Com Maria João Avillez. Páginas de uma mulher
decidida, de uma mulher frontal, uma mulher com fortes dons de descrever os
panoramas da sua vivência impregnada de espírito crítico, sensibilidade, ironia,
e bom senso não submetido a manipulações extremistas de sentimentalidade
tacanha, mas de autenticidade livre e aberta e impregnada de bem-estar
cultural, que se torna lição proveitosa para os que a lêem, talvez extasiados com
tanta riqueza exposta, da sua semana em Londres.
Outros
dias Londres
Semanário, 22/3/2017,
Metrópole
criativa, oferta cultural imbatível, sede da melhor imprensa do mundo,
permanente espectáculo – da rua a Buckingham Palace. Com ou sem Brexit.
Diário de uma semana em Londres.
(texto
escrito antes dos atentados de 22 de Março)
Terça-feira, 14 de Março
Chegada
calamitosa a Londres. Já nem me refiro ao sempre pesado trajecto
Portela/Heathrow mas a esta forma contemporânea de martírio que são
aeroportos como este. As pernas saem de lá aptas a ganhar uma maratona e o
céu fica automaticamente ao nosso alcance com a (ininterrupta) prática da
paciência, virtude como se sabe muito apreciada pelo Altíssimo. Corredores
do tamanho de cidades, lentidão desesperante no zelo da “segurança”, filas sem
fim para tudo, esperas e esperas, multidões sempre compactas- Desta vez havia
uma avaria em quase todas as portas do passaporte electrónico agravada pelo
facto dos funcionários, apesar de impecavelmente fardados (restos do Império
Britânico) falarem o inglês desgraçado de quem acabou de chegar do Bangladesh
ou do Paquistão, tornando incompreensível os nossos repetidos SOS. E cúmulo do
bom remate, ausência da (minha) bagagem. Coisas do progresso: não deve haver
nada que se tenha democratizado tanto como isto de “viajar”e de haver tanta
gente nos ares ao mesmo tempo.
O
que coloca uma questão interessante: continuaremos a viajar com gosto apesar
deste leque de constrangimentos que só se abre e nunca se fecha? Ou não teremos
outro remédio senão a rendição, percebendo que por definição nunca haverá
tecnologia que acomode – e resolva – a vertiginosa e compulsiva procura da
viagem?
Quarta-feira, 15
Brexit.
Está nas agendas, nas chancelarias, nas conversas, nas televisões, nas mesas
dos restaurantes, nos jantares políticos, nos jornais. Está em todo o lado mas
não está bem. A verdade é que se poucos esperavam tal resultado, nenhuns o
prepararam. Um ser normalmente constituído pode até interrogar-se sobre esta
incipiência: como foi afinal possível tão pouca cautela, tão pouca prudência,
tão pouca informação, tanta ignorância, face à extrema complexidade do “enjeu”?
Como
julgariam “eles” – os brexiteers – que era? Ler uns papeis, alterar umas leis,
assinar umas coisas?
O
Partido Conservador – no poder antes e depois da votação do Brexit – tenta
recuperar terreno, recuperar da surpresa, desvalorizar a sua própria
impreparação. Theresa May parece escorregar entre os dois lados da espinhosa
empreitada enquanto o país, meio às cegas, se prepara para o tiro de partida
das negociações e a outra metade se aterroriza com a burocracia que aí vem. A
ideia com que se fica ao falar com gente daqui é que… “há-de ir andando”.
Ao sabor das contingências, exigências, ocorrências. Um caminho que se irá
fazendo… caminhando. Londres mantém-se a fortíssima praça financeira que
é, e assim se deverá manter durante bastante tempo, já que todo o universo da
alta finança e da banca é isso que deseja. Pelo menos até que se conclua a
apreciação do real impacto do Brexit sobre o sistema financeiro inglês pois só
isso permitirá que os grandes bancos estejam em condições de ponderar – e
organizar – a sua futura estratégia europeia.
No
mais, Londres, um esplendor: para usufruir, para a vista, a
observação, os sentidos. Em sessões contínuas, sempre reeditadas, nunca iguais.
Não conheço cidade assim. Tão “alive”. Tantos mundos numa só geografia,
praça forte financeira, oferta cultural imbatível, metrópole criativa de onde
jorram extremos que se tocam e cruzam, sede da melhor imprensa do mundo, sede
de um suculento debate público, fonte de permanente espectáculo – da rua a
Buckingham Palace e fornecedora de imutável civilidade, voz ciciada e boas
maneiras. E, last but not least, de uma natureza humana talvez a mais sui
generis do planeta. Mesmo sabendo-a nós tão capaz do melhor como do pior.
Quinta-feira, 16
Falando
de oferta cultural imbatível, na National Gallery está o melhor: “Michelangelo
and Sebastiano”, uma história forte, protagonizada pelos dois génios rivais da
Renascença italiana, Michelangelo e Raphael, com um “obreiro” quase tão genial
pelo meio, o pintor Sebastiano del Piombo. Quando em 1511 o veneziano
Sebastiano se muda para Roma – onde o “palco”e o fôlego da criação artistica
pertenciam a Michelangelo e a Raphael – Michelangelo viu no talento do jovem
recém chegado o melhor dos meios para acabar com a demencial rivalidade que o
opunha a Raphael. Fornecendo-lhe os seus próprios desenhos, dotando-o de
esboços e estudos, foi “educando” o gesto e o gosto de Sebastiano, fazendo dele
o rival do… seu próprio rival. Intriga, ambição, fé, inveja, dinheiro, poder
costumam fazer boas histórias e nesta, como não podia deixar de ocorrer em
Roma, também há um Papa. No caso Júlio II, convocador do V Concílio de Latrão,
colocador da primeira pedra da actual Basílica de S.Pedro, protector da arte e
da cultura em Roma. Mas esta história é grande porque nos deixou o génio em
herança. O génio e esta milagrosa oportunidade de vermos ao vivo a irradiação,
o fulgor, o alcance, desse génio.
À
noite, jantar londrino onde encontro José Manuel Durão Barroso que há
muito não via e que reencontro com gosto. Curiosamente com mais gosto e maior
empenho do que quando exerceu funções de primeiro-ministro, mas isso é outra
história. (Que entre mil outras, aliás, espero que ele conte um dia pois
julguei perceber que estaria a escrever ou pelo menos a preparar-se para isso.)
Mas fosse porque tem hoje uma vida mais solitária, porque estava em casa amiga,
ou porque simplesmente estava bem disposto, ouvimos muito. Loquaz, muito
mais solto que o habitual, viajou – não vejo melhor termo – por algumas moradas
da sua história e por algumas pessoas que as habitaram. Tomou muitas notas,
viveu muita coisa, lembra-se de tudo. Diante de um magnífico “lamb”, soltou com
minúcia a sua bem organizada memória enquanto eu pensava em como Portugal, a
nossa (infeliz) classe política, a media, a esquerda e um bom número de
portugueses mal informados conhecem mal e apreciam pouco Durão Barroso,
concordem ou discordem dele politicamente. Basta lembrar que Guterres só
lhe falta subir a um altar tão santificado é, enquanto Durão nos é vendido
quase como um celerado. Mas a esquerda é isto. Implacável e de
compulsiva arrogância a decidir quem são os filhos e quais os enteados. Por
preconceito, má fé ou puro ódio, sempre fulanizado, a esquerda tranca num
alçapão aqueles que a estorvam, independentemente de haver ou não mérito,
serviço ao país, ou de qualquer mais valia que não tenha a sua assinatura.
Sexta-feira, 17
Almoço
na embaixada de Portugal com o embaixador Manuel Lobo Antunes. Tête-à-tête
vivo, com alicerces de amizade antiga. Mas quando eu julgava que na agenda do
meu anfitrião estaria o Brexit, Trump, Putin, o (relativo) alívio pelo
resultado das eleições holandesas e quem sabe até a geringonça (que ele aprecia
e eu não) foi afinal de nós mesmos, dos nossos filhos e desta coisa da vida que
falámos. Ouvi-o com gosto infinito falar-me dos Lobo Antunes. Do pai, da mãe,
do irmão Pedro que era o “rassembleur”, da casa de Benfica. E, de repente, uma
aguarela pintada há mais de cinquenta anos estava ali, diante de nós, pendurada
numa parede de Belgravia Square. Depois, mas eu sabia que esse “depois”
chegaria, ele parou na memória dolorosa do João, padrinho e irmão mais velho
bem amado. Ali à mesa, tão depressa tínhamos vinte ou trinta anos como
éramos os avós que já somos, tanta história corrida e tanta vida vivida. Um
encontro cuja sintonia feita desse mesmo entendimento sobre duas ou três coisas
essenciais, salta qualquer fronteira, ideológica, religiosa, partidária. São as
amizades de boa colheita. Como esta.
