«O acordismo militante ou o
doce dom de iludir», mais
um artigo que me dou ao rude trabalho de copiar, no companheirismo ignorado mas
sentidamente “ratificado” pela minha consciência não de militância mas de
esclarecimento, ainda que modesto, à qual repugnam, naturalmente, os
malabarismos “casteleiros” dos nossos construtores de “castelos de
cartas” que uma baforada de ar poderia destruir, mas que as baforadas,
conjugadas com as bacoradas, da nossa castelania de chiqueiro mantêm rijamente
de pé, protegidos que são, tais castelos de escolha múltipla, por toda a
argamassa chiqueiral que compõe actualmente o nosso terreno pátrio. O texto de
Nuno Pacheco é suficiente em esclarecimento. Que nunca o “bafo” lhe falte,
severo e recto. Pode ser que um dia o castelo de cartas dos nossos casteleiros,
não tanto de chiquismo mas de chiqueiro, acabe por se estender ao comprido na
vasa fedorenta.
O mal é que, entretanto, com tanto
experimentalismo mais de “ventre” do que de “cabeça”, da nossa augusta “racionalidade”,
todos nós nos estenderemos, no fedor da nossa passividade e desvergonha
cobarde, ante a doçura ilusionista, a merecer rija carta de retratação “à
Dâmaso Salcede”, mesmo que com baforadas impregnadas de álcool. A todo o
momento esperamos o pedido de desculpas dos macaqueadores do AO, ainda que em
carta de baixo calibre, tal como a carta imposta a Dâmaso por João da Ega, por
uma vilania por aquele cometida contra Carlos da Maia e que Ega compõe com o
requinte da sua verve destrutiva inimitável. Não resisto a transcrever esse passo,
do capítulo XV de Os Maias, para, momentaneamente esquecer a bestialidade.
Opinião
O acordismo militante ou o doce dom de iludir
O
acordo ortográfico foi feito “porque havia duas ortografias oficiais para a
língua portuguesa”. É curioso: continua a haver.
16
de Fevereiro de 2017, 7:50
Isto
talvez pareça demasiado bizarro para o comum dos mortais, mas as guerras da
ortografia em Portugal continuam acesas e, pelo menos aos interessados (que
deviam ser todos), recomendam-se. Depois das propostas de revisão apresentadas
pela Academia e da polémica que opôs o ministro Santos Silva a Manuel Alegre,
veio a terreiro o "pai" da coisa, em defesa da sua "dama"
(salvo seja). Primeiro num artigo de opinião no Expresso (intitulado,
bombasticamente, de "Atentado na Academia das Ciências") e depois
numa longuíssima entrevista ao Observador, João Malaca Casteleiro veio dizer
que mudanças no acordo ortográfico "não têm pés nem cabeça"
O
que argumenta, então, o insistente Malaca? Que o acordo foi feito “porque havia duas ortografias oficiais
para a língua portuguesa”. E que isso trazia problemas ao ensino. É
curioso: continua a haver duas ortografias e pioraram (bastante) os problemas
no ensino. Depois, diz que outra das razões a ter em conta é “os alunos nas
escolas fugirem dos acentos como o Diabo da cruz” [e, segundo a transcrição,
riu-se].E o que fazer a alunos que fogem das aulas como o diabo da cruz? Libertá-los
em definitivo do ensino? Terceiro argumento: fez-se esta “unificação” (a
“98%”) porque a “unificação absoluta é inviável”. Deve ter sido por isso
que Portugal criou divergências na escrita de numerosas palavras (receção agora
em Portugal, contra recepção no Brasil) que antes se escreviam da mesma
maneira?
Querem
mais argumentos fantásticos?
Vejam
este: ele diz que, em 1990,”tínhamos admitido algum aperfeiçoamento”. Porém,
até hoje não mexeu uma palha para mudar fosse o que fosse; e agora diz que mudar
seja o que for “é contraproducente” e “não tem pés nem
cabeça”. Ora bem: sendo assim, porque é que noutra passagem da entrevista
ele admite que podem ser feitas correcções no Vocabulário
Ortográfico Comum? Então afinal pode-se mudar ou não se pode? Já agora, falando
do almejado vocabulário, recorde-se que Malaca, num parecer de 2005, garantia
estar pronto (no Instituto de Lexicologia da Academia das Ciências, quando ele
por lá imperava) ”para efectuar, num prazo de seis meses, uma primeira
versão do referido Vocabulário, com cerca de 400 mil entradas léxicas.”
Passaram
uns bons 12 anos e o VOC? Nem vê-lo. Prometem-no agora para Maio. Seis meses,
hã? 400 mil entradas lexicais, hã? O que é que parece errado aqui, digam?
Deve
ser, com certeza, o calendário. Outro argumento para não mexer em nada é
que o acordo é internacional. Pois é. Mas por um passe de pantomina
jurídica até entrou em primeiro, como devia, se isto não fosse uma farsa (Moçambique
e Angola ainda não o ratificaram), na ordem jurídica internacional.
A
leitura da entrevista é muito instrutiva, para quem queira dar-se a esse
trabalho. A um trabalho devia dar-se o Observador, já agora: substituir na
entrevista “retificado” e “retificação” por “ratificado” e “ratificação”, já
que é uma ratificação pelo Parlamento que o texto refere .Mas se disso Malaca
não tem culpa (e sim o jornal), tem culpa de tudo o resto. Diz,por exemplo: ”Não
estou a participar nem estou a acompanhar a questão do vocabulário Comum”; mas
logo umas linhas abaixo, esclarece: ”Acho que eles têm feito um bom trabalho”. Acha?
Mas acha como , se não acompanha? Deve ser da mesma forma que acha que “as
vozes contra não tiveram grande expressão” no momento em que se discutiu e
votou o acordo, quando é público que foram pedidos vários pareceres e que
todos eles ,incluindo o da Comissão Nacional da Língua Portuguesa, foram
desfavoráveis ou bastante críticos excepto um. Advinham qual? O assinado pelo
próprio Malaca, orgulhoso defensor da sua “dama”.
O
problema, mais para todos nós do que para Malaca (que continua arauto do
inqualificável texto que patrocinou sem que lhe peçam, seriamente, contas pelas
muitas promessas não cumpridas), é que a “dama” dele é mais aparentada à “noiva
cadáver” inventada por Tim Burton do que a uma senhora a quem devemos respeito.”
Não podemos andar a mudar de ortografia assim de forma ligeira. Qualquer
alteração tem de ser muito ponderada porque afecta sic]muita gente”. É
Malaca Casteleiro quem o diz, a fechar a entrevista. Devia tê-lo dito em
1990.Poupava trabalho e muito dinheiro.
Excerto de «Os Maias» (Cap. XV)
«…Justamente
Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o piano, devagar, relendo
baixo.
-
Ficou óptimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em forma de carta ao Carlos, é
mais correcto. Você depois copia e assina. Ouça lá: «Exc.mo Sr... Está claro,
você dá-lhe excelência, porque é um documento de honra... Exc.mo Sr. - Tendo-me
V. Exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Victorino Cruges,
manifestado a indignação que lhe causara um certo artigo da Corneta do Diabo de
que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar
francamente a V. Exc.ª que esse artigo, como agora reconheço, não continha
senão falsidades e incoerências: e a minha desculpa única está em que o compus
e enviei à redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado
de embriaguez...»
Parou.
E nem se voltou para o Dâmaso, que deixara pender os braços, rolar o charuto no
tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monóculo:
-
Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a única maneira
de ressalvar a dignidade do nosso Dâmaso.
E
desenvolveu a sua ideia, mostrando quanto era generosa e hábil - enquanto o
Dâmaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem ele queriam que o
Dâmaso numa carta (que se podia tornar publica) declarasse «que caluniara por
ser caluniador». Era necessário, pois, dar à calúnia uma dessas causas
fortuitas e ingovernáveis que tiram a responsabilidade ás acções. E que melhor,
tratando-se dum rapaz mundano e femeeiro, do que estar bêbedo?... Não era
vergonha para ninguém embebedar-se... O próprio Carlos, todos eles ali, homens
de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso
era uma higiene e um luxo, muitos grandes homens na História bebiam de mais. Em
Inglaterra era tão chic, que Pit, Fox e outros nunca falavam na Câmara dos
comuns senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bêbedo! Enfim a História, a
Literatura, a Política, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Dâmaso
se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que
apanhara uma carraspana e que cometera uma indiscrição... Nada mais!
-
Pois não te parece, Cruges?
-
Sim, talvez, que estava bêbedo, murmurou o maestro timidamente.
-
Pois não lhe parece a você, francamente, Dâmaso?
-
Sim, que estava bêbedo, balbuciou o desgraçado.
Imediatamente
Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim reconheço, como sempre reconheci
e proclamei, que é V. Exc.ª um carácter absolutamente nobre; e as outras
pessoas, que nesse momento de embriaguez ousei salpicar de lama, são-me só
merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a
suceder soltar eu alguma palavra ofensiva para V. Exc.ª não lhe devia dar V.
Exc.ª, ou aqueles que a escutassem, mais importância do que a que se dá a uma
involuntária baforada de álcool - pois que, por um habito hereditário que
reaparece frequentemente na minha família, me acho repetidas vezes em estado de
embriaguez... De V. Exc.ª, com toda a estima etc....» Rodou sobre os tacões,
pousou o rascunho na mesa - e acendendo o charuto ao lume do Dâmaso, explicou
com amizade, com bonomia, o que o determinara àquela confissão de bebedeira
incorrigível e palreira. Fora ainda o desejo de garantir a tranquilidade do
«nosso Dâmaso». Atribuindo todas as
imprudências em que pudesse cair a um hábito de intemperança hereditária, de
que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Dâmaso punha-se para
sempre ao abrigo das provocações de Carlos...
-
Você, Dâmaso, tem génio, tem língua... Um dia esquece-se, e no Grémio, sem
querer, na cavaqueira depois do teatro, lá lhe escapa uma palavra contra
Carlos... Sem esta precaução, aí recomeça a questão, o escarro, o duelo...
Assim já Carlos não se pode queixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma
gota de mais, a gota tomada por impulso de borrachice hereditária... Você alcança deste modo a
coisa que mais se apetece neste nosso século XIX - a irresponsabilidade!...
E depois para a sua família não é vergonha, porque você não tem família. Em
resumo, convém-lhe?
O
pobre Dâmaso escutava-o, esmagado, enervado, sem compreender aquelas roncantes
frases sobre «a hereditariedade», sobre «o século XIX». E um único sentimento
vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e
de escarros. Encolheu os ombros, sem força:
-
Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar falatórios.
E
abancou, meteu um bico novo na pena, escolheu uma folha de papel em que o
monograma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra,
com finos e grossos, duma nitidez de gravura em aço.
Ega
no entanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da
mesa, seguindo sofregamente as linhas que traçava a mão aplicada do Dâmaso,
ornada dum grosso anel de armas. E durante um momento atravessou-o um susto...
Dâmaso parara, com a pena indecisa. Diabo! Acordaria enfim, no fundo de toda
aquela gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Dâmaso
alçou para ele os olhos embaciados:
-
Embriaguez é com n ou com m?
-
Com um m, um m só, Dâmaso! acudiu Ega afectuosamente. Vai muito bem... Que
linda letra você tem, caramba!
E
o infeliz sorriu à sua própria letra - pondo a cabeça de lado, no orgulho
sincero daquela soberba prenda.
Quando
findou a cópia foi Ega que conferiu, pôs a pontuação. Era necessário que o
documento fosse chic e perfeito.
-
Quem é o seu tabelião, Dâmaso?
-
O Nunes, na rua do Ouro... Porquê?
-
Oh! nada. É um detalhe que nestes casos se pergunta sempre. Mera cerimónia...
Pois amigos, como papel, como letra, como estilo, está de apetite a cartinha!
Meteu-a
logo num envelope onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou-a
preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéu, batendo
no ombro do Dâmaso com uma familiaridade folgazã e leve:
-
Pois, Dâmaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fora de portas, numa poça
de sangue! Assim é uma delícia. E adeus... Não se incomode você. Então o grande
sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem...
Adeus!
Mas
o Dâmaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar
reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltara:
-
Isso não se mostra a ninguém, não é verdade, Ega?
Ega
encolheu os ombros. O documento pertencia a Carlos... Mas enfim Carlos era tão
bom rapaz, tão generoso!
Esta
incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Dâmaso:
-
E chamei eu àquele homem meu amigo!
-
Tudo na vida são desapontamentos, meu Dâmaso! foi a observação do Ega, saltando
alegremente os degraus.
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