Desta vez uma “eutanásia”
cavalheiresca, que mostra quão incipientes são os argumentos das caprichosas “meninas
Isabéis”, que só uma sociedade igualmente “incipiente” admite como
solucionadora de uma questão que Alberto Gonçalves estudou sem certezas, e que
as meninas Isabéis da nossa orientação política assente em designações do nosso
iluminismo, como essa da “autonomia”, imediatamente resolvem em duas penadas do
seu exibicionismo atrevido e esganiçado. Uma tristeza e uma vergonha que assim
seja.
Público,
14-02-2017
Após
22 anos, as hesitações sobre a eutanásia não desapareceram. Entretanto, porém,
adquiri um hábito saudável. E não é andar de bicicleta: sempre que dou por mim
cheio de dúvidas, procuro a opinião de gente iluminada .
Depois
de conquistados o aborto no SNS, o casamento entre pessoas do mesmo
sexo, a adopção de crianças pelos casais atrás referidos, o
pavilhão do Sporting e os patrocínios à mudança de género, julguei que a
lista das causas "fracturantes" tinha chegado ao fim e podíamos
descansar. Imperdoavelmente, esquecera-me da eutanásia. O
esquecimento é mais grave na medida em que, nos idos de 1995, concluí a
licenciatura com uma tese a propósito. Durante um ano inteirinho, não fiz
outra coisa (salvo seja), a não ser estudar a "boa morte". Li o Philippe
Ariès e o que me apareceu, realizei inquéritos, entrevistei médicos e
cangalheiros, alinhavei dezenas de gráficos, escrevi duzentas páginas, dormi
pouquíssimo. Resultado? Apurei que o assunto é demasiado complicado para caber
em trabalhos imberbes. Comecei com poucas certezas, terminei sem
nenhuma. Um autor outrora célebre dizia, repleto de razão, que a única
questão filosófica é o suicídio. Mesmo se "assistido", arrisco
acrescentar. Após 22 anos, as hesitações sobre a eutanásia não
desapareceram. Entretanto, porém, adquiri um hábito saudável. E não é
andar de bicicleta: sempre que dou por mim cheio de dúvidas, procuro a opinião
de gente iluminada. Por regra, em matérias profundas corro em busca do conforto
intelectual providenciado por um de três sábios, daqueles que, acima da espuma
e do ruído dos dias, me garantem orientação espiritual: o rapaz do
Querido, Mudei a Casa, o palhaço Companhia e a filha de Adriano Moreira. No
caso em apreço, o decorador-guru recusou pronunciar-se. O Companhia mostrou-se
incontactável. Restou, para me conduzir à Verdade, a menina Isabel.
A
menina Isabel é uma espécie de farol das Grandes Batalhas da Modernidade, isto
se os faróis tatuassem no braço o nome de cada navio ao largo. Quando o leigo
ainda nem sequer adivinhou a possibilidade de uma "fractura" social,
a menina Isabel já está na primeira fila dos convidados do Prós e Contras, a
gritar pela urgência de se legalizar o que lhe vier à cabeça e a insultar os
intolerantes que discordam dela. Ou então está nas páginas do
Expresso, a assinar um artigo intitulado "Eutanásia – reconheçam-me".
Além de, no dito artigo, repetir oito vezes a palavra "autonomia",
a menina Isabel esclarece: "escolho os valores (...), vivo de acordo
com os meus planos pessoais, independentemente das concepções morais
maioritárias vigentes na sociedade. Isso decorre, precisamente, da inibição a
que o Estado está sujeito no que respeita a interferências na minha autonomia"
(eu avisei). E também: "O Estado de direito em que vivo não é um
Estado que põe em causa a autonomia (pois é) de cada um."
Murmurei essas frases resplandecentes até os amigos se afligirem com o meu equilíbrio psíquico. De súbito, compreendi tudo. Acerca da melhor maneira de morrer? Nada disso: acerca da melhor maneira de viver. O Estado de direito e a moral vigente não podem interferir na minha – vamos lá – autonomia. O que importa são os meus "planos pessoais", que não incluem, por exemplo, pagar impostos. Sobretudo impostos que sustentem a espécie de carreira da menina Isabel. E se, graças à afirmação dos valores que escolhi, ela cair numa "situação de enorme sofrimento", o remédio é óbvio. E, não tarda, despenalizado.
Murmurei essas frases resplandecentes até os amigos se afligirem com o meu equilíbrio psíquico. De súbito, compreendi tudo. Acerca da melhor maneira de morrer? Nada disso: acerca da melhor maneira de viver. O Estado de direito e a moral vigente não podem interferir na minha – vamos lá – autonomia. O que importa são os meus "planos pessoais", que não incluem, por exemplo, pagar impostos. Sobretudo impostos que sustentem a espécie de carreira da menina Isabel. E se, graças à afirmação dos valores que escolhi, ela cair numa "situação de enorme sofrimento", o remédio é óbvio. E, não tarda, despenalizado.
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