“O roubo do presente”, um texto chegado
por email.
Trata-se de um trecho
ditado pelo espírito de alguém que, chegado a uma etapa da vida portuguesa em
que muitos são os sacrifícios exigidos, sem cuidar de culpabilizar os inúmeros responsáveis
anteriores (dado que os actuais se distribuem, por imperativo de fatalidade, o
papel pendente de conserto do mal) pelo buraco negro desse “presente que nos
é roubado”, prefere descarregar as baterias da sua acusação unilateralmente
sobre um governo que “tant bien que mal” se esforça precisamente por impedir
“la ruée” da nação para o tal “buraco negro” da nossa metáfora de
preferência, o que me faz constatar que, mesmo os considerados grandes
pensadores, não são isentos de parcialidades nas suas conclusões, mais fruto de
rebuscamentos caprichosos de pensamento e estilo do que de um debruçar honesto
e sem parcialidade sobre as conjunturas da nossa realidade.
Na verdade, o tom do texto é de violência
exclusiva contra o actual Governo,
fazendo obstrução a tudo o que para trás ficou de políticas libertinas
de governos anteriores, quer relativamente a gastos de dinheiros de empréstimos
(que se impõe pagar para paulatinamente recomeçar a construção), quer
relativamente a políticas de subserviência ao estrangeiro que impôs um
esfacelar de produtividade, nos sectores primário e até mesmo o secundário (com
bastos reflexos sobre o terciário), quer relativamente a um fechar de olhos a
alastrante rede de falcatruas e enredos de corrupção que tiveram por móbil
único o enriquecimento pessoal, calcando quaisquer noções de respeito e valores
morais. E, cereja em cima do bolo podre, de uma massa governativa acéfala sobre
uma sociedade tornada paulatinamente parasitária, o descalabro num sistema de ensino
de desrespeito pelos valores do ensino e pelo papel dos ensinantes, e de desresponsabilização,
indisciplina e desinteresse por parte dos aprendentes.
O texto de José Gil,
ditado por desespero de menino que não viveu nem agruras de guerra – da Segunda
Guerra, em que tantos morreram e tantos se desesperaram e tantos o disseram nos
seus escritos – da nossa guerra do Ultramar, em que tantos colegas seus penaram,
coarctados nos seus projectos de vida – e que se entreteve a estudar,
certamente, para mérito seu, longe da pátria, mas que pouco se importou que uma
descolonização inesperada destruísse vidas e haveres de pessoas que até contribuíam
para o progresso da sua pátria, é um texto sem fundamento pertinente, mau grado
a dimensão aparatosa de um discurso de
dor. E raiva. Porque não seria tão dolorido se fosse outro o governante.
Leiamos:
«No passado dia 20 de
dezembro de 2012, a revista Visão publicou o artigo de opinião, da
autoria do filósofo José Gil, intitulado "O roubo do
presente" que se transcreve de seguida.»:
«Nunca uma situação
se desenhou assim para o povo português: não ter futuro, não ter perspetivas de
vida social, cultural, económica, e não ter passado porque nem as competências
nem a experiência adquiridas contam já para construir uma vida. Se perdemos o
tempo da formação e o da esperança foi porque fomos desapossados do nosso presente.
Temos apenas, em nós e diante de nós, um buraco negro.
O «empobrecimento»
significa não ter aonde construir um fio de vida, porque se nos tirou o solo do
presente que sustenta a existência. O passado de nada serve e o futuro entupiu.
O poder destrói o
presente individual e coletivo de duas maneiras: sobrecarregando o sujeito de
trabalho, de tarefas inadiáveis, preenchendo totalmente o tempo diário com
obrigações laborais; ou retirando-lhe todo o trabalho, a capacidade de
iniciativa, a possibilidade de investir, empreender, criar. Esmagando-o com
horários de trabalho sobre-humanos ou reduzindo a zero o seu trabalho.
O Governo utiliza as
duas maneiras com a sua política de austeridade obsessiva: por exemplo, mata os
professores com horas suplementares, imperativos burocráticos excessivos e
incessantes: stresse, depressões, patologias border-/ine enchem os gabinetes
dos psiquiatras que os acolhem. É o massacre dos professores. Em exemplo
contrário, com os aumentos de impostos, do desemprego, das falências, a
política do Governo rouba o presente de trabalho (e de vida) aos portugueses
(sobretudo jovens).
O presente não é uma
dimensão abstrata do tempo, mas o que permite a consistência do movimento no
fluir da vida. O que permite o encontro e a intensificação das forças vivas do
passado e do futuro - para que possam irradiar no presente em múltiplas
direções. Tiraram-nos os meios desse encontro, desapossaram-nos do que torna
possível a afirmação da nossa presença no presente do espaço público.
Atualmente, as pessoas
escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais. O empobrecimento
sistemático da sociedade está a produzir uma estranha atomização da população:
não é já o «cada um por si», porque nada existe no horizonte do «por si». A
sociabilidade esboroa-se aceleradamente, as famílias dispersam-se, fecham-se em
si, e para o português o «outro» deixou de povoar os seus sonhos - porque a
textura de que são feitos os sonhos está a esfarrapar-se. Não há tempo (real e
mental) para o convivio. A solidariedade efetiva não chega para retecer o laço
social perdido. O Governo não só está a desmantelar o Estado social, como está
a destruir a sociedade civil.
Um fenómeno,
propriamente terrível, está a formar-se: enquanto o buraco negro do presente
engole vidas e se quebram os laços que nos ligam às coisas e aos seres, estes
continuam lá, os prédios, os carros, as instituições, a sociedade. Apenas as
correntes de vida que a eles nos uniam se romperam. Não pertenço já a esse
mundo que permanece, mas sem uma parte de mim. O português foi expulso do seu
próprio espaço continuando, paradoxalmente, a ocupá-lo. Como um zombie: deixei
de ter substância, vida, estou no limite das minhas forças - em vias de me
transformar num ser espetral. Sou dois: o que cumpre as ordens automaticamente
e o que busca ainda uma réstia de vida para os seus, para os filhos, para si.
Sem presente, os
portugueses estão a tornar-se os fantasmas de si mesmos, à procura de reaver a
pura vida biológica ameaçada, de que se ausentou toda a dimensão espiritual. É
a maior humilhação, a fantomatização em massa do povo português. Este Governo
transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do
nosso poder de ação. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos
conquistar a nossa potência própria e o nosso país."»
“Este Governo
transforma-nos em espantalhos, humilha-nos, paralisa-nos, desapropria-nos do
nosso poder de ação. É este que devemos, antes de tudo, recuperar, se queremos
conquistar a nossa potência própria e o nosso país." :
Podemos nós crer num
discurso sem sofisma, este que atribui a este Governo o exclusivo da
fantomatização, da paralisia, da humilhação das massas, da zumbificação dos
seres, da “expulsão do seu espaço, continuando paradoxalmente a ocupá-lo”?
Este colocar-se em
situação de altivo – se não inocente - privilégio, qual Adão antes da expulsão,
ignorando todos os que aqui lutaram e sofreram e trabalharam - uns com mais precariedade
do que outros, como sempre - e os que continuam, apesar das condições da quase
ruptura, a lutar e a ter filhos e a confiar, e a amar os seus e a pátria
adversa, é um posicionamento quase me atrevo a chamar de pueril, no que toca ao
seu desabafo íntimo tão derrotista. Um posicionamento idêntico ao dos
companheiros da esquerda grandiloquente, que propõe a deposição do Governo.
Um texto maquiavélico.
Direi mesmo, mefistofélico. Se não, dum egoísmo pecaminoso, que abomina o
presente – o presente roubado - e não tem um olhar pesaroso sobre um futuro
de sombra, pela deseducação feita nas estruturas familiares e educativas –
o remate do bolo fétido em que nos tornámos. Culpa de outros, será. Culpa de
todos nós, sem dúvida.
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