É Saint-Preux, o enamorado de Julie – la Nouvelle Héloise, do título do romance epistolar de Rousseau – que, ausente da amada por motivo da oposição do pai desta a tais amores, socialmente reprováveis dada a condição inferior daquele, entre as várias cartas que com ela troca, descreve, de Paris, a hipocrisia dos costumes mundanos, além dos truques de propaganda ideológica, a que Rousseau teria assistido, já nos alvores da Revolução Francesa.
Traduzo o excerto (carta XIV da II parte), por me parecer de uma actualidade sem falhas, exceptuados os adereços ou as vestimentas relativamente aos dos salões de agora:
“Mas no fundo, que pensas tu que se aprende com estas conversas tão encantadoras? a julgar saudavelmente as coisas do mundo? a bem usar da sociedade? a ao menos conhecer as pessoas com quem vivemos? Nada disso, minha Júlia. Aí se aprende a advogar com arte a causa da mentira, a abalar, à força da filosofia, todos os princípios da virtude, a colorir de sofismas subtis as paixões e os preconceitos, a dar ao erro um certo estilo em voga, segundo as máximas do dia. Não é necessário conhecer o carácter das pessoas, mas tão só os seus interesses, para adivinhar pouco mais ou menos o que elas dirão de cada assunto. Quando um homem fala, é por assim dizer o seu fato, e não ele, que tem um sentimento, que ele mudará sem preocupação, tantas vezes como de estado. Dê-se-lhe alternadamente uma longa peruca, um fato de ordenança e uma cruz peitoral, ouvi-lo-eis sucessivamente pregar com igual zelo as leis, o despotismo e a inquisição. Há uma razão comum para a toga, outra para a finança, outra para a espada. Cada uma delas prova muito bem que as outras são más, consequência fácil de tirar para as três. Assim, ninguém diz nunca o que pensa, mas o que lhe convém fazer pensar a outro alguém, e o zelo aparente da verdade não é nas gentes mais do que a máscara do interesse.
Julgareis que as pessoas isoladas, que vivem na independência têm, pelo menos, um espírito próprio; nada disso; são outras máquinas que não pensam, e que se faz pensar aos bochechos. Basta informarmo-nos das suas sociedades, das suas parcerias, dos seus amigos, das mulheres que eles vêem, dos autores que conhecem; daí se pode inferir antecipadamente o seu pensamento futuro sobre um livro prestes a aparecer e que eles não leram; sobre uma peça de teatro prestes a ser representada e que eles não viram; sobre um ou outro autor que não conhecem, sobre tal ou tal sistema de que não fazem a mais pequena ideia; e como o relógio de sala só tem corda para vinte e quatro horas, todas estas pessoas vão procurar nas suas sociedades o que pensarão no dia seguinte.
Há, pois, um pequeno número de homens e de mulheres que pensam por todos os outros, e para os quais todos os outros falam e agem, e como cada um pensa no seu interesse próprio, ninguém no bem comum, e os interesses particulares são sempre opostos entre si, há um choque perpétuo de brigas e de cabalas, um fluxo e um refluxo de preconceitos, de opiniões contrárias, onde os mais acalorados, animados pelos outros, quase nunca sabem do que se trata. Cada parceria tem as suas regras, os seus julgamentos, os seus princípios, que não são admitidos nas outras. O homem honrado duma casa é um patife na casa vizinha; o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude têm apenas uma existência local e circunscrita. Quem quer que goste de se mostrar e frequenta várias sociedades deve ser mais flexível do que Alcibíades, mudar de princípios como de sociedades, modificar a cada passo o seu espírito, e medir as suas máximas à toesa; é preciso que em cada visita se liberte, ao entrar, da sua alma, no caso de ter alguma; que obtenha outra com as cores da casa, como um lacaio toma uma libré; que a deponha ao sair, se quiser, até nova troca.”
