segunda-feira, 20 de março de 2017

Isto não é o da Joana!



Valentina é uma mãe moldava, cuja filha se apaixonou em tempos por um rapaz turco, união a que ela se opôs com unhas e dentes. À pergunta sobre o porquê da sua intolerância, respondeu que os turcos são muito maus, embora me parecesse que uma questão racista estava na origem do seu repúdio de mãe zelosa. Como sou democrata, achei que a Valentina tinha o direito de ser racista, na liberdade de opções com que a natureza humana dotou a racionalidade humana. O tempo provou que a teoria de Valentina sobre a maldade dos turcos estava certa, pois a filha foi desprezada e maltratada pelo namorado e tudo acabou não em tragédia mas em separação. Hoje a filha de Valentina é feliz, casada com um moldavo, de quem tem uma filha a quem, sensatamente, ela talvez transmita as mesmas normas maternas sobre as relações humanas - nem sempre, todavia, impeditivas, e antes favorecedoras de muitas tragédias que os literatos descrevem, com maior ou menor profundidade emocional.
Como estes assuntos entre os povos têm as suas justificações próprias e pontos de vista diversos, resolvo acrescentar ao artigo de António Barreto sobre a intromissão dos Turcos em terra alheia para os seus jogos de poder, os comentários que o mesmo artigo favoreceu, repetindo o último comentário - o de Daniel Carr - uma interrogação como ponto de partida de reflexão, para repor a questão com sensatez e sem demagogias tolas, de quem só quer ver um lado da questão - o da abertura generosa a todos, sem análise das consequências desastrosas dela pendentes: «É grave que um País impeça estrangeiros de fazer propaganda política relativa ao estrangeiro no território do País em questão?»
Eu não acho isso grave, mas antes, saudável.
Nós e os Turcos
António Barreto
DN, 19/3/17
O acontecimento não tem precedentes. Dois ministros de um país da NATO e candidato à União Europeia foram impedidos de entrar na Alemanha e na Holanda, países membros de ambas organizações, assim como de realizar reuniões com os seus concidadãos. Pretendiam falar em comícios relativos a um referendo constitucional que vai realizar-se na Turquia. Os habituais protestos europeus, de esquerda ou de direita, foram praticamente nulos. O presidente turco tratou os alemães e os holandeses de fascistas.
Com 75 milhões de habitantes, um dos maiores exércitos do mundo, bases americanas activas (equipadas com bombas nucleares) e uma posição de charneira importante, a Turquia e o seu presidente Erdogan têm má imprensa e má opinião pública. Porque são turcos, porque são muçulmanos, porque são de direita, porque o regime é quase uma ditadura e porque os europeus não os querem na União. Mas também porque há muitos turcos na Holanda (400 000) e na Alemanha (3 500 000) e porque o tema dos imigrantes, especialmente muçulmanos, é muito sensível em ano eleitoral.
A complexidade do problema explica o silêncio. A esquerda calou-se, envergonhada, porque simpatiza com os muçulmanos e com os imigrantes, porque lhe custa defender a ideia de que os estrangeiros "de direita" possam fazer reuniões políticas no estrangeiro, porque não gosta de Erdogan e porque espera que a Turquia fique com os refugiados que estão lá depositados. A direita calou-se, envergonhada, porque não gosta de imigrantes, porque não gosta que muçulmanos façam reuniões políticas nos países de acolhimento e porque espera que os refugiados depositados na Turquia lá se mantenham. Ambas, esquerda e direita, preferiram o silêncio: era problemático defender os direitos dos estrangeiros ou dos muçulmanos. Ou dos turcos.
A questão é difícil. Já se pensou no que aconteceria se os manifestantes fossem judeus, palestinos, ucranianos, russos, sírios, iranianos, arménios, chineses ou angolanos? A favor ou contra os seus governos? A favor ou contra as políticas dos países onde residem? Com ou sem colaboração dos governos dos países de origem? Os estrangeiros são legais ou ilegais? A favor ou contra a democracia? Ajudam ou dificultam as relações entre os Estados? Põem em causa outras minorias? Como é evidente, a questão é grave e complexa.
Os países europeus reagiram por conveniência. Sem política geral nem leis adequadas. Mas essa não é a solução. Os critérios não podem ser de conveniência, isto é, conforme os manifestantes, os países estrangeiros ou a cor dos governos.
