cá,
e leixas viver os teus.
Tu não te corras de mi;
mas com teu poder facundo
absolves a todo o mundo,
e não te lembras de ti,
nem vês que te vás ao fundo.
ROMA Ó Mercúrio, valei-me ora,
que vejo maus aparelhos.
MERCÚRIO Dá-lhe, Tempo, a essa senhora
o cofre de meus conselhos:
e podes-te ir muit' embora.
Um espelho aí acharás,
Que foi da Virgem Sagrada,
co' ele te toucarás
porque vives mal toucada,
e não sentes como estás:
e acharás a maneira
como emendes a vida:
e não digas mal da feira;
porque tu serás perdida,
se não mudas a carreira.
Não culpes aos reis do mundo,
que tudo te vem de cima,
pelo que fazes cá em fundo:
que, ofendendo a causa prima,
se resulta o mal segundo.
E também o digo a vós
e a qualquer meu amigo,
quem não quer guerra consigo:
tenha sempre paz com Deus,
e não temerá perigo.
DIABO Prepósito Frei Sueiro,
diz lá o exemplo velho:
dá-me tu a mi dinheiro,
e dá ao demo o conselho.
…..»

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