O artigo de António Barreto, uma análise
esclarecedora da eterna insatisfação dos homens e também das eternas
discrepâncias que os separam, alcatruzes da nora que ora se escondem no poço,
ora surgem à luz com a sua clara receita de água fertilizante. As mudanças,
ultimamente, têm também a ver, não podemos esquecer, com a instabilidade entre
os povos africanos a quem a bondade das doutrinas humanas trouxe as
independências, não favorecedoras, na sua maioria, de bem-estar e liberdade,
mas de sujeição a chefes ditadores, ávidos de domínio, que expulsaram os seus naturais
para a mesma Europa, em busca da paz a que tinham direito. Para além das velhas
questões no médio Oriente, que logo desgastaram o aparente paraíso em que a
Europa deveria, de facto, viver, após a injecção de dinheiros fornecida
fraternalmente pelos países mais ricos aos mais carenciados, para criarem as
estruturas possibilitadoras do seu bem-estar.
Foi, de facto, um maná por cá, vê-se que esse
problema do empréstimo não afecta António Barreto, ao afirmar que Meio
século de esplendoroso progresso parece ameaçado. Como se esse
esplendoroso progresso, no nosso caso, tivesse resultado do nosso esforço, no
sentido de produzir mais riqueza não só para beneficiarmos dela, como para
saldarmos a dívida monstruosa que fizemos. O certo é que durante muito tempo vivemos bem, mas com
dinheiro alheio, que não há meio de saldarmos. Criámos estruturas de bem-estar,
de desenvolvimento turístico e de protecção social, mas não se vê que o país
produza de forma a afirmar uma independência económica que o liberte da
marginalização relativamente aos outros povos europeus. Como se pode falar em esplendoroso
progresso entre nós, se é feito com dinheiro alheio?
Quanto à relação com o divino, ainda bem que
existe a separação apregoada, também acho repelentes os fundamentalismos
ditadores das modas e provocadores de sofrimento e guerra.
A democracia, a ditadura e o
divino
António Barreto
DN, 8/1/17
Após
cinquenta anos de desenvolvimento, de protecção social, de paz e de liberdade,
o mundo ocidental entrou em crise. Economias e sistemas políticos não acertam.
As populações não acreditam. As forças centrífugas fazem sentir o seu efeito.
Em quase todos os países democráticos surgem perturbações e ameaças difíceis de
conter. Na maior parte desses países, é fácil encontrar o preconceito como
resposta ao preconceito. Ou o nacionalismo como reacção contra a liberdade e o
cosmopolitismo. Meio século de esplendoroso progresso parece ameaçado.
Estamos
a viver tempos difíceis. As democracias estão a falhar. São como aqueles
motores de automóvel que, aos soluços, dão sinais de que alguma coisa,
gasolina, velas ou carburador, está a falhar. As democracias têm tido
enormes dificuldades em lidar com a fúria capitalista e a ganância financeira.
Têm revelado fraqueza em tratar com as esquerdas revolucionárias. São débeis na
reacção ao nacionalismo. Têm mostrado pusilanimidade em combater os grandes
grupos económicos multinacionais. Não conseguem sobrepor-se à ditadura das
sondagens, da publicidade e da propaganda. Têm tendência para deixar crescer as
desigualdades sociais. Perdem o sentido de Estado e rendem-se facilmente ao
mercado. São frágeis perante a demagogia das esquerdas e o populismo de toda a
gente. Têm medo dos estrangeiros, dos refugiados e dos imigrantes. Têm receio
de parecer racistas. Quase conseguem conviver com o terrorismo, sobretudo o
reclamado pelas minorias. Encontram razões sociais, origens familiares e causas
políticas para explicar, justificar e desculpar o crime, o terrorismo, a
violência doméstica, o insucesso escolar e a falta de disciplina. Têm medo de
parecer autoritários. As democracias deixam-se deslizar e não conseguem evitar
a deriva da demagogia e do preconceito.
Democratas
começam a pensar que, se a democracia não é capaz de combater esses novos
inimigos, talvez seja de imaginar soluções mais duras, nacionalistas de
esquerda ou de direita, capazes de contrariar os estrangeiros, liquidar o
mercado e eliminar a iniciativa privada. Uns procuram recorrer à religião e ao
divino, sejam os cultos estabelecidos sejam as novas seitas. Outros, pelo
contrário, culpam o divino e procuram contrariar todo e qualquer contributo das
religiões para a vida colectiva.
Dentro
e fora da democracia, os esforços para casar governo e igreja, para ligar
política e religião, sucedem e aumentam. Donald Trump não gosta de Darwin e
já fez declarações arrepiantes sobre os fundamentos religiosos da família.
Putin vai buscar os chefes da Igreja Ortodoxa cada vez que se vê atrapalhado.
Enquanto o Papa Francisco irrompe pelos territórios tradicionais da esquerda,
as direitas europeias afastam-se da religião ou sonham com uma restauração
tridentina. Na China, os poderes procuram de novo em Confúcio uma ajuda para o
comunismo do dia. Noutros países asiáticos, tenta-se encontrar em Buda
colaboração para combater os temores. Em Israel, em Gaza, em Teerão, em Riade,
em Bagdad, em Manila e em Jacarta os Estados tentam conviver com a religião e
convencer os fiéis. Na Turquia, Erdogan revê as relações do Estado com a
religião. Noutros casos, a religião apodera-se das alavancas dos poderes
políticos e militares.
Há
ditadores que encontram fácil ligação com os deuses e as igrejas. Outros que se
lhes opõem ferozmente. Há igrejas que combinam bem com o poder político
ditatorial. Outras que calam e consentem. Outras ainda que não consentem e são
caladas.
Apesar
da escravatura, mau grado a Inquisição, não obstante a contra-reforma e outras
formas de cumplicidade das igrejas com o pior das políticas, os cristãos têm a
seu crédito a fundamental separação entre Deus e César, entre a Igreja e o
Estado e entre a Bíblia e a Constituição. Não é pouca coisa.
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