sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

25 de Janeiro


Fazia anos o meu Pai, neste dia 25 de Janeiro, faria 112 anos este ano, mas morreu com 78. Em tempos escrevi um livro de memórias – Melodias do Passado – que a Sinapses prometeu editar, e que apenas manteve visível, durante uns tempos, na Internet, apesar do contrato assinado.  Era um livro de homenagem a meu Pai,  na evocação da sua pessoa, associada às minhas próprias vivências. Outros livros escrevi em que a sua figura perpassou, recta, na timidez da sua modéstia, mas na elegância de um saber de autodidacta e de um espírito vivo, ciente dos sarcasmos do mundo, mas também grato da felicidade que soube construir no amor familiar, a que o sacrifício de separações – no tempo da Segunda Guerra, e mais tarde, durante dois anos, por transferência, em serviço – fortificara o elo da coesão, no ganho do saber e da experiência, que as cartas acompanhavam, nos ditames da ternura e do apoio escolar.
Sempre o meu pai foi companheiro nas minhas escritas, algumas com mais afinco, que chegava a guardar no bolso por dias, segundo contava, e muitas vezes lhe lia o que escrevera às mesas dos cafés, nos intervalos maiores dos meus horários de aulas.
Em 1975, frequentando um Seminário em Coimbra, dirigido por Andrée Crabbé Rocha, escrevi sobre os autores do nosso programa de trabalhos – “A Literatura da Resistência” – naturalmente  na berra, o que não obstou a que encarasse tais autores sem o parti pris da subserviência demagógica.
Foi assim que analisei a poesia de José Gomes Ferreira, e é como lembrança do meu Pai – em cuja casa vivia na altura, de regresso de África, com a família – que transcrevo um passo dele extraído, cuja poesia comparo com um poema de Torga que o meu Pai tanto admirava, e que eu também sempre admirei, embora não partilhássemos inteiramente as ideologias dos respectivos autores  (in “Cravos Roxos – Croniquetas Verde-Rubras”, 1981):
«… O mesmo não diremos do poema XXIII, ainda de “Café”, com reflexos de Pessoa, que nos parece significativo, quer no aspecto imagístico, quer no aspecto ideológico. Só achamos supérfluo o parêntese inicial, processo muito utilizado por Gomes Ferreira, ainda em jeito narcísico pueril, de nos dar mais intimamente conta das suas insónias e debates de consciência.
«(Relatório às duas da manhã diante dum copo de leite)»:

«Hoje acordei na dispersão cinzenta
Dum dia decepado…
Com o corpo dividido,
As imagens sem olhos,
Os gestos a fugirem-me dos dedos
E a sombra esquecida no quarto ao lado.
Desatado de mim,
Andei todo o dia assim
Com os passos nas nuvens,
Os pés na terra,
As mãos na terra,
As mãos a estrangular o nevoeiro
E os olhos… Ah! Os meus olhos onde estão?
(Só há momentos me encontrei por inteiro~
Num charco a evaporar-se do chão…)»
Poesia demasiado directa, como o é também a prosa neo-realista, mau grado as subtilezas vocabulares ou imagísticas, ela não deixa qualquer lugar ao devaneio, àquilo que fica subentendido, como observamos neste exemplo de Miguel Torga, onde se explora, com uma elegância natural e simples, mas de um pensamento trabalhado, a par da fluidez rítmica, uma temática de protesto idêntica à de Gomes Ferreira, conquanto não exclusiva da poética variadíssima do autor dos “Bichos”:
«Depoimento»

«Deponho no processo do meu crime.
(Sou testemunha
E réu
E vítima
E juiz).
Juro
Que havia um muro
E na face do muro uma palavra a giz.
MERDA! Lembro-me bem.
- Crianças… - disse alguém
Que ia a passar.
Mas voltei novamente a soletrar
O vocábulo indecente,
E de repente,
Como quem adivinha,
Numa tristeza já de penitente,
Vi que a letra era minha…»
                       (in “Câmara Ardente”)

Eis o meu presente de anos para o meu Pai, evocação da sua presença inesquecida, que ficará no meu blog até que as convulsões do tempo ponham fim a um participar já próximo da idade com que ele partiu.
Com os “Parabéns a Você” sempre. Os “Muitos anos de vida” também. Até que a memória se acabe. “Até que a voz me doa”.

 

 

 

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