segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Sem sentido hoje, o “Tudo vale a pena” de Pessoa



Li o texto de António Bagão Félix, a contrair-me no medo de avançar, na repugnância pela casta humana, cuja inteligência o encaminha para exibir todas as sendas do Mal, da mesma forma que o Bem é exposto, hoje, e disso não vem tanto mal ao Mundo, podendo servir de exemplo a outras acções meritórias, embora seja comum citar-se o texto do “Sermão na Montanha” no qual Jesus adverte contra o exibicionismo da esmola: (6:1-4): «Tende o cuidado de não praticar as vossas boas acções à frente das pessoas para serdes vistos por elas. Se assim não for, não tendes recompensa da parte do vosso Pai que está nos céus. Quando praticares a dádiva de esmolas, não mandes tocar trombetas à tua frente como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelas pessoas. Amém vos digo: têm a sua recompensa. Ao dares esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a direita, para que fique a tua esmola em segredo. E o teu Pai, que vê no que está escondido, recompensar-te-á.» (Tradução de Frederico Lourenço).
É claro que tal virtude de ocultação do Bem - não tão Bem assim, porque afinal sempre na mira do prémio, que o próprio Cristo certifica (como se não existisse, no próprio ser racional, a sua própria consciência e livre arbítrio para optar pela via que entende certa, sem pensar em recompensa ou castigo) - essa ocultação não é possível hoje, em que até mesmo os supermercados a cada passo têm instaladas bancas para as causas da nossa sensibilidade à dor, pedindo para o cancro, para as crianças, para os animais, para os sem abrigo. Jesus, se vivesse hoje, sentir-se-ia ainda mais chocado do que no seu tempo de trombetas a anunciar a prática da generosidade de estardalhaço dos frequentadores da sinagoga.
Mas não é do Bem que trata o artigo de Bagão Félix, mas sim da exibição do Mal em todo o esplendor do seu horror a ser escarrado na face de quem quiser assistir.
É certo que muitas coisas extraordinárias de calibre monstruoso de crueldade ou vileza passaram no mundo sempre, e continuam a passar, na tropelia dos tempos, bonança e paz sempre alternando, o Mal só mais tarde conhecido em toda a sua dimensão, como se houvesse pudor de o revelar ou o receio do castigo imediato, os livros descrevendo-o em termos de generalização abstracta ou de simbolismo transformado em arte.
Mas os meios audiovisuais, interesseiramente e despudoradamente ruidosos, constroem hoje as realidades brutalmente despidas de contenção, tudo servindo para trazer à tona os instintos mais perversos da espécie humana, desde os filmes de violência e horror de que os próprios canais para crianças estão recheados na técnica espectacular dos desenhos animados, de par, é certo, com outros mais construtivos do carácter.

O texto de Bagão Félix, que não releio, na indignação contra a espécie humana da mais absoluta e sinistra iniquidade, recebeu excelente comentário que não posso deixar de transcrever:
De Henrique Ferreira: «Este texto é um alerta extremamente importante sobre os limites da degradação da natureza humana, que já todos conhecemos, e que, por isso, não é necessário repetir ou recriar para gozo sádico de espectadores mais sádicos ou inadvertidos. O risco de futuro mimetismo é elevado dado o poder da imitação no comportamento humano, sobretudo quando dá retorno. De resto, a violência devia estar excluída da TV e do Cinema pois ela tende a ser imitada e elevada à categoria de valor justo e meio adequado para obter um fim. Definitivamente, nestes tempos de pós-modernidade e de pós-verdade, caminhamos inexoravelmente para a destruição de todas as categorias éticas de comportamento humano em sociedade, sob o primado do relativismo e do subjectivismo, mesmo que comunitários.»

Vale tudo, inclusive “tirar olhos”!
A organização pretende que seja uma réplica real dos livros e do filme da saga “Os Jogos da Fome”.
António Bagão Félix
Público, 6 de Janeiro de 2017
Foi notícia fugaz em meados de Dezembro. No meio da enxurrada comunicacional, soube-se que, na distante Sibéria, vai haver um “reality show” onde tudo (não) vale. Um “big brotherno grau mais superlativo da indignidade. “Um jogo para testar a capacidade de sobrevivência”, anunciou o empresário russo da iniciativa. Trinta concorrentes viverão na estepe siberiana, durante nove meses em condições extremas de penúria e frio, enfrentando muitas adversidades, desde animais e flora selvagens (ursos, cobras, cogumelos venenosos…) até às indomáveis intempéries climáticas.
Vai valer tudo, disse o russo. Desde “coisas irrelevantes” como lutar e embriagar-se, até “coisas menos banais” como violar e matar! Na apresentação pública foi dito que está previsto que “cada concorrente consinta que pode ficar mutilado ou até ser morto “. Para se municiarem para a luta pela sobrevivência, os concorrentes (já há uma fila de candidatos!) podem levar até 100 quilos de equipamento, incluindo armas brancas.  Haverá 2.000 câmaras nas árvores espalhadas por 900 hectares e câmaras que cada concorrente terá consigo. Perante a hipótese de tudo poder acontecer, os concorrentes têm de assinar um termo de responsabilidade em que reconhecem o perigo de vida que correm ao participar no ignominioso divertimento.
Vão poder candidatar-se quaisquer pessoas adultas e – repare-se neste pormenor sádico – “mentalmente sãs”! De acordo com o noticiado, serão preparadas por ex-militares da tropa de elite russa, e o vencedor receberá um prémio de 1,6 milhões de euros.
A organização pretende que seja uma réplica real dos livros e do filme da saga “Os Jogos da Fome”, ao mesmo tempo que sublinha que o programa será monitorizado pela polícia, de modo a assegurar o cumprimento da lei.
Ou seja, tudo é permitido, excepto o que não sendo proibido lá dentro é proibido cá fora. Um golpe de marketing ou um incitamento insidioso para ultrapassar a mais vermelha das linhas da vida? A distância entre crime e vitória (ou castigo?) é, aqui, perturbadoramente próxima.
Não deixa de ser curiosa a comparação entre a “regra maioritária” na ex-URSS (tudo era proibido, mesmo o que fosse tido como permitido) e a lógica deste abjecto jogo de vidas (tudo é permitido, mesmo o que possa ser considerado proibido).
Neste jogo, o coração da dignidade da pessoa é esventrado de uma maneira inimaginavelmente sórdida. Os concorrentes serão incitados a se transformarem em infra animais. Sim, porque os animais têm códigos de conduta que sempre respeitam.
É nisto que desemboca a ideia da pessoa como objecto, do mal como instrumento para combater o niilismo e a ausência de sentido de muitas vidas, da banalização levada aos mais insuportáveis limites de violência gratuita e de morte, da falsa e efémera vitória da fama nem que seja pelos piores motivos, da expressão selvagem do egoísmo e da consequente negação do Homem como ser eminentemente social e relacional, da ditadura das audiências num brutal curto-circuito entre o dinheiro e o mercado da lama humana.
São estas permutas relativistas que põe pessoas a caminhar sobre algodão movediço, que anestesiam comportamentos letais e que igualizam, moralmente, fins e meios.
Sempre se poderá contrapor que esta “estória” é lá nos confins do Mundo e é uma insignificante ilhota de degradação da ecologia humana. Bom seria que assim fosse. Não me admira, porém, que face ao “sucesso” desta siberiana ideia, no futuro, com mais ou menos amaciamento, tenhamos concursos semelhantes no mundo ocidental.


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