Fazia anos
o meu Pai, neste dia 25 de Janeiro, faria 112 anos este ano, mas morreu com 78.
Em tempos escrevi um livro de memórias – Melodias do Passado –
que a Sinapses prometeu editar, e que apenas manteve visível, durante uns
tempos, na Internet, apesar do contrato assinado. Era um livro de homenagem a meu Pai, na evocação da sua pessoa, associada às
minhas próprias vivências. Outros livros escrevi em que a sua figura perpassou,
recta, na timidez da sua modéstia, mas na elegância de um saber de autodidacta
e de um espírito vivo, ciente dos sarcasmos do mundo, mas também grato da
felicidade que soube construir no amor familiar, a que o sacrifício de
separações – no tempo da Segunda Guerra, e mais tarde, durante dois anos, por transferência,
em serviço – fortificara o elo da coesão, no ganho do saber e da experiência,
que as cartas acompanhavam, nos ditames da ternura e do apoio escolar.
Sempre o
meu pai foi companheiro nas minhas escritas, algumas com mais afinco, que
chegava a guardar no bolso por dias, segundo contava, e muitas vezes lhe lia o
que escrevera às mesas dos cafés, nos intervalos maiores dos meus horários de
aulas.
Em 1975, frequentando
um Seminário em Coimbra, dirigido por Andrée Crabbé Rocha, escrevi sobre os
autores do nosso programa de trabalhos – “A Literatura da Resistência” –
naturalmente na berra, o que não obstou
a que encarasse tais autores sem o parti pris da subserviência demagógica.
Foi assim
que analisei a poesia de José Gomes Ferreira, e é como lembrança do meu
Pai – em cuja casa vivia na altura, de regresso de África, com a família – que
transcrevo um passo dele extraído, cuja poesia comparo com um poema de Torga
que o meu Pai tanto admirava, e que eu também sempre admirei, embora não
partilhássemos inteiramente as ideologias dos respectivos autores (in “Cravos Roxos – Croniquetas
Verde-Rubras”, 1981):
«… O
mesmo não diremos do poema XXIII, ainda de “Café”, com reflexos de Pessoa, que
nos parece significativo, quer no aspecto imagístico, quer no aspecto
ideológico. Só achamos supérfluo o parêntese inicial, processo muito utilizado
por Gomes Ferreira, ainda em jeito narcísico pueril, de nos dar mais
intimamente conta das suas insónias e debates de consciência.
«(Relatório
às duas da manhã diante dum copo de leite)»:
«Hoje
acordei na dispersão cinzenta
Dum
dia decepado…
Com o
corpo dividido,
As
imagens sem olhos,
Os
gestos a fugirem-me dos dedos
E a
sombra esquecida no quarto ao lado.
Desatado
de mim,
Andei
todo o dia assim
Com
os passos nas nuvens,
Os
pés na terra,
As
mãos na terra,
As
mãos a estrangular o nevoeiro
E os
olhos… Ah! Os meus olhos onde estão?
(Só
há momentos me encontrei por inteiro~
Num
charco a evaporar-se do chão…)»
Poesia
demasiado directa, como o é também a prosa neo-realista, mau grado as
subtilezas vocabulares ou imagísticas, ela não deixa qualquer lugar ao
devaneio, àquilo que fica subentendido, como observamos neste exemplo de Miguel
Torga, onde se explora, com uma elegância natural e simples, mas de um
pensamento trabalhado, a par da fluidez rítmica, uma temática de protesto
idêntica à de Gomes Ferreira, conquanto não exclusiva da poética variadíssima
do autor dos “Bichos”:
«Depoimento»
«Deponho
no processo do meu crime.
(Sou
testemunha
E réu
E
vítima
E
juiz).
Juro
Que
havia um muro
E na
face do muro uma palavra a giz.
MERDA!
Lembro-me bem.
-
Crianças… - disse alguém
Que ia
a passar.
Mas
voltei novamente a soletrar
O
vocábulo indecente,
E de
repente,
Como
quem adivinha,
Numa
tristeza já de penitente,
Vi que
a letra era minha…»
(in “Câmara Ardente”)
Eis o meu
presente de anos para o meu Pai, evocação da sua presença inesquecida, que
ficará no meu blog até que as convulsões do tempo ponham fim a um participar já
próximo da idade com que ele partiu.
Com os “Parabéns
a Você” sempre. Os “Muitos anos de vida” também. Até que a memória
se acabe. “Até que a voz me doa”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário