Mais um
texto de Vasco Pulido Valente a merecer uma ponderação de tristeza – a do
reconhecimento de uma eterna parolice, fruto de uma formação condizente com
esta mediania desprezível de povo pobre, sempre marginalizado numa educação
mínima ou nula, a nobreza e o clero de outrora seguindo num clima de erudição
classicizante, cuja orientação, refractária às mudanças do progresso trazida
por tantos dos novos sábios, filósofos e cientistas estrangeiros, a
Contra-Reforma colocou no nosso país sobre ombros jesuíticos, no requinte do seu
saber alatinado, hermético, malabarístico e castrador, desligado da evolução
cultural do mundo exterior, com uma Inquisição impondo, nas suas práticas
criminosas, a condenação ou a expulsão de judeus, comerciantes e sábios cuja presença
no país seria tão extremamente preciosa na criação de uma burguesia letrada e
rica.
E o fruto da nossa pobreza
intelectual, extensível a toda a sociedade - os mais letrados com uma visão
facciosa ou restritiva, impeditiva de voos mais amplos, apesar de tantas
tentativas de alargamento cultural, ao longo dos tempos, acompanhantes dos
movimentos culturais estrangeiros, que pretendíamos imitar – mantém-se como um
espinho jamais arrancado, no acinzentado de uma população malformada,
desinteressada de outros valores que não sejam os materiais, população de que
partiram os governantes ou os partidários da esperteza saloia que tão bem nos
definiu ultimamente.
No Público
de sábado, 5, Vasco Pulido Valente retrata um deles, Aníbal Cavaco
Silva, como um ser de ambiguidades orientadas soturnamente em proveito
próprio, indiferente, no seu final, a mais do que, como De Gaulle, muito antes,
“inaugurar crisântemos”. No Público de domingo, 6, que
transcrevo, indica o que tem sido a política ancorada numa Constituição de
horizontes limitativos, de acordo com os seus mentores primeiros, cuja aura se
impõe ainda, pelos muitos beneficiários que nos trouxeram aqui, a este
destroçar da esperança numa reconstituição nacional.
Na verdade,
o “custe o que custar” do “rapaz” que nos governa agora com as
suas frases roncantes, já tinha sido pensado, se não pronunciado antes (cf.,
no seu paralelo, com o “descolonização, já”, salvo erro do sr. Rosa
Coutinho, mas que todos pensaram, incomodados com o abcesso que pretendiam
extirpar, todos doutores encartados no diagnóstico), e que o dr. Soares e seus
congéneres esqueceram, entretidos posteriormente nas suas próprias “safras
do apanhar”, que já a “Barca” do nosso Gil Vicente aplica ao discurso do seu
Onzeneiro. Por tais motivos não devíamos estranhar tanto essas frases roncantes
dos ditames forçados ou menos educados de quem teve bons mestres nacionais a precedê-los,
com idêntica aspereza ou insensibilidade.
«A Crise
da Constituição»:
«A
Constituição da República Portuguesa foi feita em condições que todos nós
conhecemos; mais precisamente sob pressão da facção “moderada” do MFA e do
Partido Comunista de Álvaro Cunhal. Isto veio depois de 48 anos de ditadura e
dois da criminosa fantasia do PREC. Portugal entrou numa periclitante
“normalidade” democrática, sob tutela militar, que não dava a nenhum Governo
tempo ou segurança. Andámos nesta aberração até 1989, como se as coisas
corressem normalmente. Havia até um certo orgulho na nossa “jovem democracia”
(era a frase da época), na ilusão quase universal de que ela na prática
existia. Mas porque ela de facto não existia, o país começou o seu curto
caminho para a dívida e a bancarrota, sem o menor entrave ou a mais leve
aflição. Desde que se fizessem eleições e a polícia continuasse a prender
(alguns) ladrões, ninguém se preocupava.
Chegou a
verdadeira crise, ou seja, a crise que esvaziava os bolsos do contribuinte e
chegou também imediatamente a indignação do país, que de um dia para o outro
descobriu a indiferença ou malvadez com que Passos Coelho e o sr. Gaspar
tratavam o documento fundador da nossa sacratíssima II (ou III) República,
sobretudo no capítulo do Orçamento. Vivendo num mar de ilegalidade desde, pelo
menos, 1910, custa perceber como de repente esta extraordinária revelação
desceu sobre a cabeça do indígena. Mas que desceu, desceu. A direita ameaça com
a queda iminente do Governo e o Governo com o caos geral. Entre os dois, Cavaco
balança e espera que a excitação acalme.
Entretanto,
zunem acusações gravíssimas: que o Governo quer um pretexto para se ir embora,
legando o desastre ao Presidente e ao TC; que o TC está a sofrer a pressão da
franja ditatorial do regime (escondida no PSD, claro); que o dr. Cavaco prepara
um “bloco central” contra, ou sem, os partidos; que numa manhã de nevoeiro virá
por aí fora um salvífico cavaleiro, chamado Monto, ou mesmo Santos Silva.; que
o mundo acaba definitivamente em Abril ou Julho, ou no máximo Outubro. No meio
desta confusão, apareceram missionários da supremacia da lei, berrando nos
jornais contra o expediente político. Mas como não há-de ser político um
tribunal politicamente escolhido, decidindo sobre um assunto político? Nada
melhor do que a polémica, que hoje entretém o país, para mostrar a nossa
desesperada miséria e a nossa absoluta falta de bom senso.»
Uma chave
de ouro a fechar uma análise séria e preocupada de uma situação de ruptura pátria,
perpetrada ao longo de quase quatro décadas pelos mercenários do poder, numa
nação de debilidade conceptual que os elegeu confiada.
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