quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Em forma de parábola

Trata-se do texto “Fogo!” de Manuela Ferreira Leite, saído no caderno “ECONOMIA” do Expresso de 16 de Outubro.
“Naquele tempo existiam uns pirómanos que faziam arder tudo à sua volta em combustão lenta e assim a destruição progredia sem que a maioria das pessoas se apercebesse do que estava a acontecer. Mas chegou o dia em que um anticiclone, vindo de fora, com vento forte, ateou o fogo.
As labaredas, bem visíveis, alertaram as populações para o perigo eminente que as ameaçava e então gritaram por socorro.
Era aquele o momento propício para desmascarar os incendiários e livrarem-se finalmente deles?
Talvez, mas o drama é que o fogo não faz pausas e devoraria as vítimas muito antes do julgamento dos culpados.
A prioridade é, pois, apagar o fogo e salvar o que for possível.
Também esta operação implica prejuízos elevados para as populações, porque os meios de combate muitas vezes danificam os locais onde actuam, havendo a tendência para culpar os bombeiros pelos estragos sofridos.
Assim, o que é justo é que quem provocou o fogo, o apague, até porque qualquer bombeiro, seja qual for a corporação a que pertença, apagá-lo-á da mesma forma: ou com água, ou com neve carbónica ou com uma combinação das duas.
Vem isto a propósito do destino do próximo Orçamento.
Sinto que o PSD não deixará de colaborar na extinção do fogo, mas é nossa responsabilidade não deixar esquecer que este incêndio tem origem em fogo posto e que é, por este acto, que o Governo deverá ser julgado.”

Fez bem, Manuela Ferreira Leite em reconhecer, na sua parábola do fogo posto, quanto a responsabilidade dele não exclui ninguém dos sucessivos governos com que se atamancou a história do Portugal pós-abril. Mas o facto é que a si própria se incrimina, porque deles fez parte, e isso a mim me chocou, que sempre preservei a sua imagem por lhe reconhecer o mérito da honestidade e da lucidez.
Mas o seu texto é sobretudo expressivo da preocupação que a todos mina, pela fragilidade de um país que há muito arde, e que virou braseiro inextinguível, tentando com tal parábola servir de orientação a um Passos Coelho joguete dos malabarismos verbais e irónicos dos que dele dependem, mas mantendo caprichosamente o enigma sobre a posição que vai tomar na questão do Orçamento, em discursos sem conteúdo, e asnaticamente fundamentados, numa emoção pouco sadia, de um romanticismo exibicionista, a sugerir a teatralidade de Manuel de Sousa Coutinho incendiando o seu palácio de Almada, para nele não receber os inimigos da sua pátria, no drama de Garrett.
Não mudamos, sempre actores de gestos amplos e vozes sonoras, a racionalidade subvertida pela emotividade da indignação contra os outros, ou da valorização dos sentimentos próprios.
Manuela Ferreira Leite conclui o seu texto com a afirmação de que os responsáveis pelo fogo posto é que o devem apagar.
Se isso é verdade, não o é connosco, que os incendiários até nem são punidos pelo seu crime, numa campanha de silêncio em seu redor, que sempre nos perturbou a alma.
Mas também é verdade que ninguém acredita na alternativa de Passos Coelho como extintor.
É inteligente a parábola de Manuela Ferreira Leite.

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