segunda-feira, 27 de março de 2017

Ainda a eutanásia



Desta vez uma “eutanásia” cavalheiresca, que mostra quão incipientes são os argumentos das caprichosas “meninas Isabéis”, que só uma sociedade igualmente “incipiente” admite como solucionadora de uma questão que Alberto Gonçalves estudou sem certezas, e que as meninas Isabéis da nossa orientação política assente em designações do nosso iluminismo, como essa da “autonomia”, imediatamente resolvem em duas penadas do seu exibicionismo atrevido e esganiçado. Uma tristeza e uma vergonha que assim seja.
Público, 14-02-2017
Após 22 anos, as hesitações sobre a eutanásia não desapareceram. Entretanto, porém, adquiri um hábito saudável. E não é andar de bicicleta: sempre que dou por mim cheio de dúvidas, procuro a opinião de gente iluminada .

Depois de conquistados o aborto no SNS, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adopção de crianças pelos casais atrás referidos, o pavilhão do Sporting e os patrocínios à mudança de género, julguei que a lista das causas "fracturantes" tinha chegado ao fim e podíamos descansar. Imperdoavelmente, esquecera-me da eutanásia. O esquecimento é mais grave na medida em que, nos idos de 1995, concluí a licenciatura com uma tese a propósito. Durante um ano inteirinho, não fiz outra coisa (salvo seja), a não ser estudar a "boa morte". Li o Philippe Ariès e o que me apareceu, realizei inquéritos, entrevistei médicos e cangalheiros, alinhavei dezenas de gráficos, escrevi duzentas páginas, dormi pouquíssimo. Resultado? Apurei que o assunto é demasiado complicado para caber em trabalhos imberbes. Comecei com poucas certezas, terminei sem nenhuma. Um autor outrora célebre dizia, repleto de razão, que a única questão filosófica é o suicídio. Mesmo se "assistido", arrisco acrescentar. Após 22 anos, as hesitações sobre a eutanásia não desapareceram. Entretanto, porém, adquiri um hábito saudável. E não é andar de bicicleta: sempre que dou por mim cheio de dúvidas, procuro a opinião de gente iluminada. Por regra, em matérias profundas corro em busca do conforto intelectual providenciado por um de três sábios, daqueles que, acima da espuma e do ruído dos dias, me garantem orientação espiritual: o rapaz do Querido, Mudei a Casa, o palhaço Companhia e a filha de Adriano Moreira. No caso em apreço, o decorador-guru recusou pronunciar-se. O Companhia mostrou-se incontactável. Restou, para me conduzir à Verdade, a menina Isabel.
A menina Isabel é uma espécie de farol das Grandes Batalhas da Modernidade, isto se os faróis tatuassem no braço o nome de cada navio ao largo. Quando o leigo ainda nem sequer adivinhou a possibilidade de uma "fractura" social, a menina Isabel já está na primeira fila dos convidados do Prós e Contras, a gritar pela urgência de se legalizar o que lhe vier à cabeça e a insultar os intolerantes que discordam dela. Ou então está nas páginas do Expresso, a assinar um artigo intitulado "Eutanásia – reconheçam-me". Além de, no dito artigo, repetir oito vezes a palavra "autonomia", a menina Isabel esclarece: "escolho os valores (...), vivo de acordo com os meus planos pessoais, independentemente das concepções morais maioritárias vigentes na sociedade. Isso decorre, precisamente, da inibição a que o Estado está sujeito no que respeita a interferências na minha autonomia" (eu avisei). E também: "O Estado de direito em que vivo não é um Estado que põe em causa a autonomia (pois é) de cada um."
Murmurei essas frases resplandecentes até os amigos se afligirem com o meu equilíbrio psíquico. De súbito, compreendi tudo. Acerca da melhor maneira de morrer? Nada disso: acerca da melhor maneira de viver. O Estado de direito e a moral vigente não podem interferir na minha – vamos lá – autonomia. O que importa são os meus "planos pessoais", que não incluem, por exemplo, pagar impostos. Sobretudo impostos que sustentem a espécie de carreira da menina Isabel. E se, graças à afirmação dos valores que escolhi, ela cair numa "situação de enorme sofrimento", o remédio é óbvio. E, não tarda, despenalizado. 

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