Há quarenta anos, os estrangeiros não podiam "fazer política" nos países europeus. Na maior parte, pelo menos. Nem em relação ao país de origem, nem a propósito de assuntos nacionais locais. Depois, veio a União, o alargamento, a livre circulação, Schengen, as migrações em massa, a globalização, o reconhecimento de novos direitos, a possibilidade de muitos imigrantes votarem em eleições locais e a faculdade de imigrantes votarem por correspondência nas eleições dos seus países. Além da generalização da dupla nacionalidade. Por cima de tudo, houve uma tolerância crescente das democracias europeias. Já se fizeram reuniões, comícios e manifestações de toda a gente, de todas as origens e a propósito de tudo! Por isso, o que aconteceu agora é de gravidade imensa. Até talvez haja motivos para defender o que se fez. Mas a via era a da diplomacia e a da lei.
Não chega afirmar que Erdogan é um ditador ou quase. Já vieram à Europa dezenas de ditadores muçulmanos, eslavos, asiáticos, africanos e latino-americanos. Não seria novidade, nem esse é o critério. Também não chega declarar que não é oportuno, dada a realização de eleições locais: os direitos dos cidadãos não se alteram com a proximidade das eleições. A Europa tem de reapreciar a questão dos direitos políticos dos europeus e dos não europeus e de tomar decisões sérias e dignas, não erráticas, ao sabor das conveniências e das negociações de circunstância.
Comentários da Internet, ao texto de António Barreto:
Leonor Raven: O António Barreto esquece-se que muitos dos turcos na Alemanha e na Holanda têm passaportes desses países. As manifestações de arruaceiros só vieram demonstrar que são os próprios turcos que se põem à parte das sociedades de que têm as nacionalidades e a que pelos vistos não querem pertencer. Não sei como foi na Alemanha, mas na Holanda o primeiro-ministro repetiu várias vezes que a campanha eleitoral turca não era bem-vinda, eles próprios estavam com uma campanha eleitoral em mãos. Os turcos ignoraram todos os apelos ao bom senso e civilidade entre nações. A ministra turca foi detida depois de saber que não era bem-vinda. Houve várias caravanas de turcos saídas da Alemanha tomando diferentes rotas a fim de despistar as autoridades holandesas. Se isto não é teimosia, arrogância e má-fé então não sei o que será.
Francis Francis: Conversa!!! Um dos problemas, como é óbvio, é o Erdogan. Porém a questão do estatuto do candidato à UE é mais complexo. Pode dar jeito mais uns milhões de consumidores, mas a questão cultural nos dias que correm é muito importante (mesmo com as sensibilidades multiculturais). A Turquia pertence a um mundo com abordagens onde as "questões da atualidade" estão a anos-luz das visões ocidentais. Por outro lado, a Turquia mantém presente uma ideia histórica agarrada ao império (otomano) e aos processos pós-coloniais. O ruído do Erdogan visa, essencialmente, o reforço do ditador e o processo da criação de uma zona de influência que pode passar por partes de território de outros...como a questão curda. Culturalmente, e quem já teve a possibilidade de trabalhar com a comunidade turca, percebeu que falamos de outro mundo. Basta ver os processos de integração dos turcos nos países da comunidade europeia... onde eles "funcionam de forma paralela".
Maria Rebeca: Em final dos anos 80, viajando pelo extremo oriental da Turquia, ouvia turcos que me perguntavam: acha justo que tenhamos aqui a NATO e não nos aceitem na CEE? Eu fazia um sorriso amarelo e pensava nos perigos da "invasão" turca da Europa, perante a "facilidade" de circulação de pessoas e bens (naquela época, tudo o que vestíamos era made in Turkey, lembram-se?). Mas a minha grande questão era, mesmo sendo a Turquia ainda um país laico: como será possível integrar uma cultura TÃO diferente? Quem, na Europa, não foi capaz de conduzir o barco durante estes trinta anos, nomeadamente por "analfabetismo cultural", é o responsável pelo que aí virá.
Antonio Salgueiro: Mas se falamos de vistas largas também poderíamos ver os 38 milhões de curdos, entalados entre a Turquia, a Síria, o Iraque e o planalto iraniano, donos de lindas montanhas, de valiosos poços de petróleo e das nascentes da água dramática da região. Será que vão continuar filhos de um deus minorca como aconteceu durante muito tempo aos vizinhos arménios?...
Daniel Carr: É grave que um País impeça estrangeiros de fazer propaganda política relativa ao estrangeiro no território do País em questão?

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