Sabendo
quanta disparidade existe entre os vencimentos - alguns tão extraordinariamente
elevados num país de tão fracos recursos - caso de trabalhadores das televisões
do entretenimento público, pese embora o seu esforço despendido nas muitas
horas de movimentação e charme madrigalesco ou encantatório, para não falar nos
valores astronómicos de gigantes da bola ou tantos outros que de vez em quando
vêm à baila nas colunas sociais ou nas crónicas mexeriqueiras - a referência ao
vencimento de reforma de um primeiro ministro - 2250 euros líquidos - parece-me
perfeitamente mísera, direi mesmo obscena, e isso me faz justificar tantas das
atitudes de deputados, de acumularem cargos e até mesmo as de Sócrates, embora
as suas práticas fraudulentas sejam menos perdoáveis, tal como as de tantas
outras figuras que a cada passo são trazidas à ribalta mediática do nosso gozo
fofoqueiro.
Os
dois artigos que seguem, de João Miguel Tavares, são bem esclarecedores dessas
misérias que a ambição comporta - mais do que a placidez de uma “aurea mediocritas”
clássica - naturalmente inferiorizada, nos tempos que correm, ante o esplendor
das casas com piscina ou dos carros topo de gama e outras aparelhagens dos
nossos conceitos burgueses de gozo ou felicidade.
Por
isso, a exploração mediática desses escândalos neste nosso país soalheiro mas
propício à penúria, desde tempos remotos, por desequilíbrios educacionais e
sociais então, e agora igualmente, que já vamos tarde nas tentativas
igualitárias - além de que os tais progressos técnicos fazem reduzir os
empregos das gerações futuras e das já presentes, de forma assustadora - por
natural que seja essa exploração mediática pelas pessoas honestas, não deixa de
ser um triste sintoma de toda a nossa penúria, que faz que os “julgamentos” dos
prevaricadores formem panorâmica monocórdica em campo de batalha exposta em
círculo ou quadrado para educação das massas, távola redonda pouco
dignificante, julgo eu, com cabeças a prémio e outras sordidezes de que estamos
fartos, embora não na totalidade.
O
COMUNICADO DA PGR EXPLICADO AOS PRÓ-SÓCRATES
João Miguel Tavares
Público, 18 de março de 2017
O
comunicado da Procuradoria-Geral da República acerca dos prazos para a
conclusão da Operação Marquês tem o mérito de esclarecer uma série de questões
que têm sido desvalorizadas por todos aqueles que só descobriram em 2017 que a
corrupção demora muito a investigar em Portugal. Vale a pena olhar com atenção
para o que lá está escrito - citações de Joana Marques Vidal em itálico,
(e a negrito) comentários meus a
redondo.
O
Ministério Público já analisou suficientemente muita da prova recolhida, podendo
efectuar um juízo sobre a mesma, uma vez que se encontra solidificada.
Tradução
para os pró-socráticos: vai mesmo haver acusação. Porque é que não se fechou de
uma vez o inquérito? Porque falta analisar a prova. Porque é que falta analisar
a prova? Porque os dez magistrados do Ministério Público e os 22 inspectores
tributários que estão dedicados à Operação Marquês já têm no conta quilómetros
2600 escutas aprovadas, 13.500 milhões de ficheiros informáticos analisados, 260
buscas efectuadas, 170 testemunhas escutadas e nove cartas rogatórias enviadas
para diversos países. Há ainda a razão que se segue.
A
investigação criminal é dinâmica e, à medida que o inquérito evoluía, os
magistrados depararam-se com relações e factos com contornos de natureza
criminal que, no início, não eram expectáveis. Não foram abandonadas as
imputações iniciais mas o inquérito foi progredindo.
Esta
é uma resposta directa à defesa de José Sócrates, que diz que o Ministério
Público andou primeiro à procura de crimes no grupo Lena, como não encontrou
passou para o Vale de Lobo, e de seguida para a PT.A procuradora-geral da
República nega essa tese. Os crimes referidos no início do processo mantêm-se. Simplesmente
juntaram-se outros no decorrer da investigação.
Até
finais do ano passado, já tinham sido apreciados cerca de 350 requerimentos
apresentados por arguidos e, no Tribunal da Relação de Lisboa, tinham dado
entrada mais de 50 peças processuais relativas a recursos e outros incidentes
suscitados pelas defesas.
