Valentina
é uma mãe moldava, cuja filha se apaixonou em tempos por um rapaz turco, união
a que ela se opôs com unhas e dentes. À pergunta sobre o porquê da sua
intolerância, respondeu que os turcos são muito maus, embora me
parecesse que uma questão racista estava na origem do seu repúdio de mãe zelosa.
Como sou democrata, achei que a Valentina tinha o direito de ser racista, na
liberdade de opções com que a natureza humana dotou a racionalidade humana. O tempo
provou que a teoria de Valentina sobre a maldade dos turcos estava certa, pois
a filha foi desprezada e maltratada pelo namorado e tudo acabou não em tragédia
mas em separação. Hoje a filha de Valentina é feliz, casada com um moldavo, de
quem tem uma filha a quem, sensatamente, ela talvez transmita as mesmas normas maternas
sobre as relações humanas - nem sempre, todavia, impeditivas, e antes
favorecedoras de muitas tragédias que os literatos descrevem, com maior ou
menor profundidade emocional.
Como estes assuntos entre os povos têm as suas
justificações próprias e pontos de vista diversos, resolvo acrescentar ao
artigo de António Barreto sobre a intromissão dos Turcos em terra alheia para
os seus jogos de poder, os comentários que o mesmo artigo favoreceu, repetindo o
último comentário - o de Daniel Carr - uma interrogação como ponto de partida de
reflexão, para repor a questão com sensatez e sem demagogias tolas, de quem só
quer ver um lado da questão - o da abertura generosa a todos, sem análise das
consequências desastrosas dela pendentes: «É
grave que um País impeça estrangeiros de fazer propaganda política relativa ao
estrangeiro no território do País em questão?»
Eu não acho isso grave, mas antes, saudável.
Nós e os Turcos
António
Barreto
DN,
19/3/17
O acontecimento não tem precedentes. Dois ministros de um país da NATO e candidato à
União Europeia foram impedidos de entrar na Alemanha e na Holanda, países
membros de ambas organizações, assim como de realizar reuniões com os seus
concidadãos. Pretendiam falar em comícios relativos a um referendo
constitucional que vai realizar-se na Turquia. Os habituais protestos europeus,
de esquerda ou de direita, foram praticamente nulos. O presidente turco tratou
os alemães e os holandeses de fascistas.
Com
75 milhões de habitantes, um dos maiores exércitos do mundo, bases americanas
activas (equipadas com bombas nucleares) e uma posição de charneira importante,
a Turquia e o seu presidente Erdogan têm má imprensa e má opinião pública.
Porque são turcos, porque são muçulmanos, porque são de direita, porque o
regime é quase uma ditadura e porque os europeus não os querem na União. Mas
também porque há muitos turcos na Holanda (400 000) e na Alemanha (3 500 000) e
porque o tema dos imigrantes, especialmente muçulmanos, é muito sensível em ano
eleitoral.
A
complexidade do problema explica o silêncio. A esquerda calou-se,
envergonhada, porque simpatiza com os muçulmanos e com os imigrantes,
porque lhe custa defender a ideia de que os estrangeiros "de direita"
possam fazer reuniões políticas no estrangeiro, porque não gosta
de Erdogan e porque espera que a Turquia fique com os refugiados que estão lá
depositados. A direita calou-se, envergonhada, porque não gosta de
imigrantes, porque não gosta que muçulmanos façam reuniões políticas nos países
de acolhimento e porque espera que os refugiados depositados na Turquia lá se
mantenham. Ambas, esquerda e direita, preferiram o silêncio: era
problemático defender os direitos dos estrangeiros ou dos muçulmanos. Ou dos
turcos.
A
questão é difícil. Já se pensou no que aconteceria se os manifestantes fossem
judeus, palestinos, ucranianos, russos, sírios, iranianos, arménios, chineses
ou angolanos? A favor ou contra os seus governos? A favor ou contra as
políticas dos países onde residem? Com ou sem colaboração dos governos dos
países de origem? Os estrangeiros são legais ou ilegais? A favor ou contra a
democracia? Ajudam ou dificultam as relações entre os Estados? Põem em causa
outras minorias? Como é evidente, a questão é grave e complexa.
Os
países europeus reagiram por conveniência. Sem política geral nem leis
adequadas. Mas essa não é a solução. Os critérios não podem ser de
conveniência, isto é, conforme os manifestantes, os países estrangeiros ou a
cor dos governos.
Há
quarenta anos, os estrangeiros não podiam "fazer política" nos países
europeus. Na maior parte, pelo menos. Nem em relação ao país de
origem, nem a propósito de assuntos nacionais locais. Depois, veio a
União, o alargamento, a livre circulação, Schengen, as migrações em massa, a
globalização, o reconhecimento de novos direitos, a possibilidade de muitos
imigrantes votarem em eleições locais e a faculdade de imigrantes votarem por
correspondência nas eleições dos seus países. Além da generalização da
dupla nacionalidade. Por cima de tudo, houve uma tolerância crescente
das democracias europeias. Já se fizeram reuniões, comícios e manifestações de
toda a gente, de todas as origens e a propósito de tudo! Por isso, o que
aconteceu agora é de gravidade imensa. Até talvez haja motivos para defender o
que se fez. Mas a via era a da diplomacia e a da lei.
Não
chega afirmar que Erdogan é um ditador ou quase. Já vieram à Europa dezenas de
ditadores muçulmanos, eslavos, asiáticos, africanos e latino-americanos. Não
seria novidade, nem esse é o critério. Também não chega declarar que não é
oportuno, dada a realização de eleições locais: os direitos dos cidadãos não se
alteram com a proximidade das eleições. A Europa tem de reapreciar a questão
dos direitos políticos dos europeus e dos não europeus e de tomar decisões
sérias e dignas, não erráticas, ao sabor das conveniências e das negociações de
circunstância.
Comentários da Internet, ao texto de António Barreto:
Leonor Raven: O António
Barreto esquece-se que muitos dos turcos na Alemanha e na Holanda têm
passaportes desses países. As manifestações de arruaceiros só vieram
demonstrar que são os próprios turcos que se põem à parte das sociedades de que
têm as nacionalidades e a que pelos vistos não querem pertencer.
Não sei como foi na Alemanha, mas na Holanda o
primeiro-ministro repetiu várias vezes que a campanha eleitoral turca não era
bem-vinda, eles próprios estavam com uma campanha eleitoral em mãos. Os turcos
ignoraram todos os apelos ao bom senso e civilidade entre nações. A ministra
turca foi detida depois de saber que não era bem-vinda. Houve várias caravanas
de turcos saídas da Alemanha tomando diferentes rotas a fim de despistar as
autoridades holandesas. Se isto não é teimosia, arrogância e má-fé então não
sei o que será.
Francis
Francis: Conversa!!! Um dos problemas, como é
óbvio, é o Erdogan. Porém a questão do estatuto do candidato à UE é mais
complexo. Pode dar jeito mais uns milhões de consumidores, mas a questão
cultural nos dias que correm é muito importante (mesmo com as sensibilidades
multiculturais). A Turquia pertence a um mundo com abordagens onde as
"questões da atualidade" estão a anos-luz das visões ocidentais. Por
outro lado, a Turquia mantém presente uma ideia histórica agarrada ao império
(otomano) e aos processos pós-coloniais. O
ruído do Erdogan visa, essencialmente, o reforço do ditador e o processo da
criação de uma zona de influência que pode passar por partes de território de
outros...como a questão curda. Culturalmente,
e quem já teve a possibilidade de trabalhar com a comunidade turca, percebeu
que falamos de outro mundo. Basta ver os processos de integração dos turcos
nos países da comunidade europeia... onde eles "funcionam de forma
paralela".
Maria
Rebeca: Em final dos anos 80, viajando pelo extremo
oriental da Turquia, ouvia turcos que me perguntavam: acha justo que tenhamos
aqui a NATO e não nos aceitem na CEE? Eu fazia um sorriso amarelo e pensava nos
perigos da "invasão" turca da Europa, perante a
"facilidade" de circulação de pessoas e bens (naquela época, tudo o
que vestíamos era made in Turkey, lembram-se?). Mas a minha grande questão era,
mesmo sendo a Turquia ainda um país laico: como será possível integrar uma
cultura TÃO diferente? Quem, na Europa, não foi capaz de conduzir o barco
durante estes trinta anos, nomeadamente por "analfabetismo cultural",
é o responsável pelo que aí virá.
Antonio
Salgueiro: Mas se falamos de vistas largas
também poderíamos ver os 38 milhões de curdos, entalados entre a
Turquia, a Síria, o Iraque e o planalto iraniano, donos de lindas montanhas, de
valiosos poços de petróleo e das nascentes da água dramática da região. Será
que vão continuar filhos de um deus minorca como aconteceu durante muito tempo
aos vizinhos arménios?...
Daniel
Carr: É grave que um País impeça estrangeiros de
fazer propaganda política relativa ao estrangeiro no território do País em
questão?
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