sexta-feira, 3 de março de 2017

«Nem em Paris, Melchior amigo!»


Foi João Sena que me enviou o texto seguinte, julgo que seja seu, mas se não for, certamente que se identifica com quem lho enviou a si, com a respectiva ira que ele reparte com todos os que só podem apontar o olhar embasbacado a essa arte culinária, cada vez mais sofisticada, dirigida aos olhos mais do que à fome dos comensais, aos quais parecerá blasfêmia destruírem numa garfada ou duas, o pequeno Trianon de tanto requinte gastronómico  merecedor de prémio. Mas acho graça ao nosso pendor imitativo, que nos torna facilmente mestres artífices em qualquer arte, e mesmo nesta da culinária, macaqueando jeitos colhidos nos povos de maior pendor  intelectual, que requintam na cozinha como forma de espiritualizar o estômago e as demais vísceras, afinal tão indispensáveis ao equilíbrio corporal, até mesmo dos órgãos superiores mais dignificantes.
Sou das que também se espantam com tal arte de salpicos, a que não falta a manipulação constante nos arranjos finais, com a flor ou uma erva embelezando o todo minúsculo, para recreio dos olhos e agonia do estômago, revoltado contra as mãos do chefe a poluírem a amostra de comida. Mas já Eça bastas vezes referiu o sabor da comida portuguesa em páginas imortais, tantas vezes em confronto com o muito requinte deslavado da cozinha francesa, e com apetite renovado, mas pensando nobremente nos meninos e famílias deste mundo curtindo fome cada vez com maior incidência neste mundo, releio as páginas sobre “o arroz com favas” e outros pratos da boa gastronomia caseira portuguesa, no primeiro jantar de Jacinto em Tormes, que a Internet me permite transcrever, e a divagação posterior dos dois amigos, Jacinto e Zé Fernandes, à luz das estrelas.
As páginas de “A Cidade e as Serras” servem, afinal, para corroborar o pensamento do escrito enviado por João Sena, e tantos outros, como os de Miguel Esteves Cardoso, menos sofisticados e mais amantes dos pratos simples e honestamente bem servidos, como são os da saborosa cozinha portuguesa.

DIVULGUEM ESTAS CANALHICES, PARA BEM DE TODOS NÓS!!
João Sena




Feijoada de Camarão, de Benoît Sinthon, no Il Gallo D'Oro, o novo "duas estrelas" da Madeira

Agora fiquem à espera da "Açorda Alentejana" ou da "Orelha de Porco com Grão"...
É um insulto à gastronomia portuguesa, isto para não dizer à gastronomia em geral.
E não há ninguém a denunciar e a indignar-se com estas modernices da treta chamada de "nova cozinha" para não usar o termo francês.
Para mim as chamadas "estrelas Michelin" só têm uma vantagem: Servem para me informarem quais os restaurantes onde não devo colocar os pés!
Mas continuo a ficar incomodado com o que estão a estragar num património riquíssimo que é a cozinha tradicional portuguesa que devia ser um orgulho e de identidade nacional.
Se deitarem abaixo uns "sobreiros" não há órgão de comunicação que não coloque o assunto em primeira página...
idem idem aspas aspas para qualquer fóssil encontrado ou monumento ou mero edifício classificado como de interesse público. E quanto à gastronomia nacional, nada, silêncio absoluto.
Para mim chegou a altura em que a água transbordou no copo e estou aqui a dizer BASTA de assassinarem o nosso património gastronómico.
Todos estes imbecis deviam ser punidos com coimas e se insistissem encerrar os estabelecimentos onde se praticam estes "crimes" e aos intérpretes tirarem-lhes as "carteiras profissionais" e impedir-lhes de continuarem a praticar aquela "profissão".
Pela defesa da boa e tradicional cozinha portuguesa indignem-se e se concordarem divulguem estas aberrações.

Faço votos para que haja alguém para criar uma petição que impeça estas aberrações culinárias.


Eça de Queirós, inA  Cidade e as Serras
«Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto: - Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela: o seu perfume enternecia: três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
- Também lá volto! - exclamava Jacinto com uma convicção imensa. - É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija rapariga de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado - e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominara favas!... Tentou todavia uma garfada tímida - e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
- Ótimo!... Ah, destas favas, sim! Oh que fava! Que delícia! E por esta santa gula louvava a serra, a arte perfeita das mulheres palreiras que em baixo remexiam as panelas, o Melchior que presidia ao bródio...
- Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo! O homem ótimo sorria, inteiramente desanuviado: - Pois é cá a comidinha dos rapaz da quinta! E cada pratada, que até Suas Incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!
O bom caseiro sinceramente cria que, perdido nesses remotos Parises, o senhor de Tormes, longe da fartura de Tormes, padecia fome e mingava... E o meu Príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos. Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão, terminou por bradar: - É divino! - Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo de alto, da bojuda infusa verde - um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele orlava. de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de otimismo na face, citou Virgílio:
- Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?
Eu, que não gosto que me avantagem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as doçuras da vida rural:
- Hanc olim veteres vitam coluere Sabini. .. Assim viveram os velhos Sabinos. Assim Rómulo, e Remo... Assim cresceu a valente Etrúria. Assim Roma se tomou a maravilha do mundo!
E imóvel, com a mão agarrada à infusa, o Melchior arregalava para nós os olhos em infinito assombro e religiosa reverência.
Ali jantámos deliciosissimamente, sob os auspícios do Melchior - que ainda depois, próvido e tutelar, - nos forneceu o tabaco. E, como perante nós se alongava uma noite de monte, voltámos para as janelas desvidraçadas, na sala imensa, a contemplar o sumptuoso céu de Verão. Filosofámos então com pachorra e facúndia.
Na Cidade (como notou Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros - por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam. Por isso (como eu notei) nunca se entra nessa comunhão com o Universo que é a única glória e única consolação da Vida. Mas na serra, sem prédios disformes de seis andares, sem a fumaraça que tapa Deus, sem os cuidados que, como pedaços de chumbo, puxam a alma para o PÓ rasteiro - um Jacinto, um Zé Fernandes, livres, bem jantados, fumando nos poiais de uma janela, olham para os astros e os astros olham para eles.
Uns, certamente, com olhos de sublime imobilidade ou de sublime indiferença. Mas outros curiosamente, ansiosamente, com uma luz que acena, uma luz que chama, como se tentassem, de tão longe, revelar os seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos...
- Oh Jacinto, que estrela é esta, aqui, tão viva, sobre o beiral do telhado?
- Não sei... E aquela, Zé Fernandes, além, por cima do pinheiral? - Não sei. Não sabíamos. Eu, por causa da espessa crosta de ignorância com que saí do ventre de Coimbra, minha Mãe Espiritual. Ele, porque na sua Biblioteca possuía trezentos e oito tratados sobre Astronomia, e o Saber, assim acumulado, forma um monte que nunca se transpõe nem se desbasta. Mas que nos importava que aquele astro além se chamasse Sírio e aquele outro Aldebarã? Que lhes importava a eles que um de nós fosse Jacinto, outro Zé? Eles tão imensos, nós tão pequeninos, somos a obra da mesma Vontade. E todos, Uranos ou Lorenas de Noronha e Sande, constituímos modos diversos de um Ser único, e as nossas diversidades esparsas somam na mesma compacta Unidade. Moléculas do mesmo Todo, governadas pela mesma Lei, rolando para o mesmo Fim... Do astro ao homem, do homem à flor do trevo, da flor do trevo ao mar sonoro - tudo é o mesmo Corpo, onde circula, como um sangue, o mesmo Deus. E nenhum frémito de vida, por menor, passa numa fibra desse sublime Corpo, que se não repercuta em todas, até às mais humildes, até às que parecem inertes e invitais. Quando um Sol que não avisto, nunca avistarei, morre de inanição nas profundidades, esse esguio galho de limoeiro, em baixo na horta, sente um secreto arrepio de morte - e, quando eu bato uma patada no soalho de Tormes, além o monstruoso Saturno estremece, e esse estremecimento percorre o inteiro Universo! Jacinto abateu rijamente a mão no rebordo da janela. Eu gritei:
- Acredita!... O Sol tremeu. E depois (como eu notei) devíamos considerar que, sobre cada um desses grãos de pó luminoso, existia uma criação, que incessantemente nasce, perece, renasce. Neste instante, outros Jacintos, outros Zés Fernandes, sentados às janelas de outras Tormes, contemplam o céu noturno, e nele um pequenininho ponto de luz, que é a nossa possante Terra por nós tanto sublimada. Não terão todos esta nossa forma, bem frágil, bem desconfortável, e (a não ser no Apolo do Vaticano, na Vénus de Milo, e talvez na princesa de Carman) singularmente feia e burlesca. Mas, horrendos ou de inefável beleza; colossais e de uma carne mais dura que o granito, ou leves como gazes e ondulando na luz, todos eles são seres pensantes e têm consciência da Vida - porque decerto cada Mundo possui o seu Descartes, ou já o nosso Descartes os percorreu a todos com o seu Método, a sua escura capa, a sua agudeza elegante, formulando a única certeza talvez certa, o grande Penso, logo existo. Portanto todos nós, Habitantes dos Mundos, as janelas dos nossos casarões, além nos ou aqui na nossa Terrícula, constantemente perfazemos um acto sacrossanto que nos penetra e nos funde - que é sentirmos no Pensamento o núcleo comum das nossas modalidades, e portanto realizarmos um momento, dentro da Consciência, a Unidade do Universo! Hem, Jacinto?...
O meu amigo rosnou: - Talvez... Estou a cair com sono. - Também eu. «Remontámos muito, excelentíssimo senhor!» como dizia o Pestaninha em Coimbra. Mas nada mais belo, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as estrelas!... Tu sempre vais amanhã?
- Com certeza, Zé Fernandes! Com a certeza de Descartes. «Penso, logo fujo! » Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?. .. Nem só de arroz com fava vive o Homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com o Sesimbra, o meu administrador. E também à espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar decentemente, com roupa lavada, para a trasladação...
- É verdade, os ossos...»

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