terça-feira, 19 de outubro de 2010

Não mudam

Conheci a minha amiga cá, depois do 25 de Abril, mas ela conhecia o meu pseudónimo dos jornais de lá e congratulámo-nos com a descoberta. Tive que lhe oferecer os meus livros, que para isso servem, e num deles, em 79, porque perdera o primeiro, apus a seguinte dedicatória: “Um magnífico exemplo de virtudes… para o caixote”. Não gostou e um dia, anos depois, devolveu-me o livro para lhe alterar a dedicatória ou acrescentar outra. Docilmente, insisti:

“Se da dedicatória acima não gosta
Neste livro escrito há já tantos anos
Insisto, e não temo perder a aposta,
Que um caixote é pouco para os desenganos.

Catorze anos passaram, e nós aqui estamos,
Atentas ao leme dos nossos navios,
Olhando, aprendendo, colhendo, apontando,
Desmandos constantes, frequentes desvios.

E esses dizeres em pouco diferem
Daquelas virtudes que o livro contém,
Dizeres inúteis, inúteis virtudes
Que o mundo não ferem, nem mudam ninguém.”

Vem a referência a propósito de uma entrevista feita na Sic a Frei Fernando Ventura, que me chegou por e-mail, e que revi com o mesmo espanto com que a ela tinha assistido. Pelo desassombro crítico.
Algumas das ideias reconheci, que eu também já lembrara, tal como o fizeram outros cronistas que lera - o sebastianismo, o atraso social, aparentemente colmatado à pressa com as Novas Oportunidades que não passam de bluff, num país de fatalismo e de sebastianismo, por descrença do povo em si próprio, habituado à canga do servilismo e da servidão, um país de vaidades dos governantes e dos partidos, digladiando-se em jogos do poder, nunca em termos de honestidade governativa para “Bem da Nação”.
Uma voz severa e certeira, sob um sorriso aparentemente simpático, definindo-nos como eternos condenados a sermos os apanhadores do lixo dos outros povos.
Vale a pena ler ou ouvir a entrevista, mais uma voz severa entre tantas que dizem não haver já solução para nós, que chegamos aos cursos superiores com grande impreparação, e, porque foram desaparecidos os cursos técnicos, também sem preparação técnica, os ensinos profissionalizantes não passando igualmente de outro bluff.
Mas, tal como outras vozes severas ou irónicas que vão surgindo com maior ou menor frontalidade, pouco importa o que disse Frei Fernando Ventura, pouco importa o que se for dizendo.
Nação de preguiçosos mentais, povo sem memória e sem consciência de ter sido sempre pobremente educado – o seu atraso vai-se consumando na perenidade desses defeitos de que não toma consciência, cada vez mais arredado do sentido da seriedade, porque educado na facilidade – “facilitismo” – e na desordem da indisciplina, de uma afirmação insensata e perversa.
A tal dedicatória minha a um livro antigo, continua certa - “dizeres inúteis, inúteis virtudes, que os homens não ferem nem mudam ninguém.”

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