A
defesa de José Sócrates queixa-se muito da demora do processo ao mesmo tempo
que contribui diariamente para ela, com um nível de litigância absurdo. Cada
recurso apresentado por Sócrates exige uma resposta demorada do Ministério
Público - e, tirando o famoso caso do recurso relatado pelo juiz Rui
Rangel, todos os outros foram indeferidos. O PÚBLICO de ontem fazia as
contas: a Relação já recebeu 33 recursos, a defesa vai em 13 multas por atrasos,
e só em custas judiciais (sem contar com os honorários dos seus advogados), José
Sócrates foi obrigado a desembolsar 17 mil euros. Tendo em conta que o seu
único rendimento conhecido é uma subvenção vitalícia de 3800 euros mensais (2250 líquidos), ele já
investiu sete meses e meio de salário em recursos fracassados. Ninguém sabe
qual será o Carlos Santos Silva de José Sócrates neste momento, mas o ponto
principal é este: se o atraso na acusação é uma vergonha, Sócrates não se tem
cansado de contribuir para a vergonha desse atraso.
O
pedido de prorrogação do prazo concedido para a conclusão da investigação e da
redacção do despacho final mostra-se justificado e deverá ser atendido.
A
Procuradoria Geral da República fez o que tinha a fazer. José Sócrates e os
seus defensores adorariam que o procurador geral da República ainda se chamasse
Fernando Pinto Monteiro. Felizmente chama-se Joana Marques Vidal.
TENHAM VERGONHA, SENHORES DEPUTADOS
João Miguel Tavares
Público, 21 de Março de 2017
Na
sexta-feira, no Jornal Económico, o jornalista Gustavo Sampaio publicou um
artigo onde demonstra que alguns dos nossos deputados continuam a usufruir de
privilégios eticamente inaceitáveis para compor o ordenado ao fim do mês. Mesmo
num país exaurido e sobreendividado, persistem os pequenos truques e pequenas
leis feitas à medida dos seus bolsos. Desde logo, o Estatuto dos Deputados
admite o inadmissível: em Portugal, pode ser-se simultaneamente deputado da
nação e trabalhar como advogado, consultor, administrador e até accionista de
empresas que celebram contratos com entidades públicas. Só há uma
restrição: os deputados não podem deter mais de 10% do seu capital social.
Como
se já não bastasse este inconcebível estatuto, que é uma porta escancarada
para todo o tipo de promiscuidade, Gustavo Sampaio ainda conseguiu
encontrar oito deputados - quatro do PS e quatro do PSD, para a coisa ficar
equilibrada - que nem essa modestíssima regra cumprem, e que ao mesmo tempo
que circulam pelos corredores do parlamento detêm participações superiores a
10% em empresas que andam a assinar contratos com entidades públicas. Vale a
pena analisar dois dos oito exemplos citados no artigo, para que se perceba a
gravidade do que está em causa.
Comecemos
por Renato Sampaio, do PS, um dos principais fiéis de José Sócrates, que
no final de 2014 até fez questão de simbolicamente sair a meio do congresso do
PS que consagrou António Costa para ir à prisão de Évora visitar o seu velho
amigo. Segundo o Jornal Económico, a mulher de Renato Sampaio possui 15% da
empresa Nuno Sampaio - Arquitecto Lda (à Renascença, o deputado garantiu que
não são 15% mas 8%), estando os restantes 85% nas mãos do seu filho Nuno .Desde
2009, essa empresa obteve 15 contratos por ajuste directo com o Estado, num
valor total de 716 mil euros. A tranche mais elevada - 204 mil euros - foi contratada (por ajuste
directo, claro) em 2010, à boleia do saudoso Parque Escolar, para elaboração do
projecto de arquitectura de uma escola em Castelo de Paiva. Ah, como é
bonito o amor paternal: o pai é deputado do PS; o filho ganha a vida a desenhar
escolas públicas durante um governo do PS. Alguma incompatibilidade? Desde que
o papá ou a mamã tenham menos de 10% da empresa do filho, nenhuma.
E
agora passemos ao PSD, num caso tão ou mais problemático, pois envolve o seu
líder parlamentar, Luís Montenegro. Montenegro deputa e advoga, como a
lei permite, possuindo 50% do capital social da sociedade de advogados Sousa
Pinheiro & Montenegro(SP&M).
Ora,
entre 2014 e 2017 a SP&M obteve seis contratos por ajuste directo com
entidades públicas.
O
valor dos contratos não é extraordinariamente elevado - 188 mil euros -, mas a
sua origem é extraordinariamente escandalosa: quatro vieram da Câmara de
Espinho e dois da Câmara de Vagos. Ora, não só se trata de duas câmaras PSD,
como Luís Montenegro foi presidente da Assembleia Municipal de Espinho entre
2009 e 2013.
Quando
questionado acerca destas pasmosas coincidências, Montenegro afirmou que o
Estatuto de Deputados apenas veda participações acima dos 10% em empresas de
comércio ou indústria, o que não abrange uma sociedade de advogados. Por isso,
garante, está “100% seguro” de que não há qualquer incompatibilidade. Talvez
não haja. Mas é 100% óbvio que deveria haver. Tenham vergonha, senhores
deputados: legais ou ilegais, isto são negócios aviltantes, que desacreditam a
democracia portuguesa.