domingo, 5 de março de 2017

A «Odisseia» nos responde



Palavras sábias, as de Vasco Pulido Valente, que deviam ser sabiamente escutadas e seguidas por PSD e Cia. De resto, Marcelo, nadador afoito e habituado a contorções, a fugir das ciladas marítimas, tem certamente presente o caso do Odisseus, que, sabedor, pelos oráculos de Circe, dos dois rochedos por que teria de passar, o rochedo maior habitado, na sua gruta, por “Cila, ladrando de modo danado”, “monstro terrível…“ quetem no total doze pernas delgadas / e seis pescoços muito longos e, sobre cada um, / uma horrível cabeça, cada uma com três filas de dentes / grossos e cerrados, cheios da negra morte. / Até à cintura está escondida na gruta, / mas eleva as cabeças para fora do terrível abismo / para aí se pôr à pesca, procurando perto do rochedo / golfinhos, cães marinhos e criaturas ainda maiores, / das que aos milhares cria no mar a marulhante Anfitrite. / De junto dela nunca nenhum marinheiro fugiu / ileso na sua nau: pois cada uma das suas cabeças / arrebata um homem da nau de proa escura. / Verás, Ulisses, que o outro rochedo é mais baixo: / ficam perto um do outro; a distância é o voo de uma flecha. / Nele há uma grande figueira, com frondosa folhagem. / Mas por baixo a divina Caríbdis  suga a água escura. / Três vezes por dia a vomita; três vezes a suga com barulho terrível. / Que lá não estejas quando sugar a água! Pois ninguém te poderia salvar da desgraça, nem mesmo o deus que abala a terra. / Antes te deves aproximar de perto do rochedo de Cila, / navegando depressa, pois é preferível lamentares a morte / de seis companheiros na nau do que a morte de todos»

Sim, Ulisses lá passou, entre Cila e Caríbdis, depois de escapado ao flagelo de Caríbdis, apontando para Cila, mas  perdendo neste último monstro seis companheiros, esperneando no ar e clamando por ele. Marcelo assim vai passando, entre Cila e Caríbdis, como fez Ulisses no Canto XII da “Odisseia”, segundo versão de Frederico Lourenço, que Marcelo tem bem presente, e habituado que está ao espernear das gentes.
Diário de Vasco Pulido Valent -     in OBSERVADOR
Marcelo e a Direita
5/3/17
… hopes expire of a low dishonest decade… W. H. Auden
Parece que a Direita portuguesa não anda satisfeita com Marcelo, porque Marcelo dá uma ajudinha permanente e até, de quando em quando, entusiástica ao governo de Costa e à coligação: ontem, por exemplo, chegou a dizer que essa gerigonça estava de pedra e cal. A Direita não gosta nada de ouvir e preferia que o Presidente mostrasse à Esquerda um genérico desprazer e lhe criasse o maior número possível de dificuldades. Ora isto é de uma estupidez imensa. Não gostar de Marcelo, da pessoa e do político, não pode prejudicar o entendimento da situação vigente, nem os limites que ele de facto tem. Soares não se deu mal com Cavaco, nem Cavaco com Sócrates; e só se decidiram por uma oposição pública quando Cavaco e Sócrates se começaram a tornar impopulares.
É bom compreender que os Presidentes que dissolveram a Assembleia da República tinham atrás de si forças consideráveis e uma solução de governo. Soares não queria uma aliança entre o PS e o PRD, que prolongaria a influência dos militares no Estado e oferecia a Eanes a oportunidade de infiltrar o PS. Mas sabia que o PSD de Cavaco iria ganhar as eleições, o que era uma alternativa tolerável, embora, como se viu, difícil de engolir. Sampaio dissolveu um parlamento com maioria de Direita, com toda a segurança de que o PS lhe arranjava outra. E por aí fora. O Presidente nunca desafia o parlamento sem a certeza de “fazer” outro sua à medida. A legitimidade do Presidente e a legitimidade da Assembleia são equivalentes. O que é um erro, entre muitos que se cometeram por medo e pressão do MFA. Pouco a pouco, os partidos foram tirando os poderes ao Presidente. Infelizmente, a anomalia ficou lá. E, por isso, para a Direita, criticar Marcelo é pueril e ocioso. Nem Marcelo, nem ninguém de juízo se apoiaria na Direita que por aí intriga, se guerreia ou dorme. Se quer que o Presidente mude, que se mude ela primeiro.

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