Foi
João Sena que me enviou o texto seguinte, julgo que seja seu, mas se não for,
certamente que se identifica com quem lho enviou a si, com a respectiva ira que
ele reparte com todos os que só podem apontar o olhar embasbacado a essa arte
culinária, cada vez mais sofisticada, dirigida aos olhos mais do que à fome dos
comensais, aos quais parecerá blasfêmia destruírem numa garfada ou duas, o
pequeno Trianon de tanto requinte gastronómico merecedor de prémio. Mas acho graça ao nosso
pendor imitativo, que nos torna facilmente mestres artífices em qualquer arte,
e mesmo nesta da culinária, macaqueando jeitos colhidos nos povos de maior
pendor intelectual, que requintam na
cozinha como forma de espiritualizar o estômago e as demais vísceras, afinal tão
indispensáveis ao equilíbrio corporal, até mesmo dos órgãos superiores mais
dignificantes.
Sou
das que também se espantam com tal arte de salpicos, a que não falta a manipulação
constante nos arranjos finais, com a flor ou uma erva embelezando o todo
minúsculo, para recreio dos olhos e agonia do estômago, revoltado contra as
mãos do chefe a poluírem a amostra de comida. Mas já Eça bastas vezes referiu o
sabor da comida portuguesa em páginas imortais, tantas vezes em confronto com o
muito requinte deslavado da cozinha francesa, e com apetite renovado, mas
pensando nobremente nos meninos e famílias deste mundo curtindo fome cada vez
com maior incidência neste mundo, releio as páginas sobre “o arroz com favas”
e outros pratos da boa gastronomia caseira portuguesa, no primeiro jantar de
Jacinto em Tormes, que a Internet me permite transcrever, e a divagação
posterior dos dois amigos, Jacinto e Zé Fernandes, à luz das estrelas.
As
páginas de “A Cidade e as Serras” servem, afinal, para corroborar o pensamento do
escrito enviado por João Sena, e tantos outros, como os de Miguel Esteves
Cardoso, menos sofisticados e mais amantes dos pratos simples e honestamente
bem servidos, como são os da saborosa cozinha portuguesa.
DIVULGUEM ESTAS
CANALHICES, PARA BEM DE TODOS NÓS!!
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Feijoada de Camarão, de Benoît Sinthon, no Il Gallo D'Oro, o
novo "duas estrelas" da Madeira
Agora fiquem à espera da
"Açorda Alentejana" ou da "Orelha de Porco com Grão"...
É um insulto à gastronomia
portuguesa, isto para não dizer à gastronomia em geral.
E não há ninguém a
denunciar e a indignar-se com estas modernices da treta chamada de "nova
cozinha" para não usar o termo francês.
Para mim as chamadas
"estrelas Michelin" só têm uma vantagem: Servem para me informarem
quais os restaurantes onde não devo colocar os pés!
Mas continuo a ficar
incomodado com o que estão a estragar num património riquíssimo que é a
cozinha tradicional portuguesa que devia ser um orgulho e de identidade
nacional.
Se deitarem abaixo uns
"sobreiros" não há órgão de comunicação que não coloque o assunto
em primeira página...
idem idem aspas aspas para
qualquer fóssil encontrado ou monumento ou mero edifício classificado como de
interesse público. E quanto à gastronomia nacional, nada, silêncio absoluto.
Para mim chegou a altura em
que a água transbordou no copo e estou aqui a dizer BASTA de assassinarem o
nosso património gastronómico.
Todos estes imbecis deviam
ser punidos com coimas e se insistissem encerrar os estabelecimentos onde se
praticam estes "crimes" e aos intérpretes tirarem-lhes as
"carteiras profissionais" e impedir-lhes de continuarem a praticar
aquela "profissão".
Pela defesa da boa e
tradicional cozinha portuguesa indignem-se e se concordarem divulguem estas
aberrações.
Faço votos para que haja
alguém para criar uma petição que impeça estas aberrações culinárias.
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Eça de Queirós, in “A Cidade e as Serras”
«Tornou
a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: -
Está bom!
Estava
precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes,
fervorosamente, ataquei aquele caldo.
-
Também lá volto! - exclamava Jacinto com uma convicção imensa. - É que estou
com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi
ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a
portadora dos pitéus, a rija rapariga de peitos trementes, que enfim surgiu,
mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a
transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre
abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus
olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga
garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
-
Ótimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia! E por esta santa
gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo
remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio...
-
Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo! O homem ótimo sorria,
inteiramente desanuviado: - Pois é cá a comidinha dos rapaz da quinta! E cada
pratada, que até Suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto,
também vai engordar e enrijar!
O
bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de
Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe,
na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da
abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante
do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora
temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por
bradar: - É divino! - Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de
alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais
alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de
sebo, o copo grosso que ele orlava. de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com
um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
-
Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas
serras?
Eu,
que não gosto que me avantagem em saber clássico, espanejei logo também o meu
Virgílio, louvando as doçuras da vida rural:
-
Hanc olim veteres vitam coluere Sabini. .. Assim viveram os velhos Sabinos.
Assim Rómulo, e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tomou a
maravilha do mundo!
E
imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em
infinito assombro e religiosa reverência.
Ali
jantámos deliciosissimamente, sob os auspícios do Melchior - que ainda depois,
próvido e tutelar, - nos forneceu o tabaco. E, como perante nós se alongava uma
noite de monte, voltámos para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a
contemplar o sumptuoso céu de Verão. Filosofámos então com pachorra e facúndia.
Na
Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros - por causa
dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam. Por isso
(como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única
glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis
andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de
chumbo, puxam a alma para o PÓ rasteiro - um Jacinto, um Zé Fernandes, livres,
bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os
astros olham para eles.
Uns,
certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas
outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama,
como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe
compreender os nossos...
-
Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
-
Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral? - Não sei. Não
sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre
de Coimbra, minha Mãe Espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía
trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma
um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que
aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava
a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão
pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de
Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um Ser único, e as nossas
diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do mesmo Todo,
governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do
homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo Corpo,
onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frémito de vida, por
menor, passa numa fibra desse sublime Corpo, que se não repercuta em todas,
até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol que
não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio
galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte - e, quando
eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse
estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu rijamente a mão no
rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita!... O Sol tremeu. E depois (como eu notei)
devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma
criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros
Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes,
contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa
possante Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem
frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vénus de
Milo, e talvez na princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas,
horrendos ou de inefável beleza; colossais e de uma carne mais dura que o
granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes
e têm consciência da Vida - porque decerto cada Mundo possui o seu Descartes,
ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura
capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande
Penso, logo existo. Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, as janelas dos
nossos casarões, além nos ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos
um acto sacrossanto que nos penetra e nos funde - que é sentirmos no Pensamento
o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento,
dentro da Consciência, a Unidade do Universo! Hem, Jacinto?...
O meu amigo rosnou: - Talvez... Estou a cair com sono. -
Também eu. «Remontámos muito, excelentíssimo senhor!» como dizia o Pestaninha
em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto das
serras, a olhar para as estrelas!... Tu sempre vais amanhã?
- Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. «Penso,
logo fujo! » Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona,
sem um livro?. .. Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas demoro em
Lisboa, para conversar com o Sesimbra, o meu administrador. E também à espera
que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar decentemente, com
roupa lavada, para a trasladação...
-
É verdade, os ossos...»
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