- Agora está um desastre autêntico. A gente sabe porquê.
Há falta de pessoal. É isso que nos dizem. Não há gente. A televisão de facto
mostra coisas gravíssimas.
Conta a sua experiência pessoal
de ontem, a necessidade de uma receita médica que há alguns dias a faz telefonar
para a médica do hospital a passar, pois que o remédio anterior se acabara, e não
pode ser passada pela médica de família. Mas foi uma ida vã, aproveitando a
boleia de uma amiga, depois de, dos serviços hospitalares, lhe terem dito que
fosse. Mas o exemplo da sua amiga ainda foi pior, segundo a minha amiga. Uma
doença grave, depois de tratada no mesmo hospital de Cascais, fora mandada para
o Egas Moniz onde fizera exames vários. Mas após marcação de nova consulta no
hospital de Cascais, o médico que ali a operara não pôde concluir sobre o
estado de saúde porque do Egas Moniz não enviaram os exames, nem pela Internet.
Terá que reiniciar o processo dos exames.
- Entretanto, ela pode morrer. Se não da doença, de
raiva, pelo tempo, as despesas, o cansaço.
A minha amiga concordou imediatamente. E continuou , noutro
capítulo das suas referências:
- Eu não podia ser funcionária dos Tribunais porque me
dava uma coisinha. Aqueles montes de pacotes até ao tecto! Mostraram ontem uma
cena miserável. Um edifício grande, muito antigo, não sei em que terra. Chove
em cima do pessoal.
Falei na minha experiência pessoal, modesta nas minhas
exigências em relação à vida, educada que fora nas máximas de uma economia de
meios como pensamento orientador da política dos meus tempos juvenis, que a
minha amiga sempre contestou por ter tido hábitos mais dispendiosos, graças a
outras coordenadas de vida:
- Já passei por isso, quando frequentava a Biblioteca
dos Gerais, em Coimbra. É uma questão de nos afastarmos para o canto onde não
pinga. Nunca permiti que os pingos da
chuva me atingissem, mas rapávamos frio, naqueles tempos. Aliás, nas escolas,
quando chove, ainda hoje nos molhamos bem. Apanhei muita chuva no liceu de
Cascais, na mudança de pavilhões, muita gripe. Mas a doutrina manda-nos viver
em modéstia e resignação.
Lançada na sua diatribe, a minha amiga nem comentou os
exemplos da minha passagem no mundo da eficiência desconfortável.
- As pessoas estão avisadas várias vezes de que pode
acontecer uma desgraça de todo o tamanho. Eu faço ideia dos processos que
desaparecem.
- Mas hoje em dia já nem há outras conversas. Seguro e
companheiros da esquerda falam em flagelo, a coisa está feia como nunca esteve.
Sobretudo se eles conseguirem convencer o povo português de que farão melhor.
Até já se fala em governo de esquerda.
- Mas temos que pensar positivo. Tenho que dizer bem de
qualquer coisa. Do clima. É uma pena sermos assim.
Eu então lembrei tristezas de alguns grandes pensadores e
poetas, Sá de Miranda, Lamartine, Pessoa, a própria “Náusea” do Sartre,
chocarreira e monstruosa, “A Dor Humana” que “busca os amplos
horizontes e tem marés de fel como um sinistro mar” de Cesário…, gente com
capacidades superiores de análise e abstracção, que nos confortam na beleza do
que criaram, fazendo-nos sentir pequenos, neste nosso mundo de materialidade e
interesse a definir a dor. Eis o soneto do “bom Sá”:
“O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.
Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu' em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
qual é tal coração qu' em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.
Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.
Tudo
é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!!
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!!
Lamartine escreve “Méditations
Poétiques”, mergulhando na evocação da sua “Elvira” morta, mostrando uma
natureza refúgio das suas dores e da sua religiosidade, imutável na sua bondade,
contrariamente ao ciclo de renovação que lhe aponta Sá de Miranda. Um passo,
apenas da sua poesia ampla e triste, bem ao gosto romântico, da elegia “Le
Vallon”:
“Mon coeur, lassé de tout, même de l’espérance,
N’ira
plus de ses vœux importuner le sort ;
Prêtez-moi seulement, vallon de mon
enfance,
Un asile d’un jour pour attendre la
mort. »
…………….
« Mais la nature est là qui t’invite
et qui t’aime ;
Plonge-toi dans son sein qu’elle t’ouvre
toujours :
Quand tout change pour toi, la nature
est la même,
Et le même soleil se lève sur les jours
Um clima ameno neste nosso país,
reconhecido pela minha amiga, é algo de positivo que devíamos venerar, mesmo
sem a unção de Lamartine. Infelizmente o “sem cura” de Sá de Miranda casa-se
mais com a tristeza que cobre o país, omitidos os contextos, não como “manto
diáfano da fantasia”, mas como tosca e pesada manta de retalhos, que a minha
amiga define com a observação de irredutível mágoa: “É uma pena sermos assim”.
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