Um jornal cheio de artigos e notícias para se
pensar, o Público. Este de 28 de Fevereiro está bem provido, mas a
Direcção não deixa nem ler nem transpor sem financiamento, impondo um trabalho
árduo dactilográfico a quem deseja guardar certos textos, que não só oferecem
uma imagem das nossas gentes, mas que revelam qualidades literárias de algumas
figuras nacionais, e nos tornam felizes, (tal como me sentia quando em tempos
me dedicava ao ensino e encontrava qualidades de escrita ou outras nos
espíritos que ajudava a desbravar). Tenho pena por esta interdição, por gostar
de tantos seus articulistas, como é o caso de João Miguel Tavares, que
apresenta uma excelente capacidade crítica, além de boa informação
jornalística. O que conta no seu artigo de 28/2 é, naturalmente, grave,
relativamente às contínuas histórias sobre contínuos infractores de colarinho
branco que vão arrasando moralmente a credibilidade de um país que vive de
crédito e não há meio de se livrar da sua dívida. Mas acho que não são só as
elites que por aqui acham meios para obter pela fraude e a falta de escrúpulos as
suas fontes de rendimento. Durante muitos anos, já o disse, comprei a prestações,
até mesmo os livros que apetecia, tanto cá como estudante, como em África, como
funcionária, e novamente cá, como reiniciante de um viver imposto pelas
contingências da nossa História, célula tentando recuperar uma consciência de
continuidade, no seu tecido desconjuntado pelos trambolhões. As prestações eram
necessárias, para a satisfação das necessidades, e o dia do “vencimento” era o
dia de as ir saldando. E não me esqueço da pessoa que me vendia as máquinas
eléctricas das minhas comodidades, estabelecida aqui há largos anos, afirmando que
pouca gente era assim tão pronta a pagar, o que me espantava. Ainda hoje
conheço casos de empresas de trabalho a quem só a custo esse trabalho é pago, sendo
necessário ir bater às portas dos devedores, algumas contas definitivamente
esquecidas, por fuga para o estrangeiro dos responsáveis por elas. Donde concluo
que a esperteza de “enrolar” os outros não está só nas “elites”, faz parte da
nossa falha de educação cívica, que se pauta pelo respeito a valores.
A nossa trajectória histórica, de um país outrora
fechado à evolução científica de outros países europeus, em virtude de um
ensino entregue a um clero renitente a ultrapassar os dogmas da sua erudição,
tornou-nos assim virados para as nossas coisinhas e as espertezas da nossa
calaceirice ambiciosa. Isso explica o que se tem passado por cá, e mais esses
casos dos offshores antigos, agora descobertos e mal esclarecidos.
João Miguel Tavares tenta explicar. Eu acrescento, em corolário, o
final de um artigo do mesmo “Público”, de António Bagão Félix,
em tom bastante faceto, sobre a tolerância de Carnaval e explicando as origens
da palavra (“carne vale”- adeus carne (uma das hipóteses, por se
entrar na abstenção da quaresma), ou mesmo da palavra “Entrudo”(introitus ”, começo da Quaresma). Termina assim o texto de
Bagão Félix:
«Por falar em máscaras - as do Carnaval,
entenda-se - este ano está a ser uma “trumparia”. De tal sorte que uma das
máscaras eleitas é a do Presidente americano, nas suas diversas poses.
Mas no final do dia, acaba a tolerância. E surge-me
na memória uma frase cada vez mais actual de Vergílio Ferreira: «Que ideia a
de que no Carnaval as pessoas se mascaram. No carnaval desmascaram-se».
Três dias de Carnaval ou 362 com Carnaval?»
Transponho igualmente o poema da «Mensagem”
- «Padrão», para elevar o moral, lembrando as coisas épicas que fomos
capazes de erguer no mundo, com mais orgulho, o padrão actual humilhante apenas:
A “gasosa” das
elites portuguesas
João Miguel
Tavares
Público, 28 de
Fevereiro de 2017
Os
angolanos chamam “gasosa” tanto às bebidas gaseificadas como aos subornos. Se
um polícia o mandar parar em Luanda por qualquer razão, ainda que absurda, é
quase certo que vai ter de pagar “gasosa”. Se precisar de um visto urgente, tem
de pagar “gasosa”. E sempre que exista qualquer participação num negócio lucrativo,
os angolanos, modo geral, querem “gasosa” pelo esforço. Claro que nós,
portugueses impolutos, tendemos a olhar para isto muito sobranceiros, porque
não temos de pagar “gasosa” à polícia nem aos funcionários das embaixadas. É
verdade, e ainda bem – ao nível da pequena corrupção somos, de facto, um país
muito mais sério e decente. Mas será que podemos dizer o mesmo da grande
corrupção? Tenho cada vez mais dúvidas. Quando olho para as elites económicas e
financeiras dos dois países, o que vejo é muita “gasosa” a borbulhar tanto em
Angola como em Portugal.
Se
há algum ponto em que me identifico com as queixas recorrentes de Luanda,
sempre que um alto quadro seu é investigado em Portugal, é esse: também a mim
me irrita a sobranceria de uma virtude inexistente. Perante as graves suspeitas
que incidem sobre o vice-Presidente Manuel Vicente, lá tivemos de levar com os
costumeiros protestos oficiosos e malcriados do regime, via «Jornal de Angola».
Estamos habituados. Contudo, estou convencido de que aquilo que está subjacente
a tauis insultos é a convicção, por parte da elite angolana de que as práticas
da elite portuguesa em nada diferem das suas - por cada tampa de «gasosa» que
se abre em Luanda, há uma garganta que se abre em Lisboa. A única verdadeira
diferença é que nós somos dissimulados, e não chamamos “gasosa” à “gasosa”. A
corrupção não está instituída em toda a sociedade. Está escondida no seu topo.
Basta olhar para a lista actualizada de arguidos da Operação Marquês. Há dez
anos aqueles eram os homens mais poderosos de Portugal. A nossa mais destacada
elite económica. Os jornais faziam vénia à passagem de Zeinal Bava, de Hensique
Granadeiro ou de Ricardo Salgado. Havia entrevistas, perfis de sucesso,
conferências, influência e a habitual sabujice. Nós engolimos explicações que jamais
deveria ter sido aceites por ua sociedade saudável, atenta e minimamente
exigente Salgado recebia 14 milhões de um cliente do BES, chamava a isso uma “liberalidade”,
juntava pareceres de eminentes professores catedráticos a justificar que uma “liberalidade”
era coisa perfeitamente aceitável - e o pessoal encolhia os ombros. Bava
recebia 18,5 milhões do saco azul do BES, só os devolvia depois de começar a
ser investigado, de seguida argumentava tratar-se de um valor que lhe havia
sido “confiado a título fiduciário, consignado a uma finalidade legítima a concretizar
em momento futuro”. Enfiavam-nos dois garfos nos olhos, diziam que se tratava
de uma operação às cataratas, e no fim ainda pagávamos a conta.
Não
admira que os angolanos, que conhecem tão bem o senhor Bataglia, o sr Salgado
ou o sr. Sócrates arranquem os cabelos de raiva quando assistem à velha pátria
lusitana de dedinho em riste, a perorar sobre a lastimável cleptocracia
angolana. Não é que ela não seja lastimável - com certeza que é. Mas nós
andámos décadas a alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o povo tivesse
sequer reparado. Somos apenas mais hipócritas e mais reservados. A “gasosa” é a
bebida favorita das nossas elites - só que é preciso chegar lá para nos abrirem
a porta do bar.
III. PADRÃO
(«Mensagem» - Fernando Pessoa)
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário