sábado, 4 de março de 2017

Cá por aqui é dor



Uma crónica no “Observador”, de Maria João Avillez, mais umas achas na fogueira dos desmandos, no excerto de outra crónica de Rui Ramos que transcrevo directamente também do “Observador”, e finalmente deito as mãos ao trabalho, copiando arrastadamente o parecer de João Miguel Tavares sobre o despertar de Louçã, que o “Público” esconde ferozmente numa  cibernética avara de partilha. Complemento com os meus próprios ais, destituídos de cultura política, convergindo para as conversas de senhoras que, no café onde me acolho, para as leituras dos meus prazeres, chegam até ao meu canto, insistentes, repetitivas, doloridas, sobre um desastre que poderia ter acontecido lá fora a um filho de uma delas, motivado por avalanche traiçoeira, quando se divertia - parece que na neve - que pôs a senhora em aflição e as outras em apoio e chá de camomila carinhoso, enquanto tudo eram suposições, mas que felizmente um telefonema esclarecedor resolveu as coisas em bem, a senhora em questão chorando de alívio agora, em “descarga”, na expressão ternurenta de uma das que se esforçava por a acalmar, e no dia  seguinte pela manhã tudo voltou ao mesmo, a senhora repetindo aos mesmos ou a novos ouvidos os sofrimentos por que passara na véspera, com as mesmas expressões de culto da dor que os ouvidos atentos acharam por bem repartir, o que me leva a afastar-me hoje do cafezinho para não voltar a distrair-me com o discurso inesgotável sobre os sofrimentos por que as mães passam, e a confirmação das outras mães que já viveram amarguras ou sustos parecidos com os filhos, pois que um filho nunca deixa de ser filho e uma mãe nunca deixa de ser mãe e de o revelar publicamente nos sarilhos e nos cafés de bairro que a gente procura para desanuviar do espaço caseiro, onde há sempre apelos de arrumação ou limpeza destruidores da nossa paz, e também há casos graves na televisão, de que apetece fugir, mas não resulta no café dos masoquismos maternos.
Realmente os meus contactos espirituais nada têm a ver com as coisas graves que transcrevo dos bons cronistas, embora apontem para a nossa irremediável carência de atributos que faz que falhemos como nação. Já Verney achava que era necessário as mães cultivarem-se para produzirem cidadãos capazes, mas as nossas prioridades giram mais em torno de nós, mães soberbamente dolentes de uma filosofia sensível, daí que nunca nos aproximemos nem sequer da Europa do Sul quanto mais da do Norte, não há que esperar, de cidadãos com origens maternas de intelecto mais rigoroso, e é este o sentido do meu comentário destituído de saber mas não de fado, aos pareceres dos cronistas que transcrevo ou copio, caso - para o meu esforço de cópia - do de João Miguel Tavares os quais, felizmente, ainda nos preenchem o orgulho pátrio, ao descreverem, com saber, a nossa anemia na questão de políticos sagazes et pour cause.

1º -A incerteza como novo mandamento
Observador, 16/2/2017
Trump desconfia de cada um de nós e aponta o dedo acusador; a líder da Frente Nacional quer o fim do nosso mundo; o chefe do Podemos vomita-o com raiva. Tudo no mesmo saco? Sim, o resultado é o mesmo.
1. Como um curto circuito que tivesse pulverizado o sistema das nossas coordenadas, a paisagem tornou-se irreconhecível. Antes tivesse anoitecido sobre ela. Apesar do escuro e da noite lá íamos dando com o caminho ou com a forma de nos desviarmos dele, quando era o caso. Havia instrumentos de navegação com que contávamos e bússolas fiáveis. Hoje, subitamente, ou demasiado subitamente, é cada vez mais “física” a sensação de perda e mais real a certeza de que é indispensável reconstruir novos, como dizer?, “modelos” onde encaixar esse outro mundo que flagrantemente aí está. E que também flagrantemente exibe preferências e referências com que não lidámos e configura destinos que nos são estranhos. Que códigos partilhar com os eleitores que já elegeram Trump e talvez venham a preferir Le Pen? Os meus não certamente. E apesar de dizerem “gasto” o “modelo” que os suporta, são esses códigos que elejo e insisto em praticar, vendo como impossível reconhecer-me noutros.
Que pátria é afinal a do Podemos espanhol, para que vida nos quer capturar Marine Le Pen, com que valores habitar a “terra” de Benoit Hamon, se um dia ele vier a conquistá-la? Que realidades tão distantes são essas? E que caminhos são aqueles, sempre feitos pelas margens como os deles, ao contrário da estrada aberta às várias vias dos nossos valores e convicções? Será que aquilo que representamos caiu em desuso, já não serve com um casaco apertado e um dia será, com fúria e acinte, varrido do mapa da era nova?
Há cada vez mais a sensação de um “separatismo” hostil, como se transportássemos a “culpa”, como se devêssemos expiar termos optado por seguir o GPS do mundo ocidental. Trump manifestamente desconfia de cada um de nós e aponta-nos o seu dedo acusador; a líder da Frente Nacional quer o fim do nosso mundo, o chefe do Podemos vomita-o com raiva. Tudo no mesmo saco? Sim, de certo modo pois o resultado é o mesmo: diluir- ou deveria dizer acabar? – o que ocidentalmente representamos. Corromper a nossa morada, mesmo que hoje acantonada em perguntas sem respostas. Sim, sabemo-lo bem, as respostas estão, como ocorre nos supermercados, “ em falta “ ou tornaram-se num produto “descontinuado” . Mas não é por isso que desisto. Da Europa, a apesar da anemia, do Ocidente, apesar da fraqueza. Quais respostas? Não sei, sei apenas o que se sabe: de certo, apenas o incerto. Uma incerteza que se tornou numa espécie de novo mandamento dos novos tempos.
Mas sei que passam os dias, passa o tempo (tempo demais?) e as “diferenças” podem, verossimilmente, de resto, parecer-nos irreversíveis. Não se vê como partilhar futuros, nem se vislumbra de que valores poderia ser tecido um chão comum. Nem – ao menos – com que alicerces construir a ponte — mas qual? — para os de repente tão estranhos habitantes do inclassificável mundo que se ergue diante do nosso espanto.
A Europa está cansada? O “modelo” tem de ser revisto e revigorado? É preciso imaginação e reflexão, energia e ousadia políticas para o achamento de outro caminho, à altura de outros “achamentos” de que a Europa já foi capaz? Gerando a melhor, mais culta, mais rica, mais apetecível e invejada das civilizações, Europa continente magnifico? Sim. Toda essa “revisão” — para dizer o mínimo — é imprescindível e por isso urgente. Convinha porém não esquecer o essencial. A ameaçada Europa somos nós, é lá que moramos e é pertença nossa. Sei que parecerá quase ingénuo ou até já deslocado esta espécie de profissão de fé ou mesmo a sua oportunidade. Seja como for, com maior ou menor fé, com euro ou sem euro, com esta ou outra “união”, com este ou outro “perfil” talvez seja melhor — de uma vez por todas — denegri-la menos e cuidá-la mais. Compreendendo — como dizia alguém mais inteligente que eu – que apesar das suas fraquezas tão nossas conhecidas, dos erros cometidos, das debilidades que sulfuricamente a vão corroendo, a Europa é a solução e não o problema. Troquemos a lamúria pela sua defesa.
2. Há cada vez a percepção de que, na sociedade atual, se vai “implantando” uma linguagem que reflete — e pior, transmite e incessantemente retransmite — o crescimento de uma quase demencial agressividade. Vê-se à vista desarmada, nos écrans, na rua, em comícios, nos liceus, em reuniões comunitárias e claro, na montra da media. Que a cultiva, promove e amplia. Protagonistas, produtores, agentes, obreiros da nova era surgem-nos cada vez mais contaminados pelo ressentimento, deixando gangrenar divisões e praticando a acusação torpe e passando o seu imediato certificado de culpa com a espantosa desenvoltura de quem respira. E praticando ainda, com cada vez maior frequência, o insulto ofensivo, a humilhação, o desprezo, a condenação, o ódio. Brandindo as palavras como armas remetidas pela mais letal das rejeições.
É a guerra. E por isso, é assustador.
3. A novela da Caixa Geral de Depósitos está perigosa. Nada que os capítulos anteriores não antecipassem (ou é surpresa para alguém o total envolvimento do Presidente da Republica e sobretudo o modo como se foi nela enredando?) mas…a quem se poderá pedir que ela saia de vez dos nossos écrans e da praça pública? Recentemente exibiu-se entre nós uma telenovela também nacional que — caso nunca visto em parte alguma — contou com mais de 500 episódios. Pois bem, a da Caixa está candidata a competir seriamente com este excesso. Como me acho (e julgo que de resto o país inteiro) devidamente informada sobre a mentira do ministro, as inabilidades de Domingues, as manhas da geringonça e as exaustivas e incautas intromissões, ditos por não ditos, avanços, recuos, avisos, afirmações e contra afirmações do sempre histriónico Presidente da Republica – dispensar-se-iam mais episódios. Se “alguém” com mais juízo e maior respeito pelo cidadão eleitor compreendesse que o país também dispensaria, agradecia-“se”.
4. Bem pode Carlos César proferir frases de “efeito” e falar de outras coisas que a tensão política entre o PR e o PM, aterrou. Ignoro se é uma escala ou um destino e até aterrou politicamente antes do (meu) horário. É caso para tomar boa nota pois pela primeira vez. todos os erros foram cometidos. E pensar que a procissão ainda mal saiu da igreja.

2º - Tudo em Portugal depende do BCE, até a verdade
3/3/2017
… Sim, é verdade que há muitos livros, artigos e relatórios. Cada um de nós até pode pensar que sabe tudo, ou quase. Mas o regime, no seu conjunto, não sabe, porque ao mesmo tempo que o Estado faliu, faliram os consensos e os compromissos, e tudo se reduziu a tema de discórdia e de confronto, mesmo os factos a que, em tempos de optimismo, chamávamos “objectivos”. Num cenário destes, qualquer assunto, por mais grave, serve apenas de mote para intriga e especulação.
Nunca, nesse sentido, saberemos o que se passou. Mas sabemos o que se passa: é o BCE, com a sua política de juros baixos e compras de dívida pública, que vai permitindo esta feira de “erros de percepção”, lapsos informáticos, demagogias vaidosas e operações clientelares. Mas com a inflação na zona euro nos 2%, a pressão sobre as “políticas de estímulo” tenderá a agravar-se. O que quer dizer que um dia, quando o véu de fantasia monetária do BCE deixar de cobrir a nudez forte da verdade portuguesa, descobriremos talvez, não o que se passou com as transferências ou com a CGD, mas o que se vai passar com todos nós, para além de todas as mistificações facciosas. Tudo em Portugal depende do BCE, até a verdade.

3º - As aventuras de Louçã no Banco de Portugal
João Miguel Tavares
Público, 25/2/2017
Não sei se é Francisco Louçã que está mais capitalista, se é o Banco de Portugal que está mais revolucionário, mas esta sua nomeação para o conselho consultivo do banco central português parece uma partida de Carnaval. Após o comunicado do Conselho de Ministros declarar que a nomeação de Louçã se justifica pela sua «reconhecida competência em matérias económico-financeiras e empresariais», estava à espera a todo o momento, de que a ministra da Presidência saltasse de trás de uma cortina vestida de índio, com uma pistola de estalidos, a ulular: «Era no gozo! Esqueçam lá isso do Louçã!» Mas não! Parece que é mesmo a sério.
Desculpem. Se o trotskista Francisco Louçã foi nomeado para o conselho consultivo do Banco de Portugal, eu exijo ser duplamente nomeado para a comissão política do Bloco de Esquerda e para o comité central do PCP. Catarina Martins e Jerónimo de Sousa encontram o meu email no final deste texto. É só indicarem os dias e as horas das reuniões, e eu apareço lá com uns livros de Milton Friedman e John Stuart Mill. Tal como Louçã, dispenso remuneração. É mesmo só pelo divertimento e pelo prazer rem apresentar opiniões fora da ortodoxia” que foi a justificação que Francisco Louçã deu ao Diário de Notícias para a sua nomeação.
Às tantas, o Banco de Portugal agora é a Assembleia da República, e tem de ter representação das várias sensibilidades parlamentares. Seria uma boa notícia para o senhor do Partido dos Animais, mas uma péssima notícia para o país. O Banco de Portugal faz parte do Eurossistema, e o Eurossistema tem como objectivo primordial definir e executar a política monetária do euro. Para quem tem falta de memória, recordo que a opinião de Francisco Louçã sobre o euro é esta: «O euro é destruidor de Portugal». E esta: «O euro não tem salvação». Ora receio bem que isto não seja propriamente fugir à “ortodoxia”. Isto é simplesmente não acreditar na missão fundamental do banco que tem o dever de aconselhar. Faz tanto sentido quanto um vegetariano comer todos os dias um bitoque ao almoço para “fugir à ortodoxia”. Um homossexual dormir exclusivamente com mulheres para fugir à “ortodoxia”. Ou o Papa Francisco passar a aconselhar o ayatollah Khamenei para fugir à “ortodoxia”.
Já vi gente criticar a nomeação de Louçã pelo facto de ele não ter, ao contrário do que se diz no comunicado do governo, qualquer «competência em matérias empresariais” É verdade que não tem, mas esse está longe de ser o principal problema. O problema, minhas senhoras e meus senhores, é que Francisco Louçã não acredita no capitalismo. Está no seu inteiro direito, como é óbvio, mas não acredita. E acreditar no capitalismo deveria ser o mínimo dos mínimos para aconselhar o Banco de Portugal. Eu sei que muitos olham para o Bloco e para o PCP como uns partidos cheios de boas intenções e nenhumas consequências práticas. Mas eles têm princípios e objectivos políticos. Leiam os estatutos do Bloco, se faz favor. Está logo no artigo 1º:«O bloco de Esquerda  é um movimento político de cidadãs e cidadãos que (…) se comprometem (…) com a busca de alternativas ao capitalismo).
Francisco Louçã entregou o seu cartão de sócio da agremiação e não avisou ninguém? Converteu-se ao capitalismo e não sabemos? Que este é só mais um exemplo de que neste país vale tudo, porque ninguém leva realmente a sério coisa nenhuma? Eu voto nesta última hipótese.

Nenhum comentário: