terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Mas o pior é se for o do futuro


O roubo do presente, um texto chegado por email.

Trata-se de um trecho ditado pelo espírito de alguém que, chegado a uma etapa da vida portuguesa em que muitos são os sacrifícios exigidos, sem cuidar de culpabilizar os inúmeros responsáveis anteriores (dado que os actuais se distribuem, por imperativo de fatalidade, o papel pendente de conserto do mal) pelo buraco negro desse “presente que nos é roubado”, prefere descarregar as baterias da sua acusação unilateralmente sobre um governo que “tant bien que mal” se esforça precisamente por impedir “la ruée” da nação para o tal “buraco negro” da nossa metáfora de preferência, o que me faz constatar que, mesmo os considerados grandes pensadores, não são isentos de parcialidades nas suas conclusões, mais fruto de rebuscamentos caprichosos de pensamento e estilo do que de um debruçar honesto e sem parcialidade sobre as conjunturas da nossa realidade.

 Na verdade, o tom do texto é de violência exclusiva contra o actual Governo,  fazendo obstrução a tudo o que para trás ficou de políticas libertinas de governos anteriores, quer relativamente a gastos de dinheiros de empréstimos (que se impõe pagar para paulatinamente recomeçar a construção), quer relativamente a políticas de subserviência ao estrangeiro que impôs um esfacelar de produtividade, nos sectores primário e até mesmo o secundário (com bastos reflexos sobre o terciário), quer relativamente a um fechar de olhos a alastrante rede de falcatruas e enredos de corrupção que tiveram por móbil único o enriquecimento pessoal, calcando quaisquer noções de respeito e valores morais. E, cereja em cima do bolo podre, de uma massa governativa acéfala sobre uma sociedade tornada paulatinamente parasitária, o descalabro num sistema de ensino de desrespeito pelos valores do ensino e pelo papel dos ensinantes, e de desresponsabilização, indisciplina e desinteresse por parte dos aprendentes.

O texto de José Gil, ditado por desespero de menino que não viveu nem agruras de guerra – da Segunda Guerra, em que tantos morreram e tantos se desesperaram e tantos o disseram nos seus escritos – da nossa guerra do Ultramar, em que tantos colegas seus penaram, coarctados nos seus projectos de vida – e que se entreteve a estudar, certamente, para mérito seu, longe da pátria, mas que pouco se importou que uma descolonização inesperada destruísse vidas e haveres de pessoas que até contribuíam para o progresso da sua pátria, é um texto sem fundamento pertinente, mau grado a dimensão aparatosa de um discurso  de dor. E raiva. Porque não seria tão dolorido se fosse outro o governante.

            Leiamos:

«No passado dia 20 de dezembro de 2012, a revista Visão publicou o artigo de opinião, da autoria do filósofo José Gil, intitulado "O roubo do presente" que se transcreve de seguida.»:

«Nunca uma situação se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspetivas de vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente. Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.

O «empobrecimento» significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu.

O poder destrói o presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho.

O Governo utiliza as duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e incessantes: stresse, depressões, patologias border-/ine enchem os gabinetes dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses (sobretudo jovens).

O presente não é uma dimensão abstrata do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas direções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público.

Atualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população: não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e mental) para o convivio. A solidariedade efetiva não chega para retecer o laço social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está a destruir a sociedade civil.

Um fenómeno, propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me transformar num ser espetral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.

Sem presente, os portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de ação. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país."»

“Este Governo transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do nosso poder de ação. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos conquistar a nossa potência própria e o nosso país." :

Podemos nós crer num discurso sem sofisma, este que atribui a este Governo o exclusivo da fantomatização, da paralisia, da humilhação das massas, da zumbificação dos seres, da “expulsão do seu espaço, continuando paradoxalmente a ocupá-lo”?

Este colocar-se em situação de altivo – se não inocente - privilégio, qual Adão antes da expulsão, ignorando todos os que aqui lutaram e sofreram e trabalharam - uns com mais precariedade do que outros, como sempre - e os que continuam, apesar das condições da quase ruptura, a lutar e a ter filhos e a confiar, e a amar os seus e a pátria adversa, é um posicionamento quase me atrevo a chamar de pueril, no que toca ao seu desabafo íntimo tão derrotista. Um posicionamento idêntico ao dos companheiros da esquerda grandiloquente, que propõe a deposição do Governo.

Um texto maquiavélico. Direi mesmo, mefistofélico. Se não, dum egoísmo pecaminoso, que abomina o presente – o presente roubado - e não tem um olhar pesaroso sobre um futuro de sombra, pela deseducação feita nas estruturas familiares e educativas – o remate do bolo fétido em que nos tornámos. Culpa de outros, será. Culpa de todos nós, sem dúvida.

 

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