quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

… não pagam dívidas


Mais um texto de Vasco Pulido Valente a merecer uma ponderação de tristeza – a do reconhecimento de uma eterna parolice, fruto de uma formação condizente com esta mediania desprezível de povo pobre, sempre marginalizado numa educação mínima ou nula, a nobreza e o clero de outrora seguindo num clima de erudição classicizante, cuja orientação, refractária às mudanças do progresso trazida por tantos dos novos sábios, filósofos e cientistas estrangeiros, a Contra-Reforma colocou no nosso país sobre ombros jesuíticos, no requinte do seu saber alatinado, hermético, malabarístico e castrador, desligado da evolução cultural do mundo exterior, com uma Inquisição impondo, nas suas práticas criminosas, a condenação ou a expulsão de judeus, comerciantes e sábios cuja presença no país seria tão extremamente preciosa na criação de uma burguesia letrada e rica.

            E o fruto da nossa pobreza intelectual, extensível a toda a sociedade - os mais letrados com uma visão facciosa ou restritiva, impeditiva de voos mais amplos, apesar de tantas tentativas de alargamento cultural, ao longo dos tempos, acompanhantes dos movimentos culturais estrangeiros, que pretendíamos imitar – mantém-se como um espinho jamais arrancado, no acinzentado de uma população malformada, desinteressada de outros valores que não sejam os materiais, população de que partiram os governantes ou os partidários da esperteza saloia que tão bem nos definiu ultimamente.

No Público de sábado, 5, Vasco Pulido Valente retrata um deles, Aníbal Cavaco Silva, como um ser de ambiguidades orientadas soturnamente em proveito próprio, indiferente, no seu final, a mais do que, como De Gaulle, muito antes, “inaugurar crisântemos”. No Público de domingo, 6, que transcrevo, indica o que tem sido a política ancorada numa Constituição de horizontes limitativos, de acordo com os seus mentores primeiros, cuja aura se impõe ainda, pelos muitos beneficiários que nos trouxeram aqui, a este destroçar da esperança numa reconstituição nacional.

Na verdade, o “custe o que custar” do “rapaz” que nos governa agora com as suas frases roncantes, já tinha sido pensado, se não pronunciado antes (cf., no seu paralelo, com o “descolonização, já”, salvo erro do sr. Rosa Coutinho, mas que todos pensaram, incomodados com o abcesso que pretendiam extirpar, todos doutores encartados no diagnóstico), e que o dr. Soares e seus congéneres esqueceram, entretidos posteriormente nas suas próprias “safras do apanhar”, que já a “Barca” do nosso  Gil Vicente aplica ao discurso do seu Onzeneiro. Por tais motivos não devíamos estranhar tanto essas frases roncantes dos ditames forçados ou menos educados de quem teve bons mestres nacionais a precedê-los, com idêntica aspereza ou insensibilidade.

 

«A Crise da Constituição»:
«A Constituição da República Portuguesa foi feita em condições que todos nós conhecemos; mais precisamente sob pressão da facção “moderada” do MFA e do Partido Comunista de Álvaro Cunhal. Isto veio depois de 48 anos de ditadura e dois da criminosa fantasia do PREC. Portugal entrou numa periclitante “normalidade” democrática, sob tutela militar, que não dava a nenhum Governo tempo ou segurança. Andámos nesta aberração até 1989, como se as coisas corressem normalmente. Havia até um certo orgulho na nossa “jovem democracia” (era a frase da época), na ilusão quase universal de que ela na prática existia. Mas porque ela de facto não existia, o país começou o seu curto caminho para a dívida e a bancarrota, sem o menor entrave ou a mais leve aflição. Desde que se fizessem eleições e a polícia continuasse a prender (alguns) ladrões, ninguém se preocupava.
Chegou a verdadeira crise, ou seja, a crise que esvaziava os bolsos do contribuinte e chegou também imediatamente a indignação do país, que de um dia para o outro descobriu a indiferença ou malvadez com que Passos Coelho e o sr. Gaspar tratavam o documento fundador da nossa sacratíssima II (ou III) República, sobretudo no capítulo do Orçamento. Vivendo num mar de ilegalidade desde, pelo menos, 1910, custa perceber como de repente esta extraordinária revelação desceu sobre a cabeça do indígena. Mas que desceu, desceu. A direita ameaça com a queda iminente do Governo e o Governo com o caos geral. Entre os dois, Cavaco balança e espera que a excitação acalme.
Entretanto, zunem acusações gravíssimas: que o Governo quer um pretexto para se ir embora, legando o desastre ao Presidente e ao TC; que o TC está a sofrer a pressão da franja ditatorial do regime (escondida no PSD, claro); que o dr. Cavaco prepara um “bloco central” contra, ou sem, os partidos; que numa manhã de nevoeiro virá por aí fora um salvífico cavaleiro, chamado Monto, ou mesmo Santos Silva.; que o mundo acaba definitivamente em Abril ou Julho, ou no máximo Outubro. No meio desta confusão, apareceram missionários da supremacia da lei, berrando nos jornais contra o expediente político. Mas como não há-de ser político um tribunal politicamente escolhido, decidindo sobre um assunto político? Nada melhor do que a polémica, que hoje entretém o país, para mostrar a nossa desesperada miséria e a nossa absoluta falta de bom senso.»
Uma chave de ouro a fechar uma análise séria e preocupada de uma situação de ruptura pátria, perpetrada ao longo de quase quatro décadas pelos mercenários do poder, numa nação de debilidade conceptual que os elegeu confiada.

 

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