De
tarde, David Hockney na Tate Britain e foi preciso marcar lugar, que em Londres
coabitam todos os dias 15 milhões de pessoas. Olhar, re-olhar, parar,
voltar “àquela”sala, entrar noutra, sair, voltar ao início, repetir o circuito.
Sim, é preciso um grande, imenso talento para “saber” inscrever numa tela o
mais exaltante júbilo, deixar impressa noutra a mais fina camada de melancolia
de que um pincel é capaz, e noutra ainda, o inconfundível traço da mais
pungente solidão humana. Tudo isto lá está, oferecido como um dom, por este
vibrante, versátil, vivo e vário octogenário britânico que nos pinta a vida
como ela é e nos traz o mundo como ele está.
Sábado, 18
“Aladino”
com os netos mais velhos, Luis, 11, Vicente, 7 (e bilhetes adquiridos há três
meses). O West End lembra uma espécie de gigantesco souk: vende-se
quinquilharia, há anúncios luminosos, cartazes, milhões de pessoas na rua,
trânsito, comida, rickshaw, bicicletas, dezenas de teatros de portas abertas
para a matinée das 14h30. Ali perto uma concentração de policias como jamais
vi, a rodear a manif que ocorrerá daqui a pouco em Picadilly mas na correria para
o Prince Edward Theatre faltou-me o tempo de perguntar qual era o protesto do
dia.
“Aladino”,
incensado pela critica e com lotação esgotada desde que estreou é uma produção
da Disney, importada dos Estados Unidos, onde tudo é feérico e mágico. Mas apesar
dos (inacreditáveis) efeitos especiais rivalizarem com os do cinema, havia ali
algo de artificial, que não me colou ao palco.
Como
já vi aqui a maior parte das peças musicais “infantis” ou “juvenis” em cartaz
preferi as britânicas. Para meu grande contentamento, os netos, que as viram
comigo, também preferiram.
Domingo, 19
A
leitura dos jornais ingleses de fim-de-semana é rotina obrigatória, uma espécie
de missa dominical e simultaneamente um lugar assegurado no nirvana. Que mais
gabar? A qualidade editorial? O critério dos conteúdos nos diversos
suplementos? O número, as escolhas e a variedade desses mesmos suplementos? A
torrente de debates, propostas, ideias, reflexões, “novidades” que dali
irrompe? Financial Times, Sunday Times, Daily Telegraph… Páginas e páginas que
apetece devorar, re-devorar, guardar, mandar aos amigos, mas não há tempo nem
cabeça para aviar tudo hoje. Ainda assim, e entre algumas
iniciativas que me fariam ficar por cá, deixo registo da mais sedutora: a
vigésima primeira edição do Finantial Time Week-end Oxford Literary Festival (
de 25 de Março a 2 de Abril, em Oxford.) Wiiliam Boyd, o antigo Arcebispo da
Cantuária, George Carey, Hilary Mantel, Vilcram Seth, Alfred Brendel, Stephen
King, irão lá estar entre muitos outros. Antevê-se uma plateia muito
interessada diante de elenco tão interessante. A programação é farta mas no dia
1 de Abril Alec Russell, editor da edição de fim de semana do FT, será
entrevistado sobre essa ameaça aterrorizante que são os “factos alternativos”:
“The Art of the Interview in the Post Truth Age” assim se chama a sessão e
melhor deve ser difícil. Quando é a sério, é a sério.
Segunda-feira, 20
Hei-de
voltar para Lisboa a arrastar-me nos penosos corredores de Heathrow com dez
quilos de papel na mão, se não forem mais, abençoado papel. Não há lugar nenhum
no mundo onde me aperceba, com tanta volúpia, do toque, do cheiro, do gosto, da
necessidade do papel de jornal.
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