Traduzo o excerto (carta XIV da II parte), por me parecer de uma actualidade sem falhas, exceptuados os adereços ou as vestimentas relativamente aos dos salões de agora:
“Mas no fundo, que pensas tu que se aprende com estas conversas tão encantadoras? a julgar saudavelmente as coisas do mundo? a bem usar da sociedade? a ao menos conhecer as pessoas com quem vivemos? Nada disso, minha Júlia. Aí se aprende a advogar com arte a causa da mentira, a abalar, à força da filosofia, todos os princípios da virtude, a colorir de sofismas subtis as paixões e os preconceitos, a dar ao erro um certo estilo em voga, segundo as máximas do dia. Não é necessário conhecer o carácter das pessoas, mas tão só os seus interesses, para adivinhar pouco mais ou menos o que elas dirão de cada assunto. Quando um homem fala, é por assim dizer o seu fato, e não ele, que tem um sentimento, que ele mudará sem preocupação, tantas vezes como de estado. Dê-se-lhe alternadamente uma longa peruca, um fato de ordenança e uma cruz peitoral, ouvi-lo-eis sucessivamente pregar com igual zelo as leis, o despotismo e a inquisição. Há uma razão comum para a toga, outra para a finança, outra para a espada. Cada uma delas prova muito bem que as outras são más, consequência fácil de tirar para as três. Assim, ninguém diz nunca o que pensa, mas o que lhe convém fazer pensar a outro alguém, e o zelo aparente da verdade não é nas gentes mais do que a máscara do interesse.
Julgareis que as pessoas isoladas, que vivem na independência têm, pelo menos, um espírito próprio; nada disso; são outras máquinas que não pensam, e que se faz pensar aos bochechos. Basta informarmo-nos das suas sociedades, das suas parcerias, dos seus amigos, das mulheres que eles vêem, dos autores que conhecem; daí se pode inferir antecipadamente o seu pensamento futuro sobre um livro prestes a aparecer e que eles não leram; sobre uma peça de teatro prestes a ser representada e que eles não viram; sobre um ou outro autor que não conhecem, sobre tal ou tal sistema de que não fazem a mais pequena ideia; e como o relógio de sala só tem corda para vinte e quatro horas, todas estas pessoas vão procurar nas suas sociedades o que pensarão no dia seguinte.
Há, pois, um pequeno número de homens e de mulheres que pensam por todos os outros, e para os quais todos os outros falam e agem, e como cada um pensa no seu interesse próprio, ninguém no bem comum, e os interesses particulares são sempre opostos entre si, há um choque perpétuo de brigas e de cabalas, um fluxo e um refluxo de preconceitos, de opiniões contrárias, onde os mais acalorados, animados pelos outros, quase nunca sabem do que se trata. Cada parceria tem as suas regras, os seus julgamentos, os seus princípios, que não são admitidos nas outras. O homem honrado duma casa é um patife na casa vizinha; o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude têm apenas uma existência local e circunscrita. Quem quer que goste de se mostrar e frequenta várias sociedades deve ser mais flexível do que Alcibíades, mudar de princípios como de sociedades, modificar a cada passo o seu espírito, e medir as suas máximas à toesa; é preciso que em cada visita se liberte, ao entrar, da sua alma, no caso de ter alguma; que obtenha outra com as cores da casa, como um lacaio toma uma libré; que a deponha ao sair, se quiser, até nova troca.”
Uma sátira de um espírito brilhante de séculos atrás, que vale a pena reler, embora a ninguém incomode nem ninguém nela se reconheça.
De resto, creio que dificilmente nos reconheceríamos, por não frequentarmos os mesmos círculos da sociedade francesa, mesmo da dos séculos recuados, os nossos círculos mais limitados às questões práticas das carteiras, das jóias, trajes ou das amigas, no caso das conversações femininas, dos futebóis, dinheiros ou o que venha por acréscimo, no caso das conversações masculinas, umas e outras pouco votadas a discussões mais intelectuais, embora de cinismos idênticos, que são pontos comuns aos “o tempora o mores” de todos os tempos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário