segunda-feira, 17 de junho de 2013

Abrangência

A minha admiração por Clara Ferreira Alves já a manifestei em livro, no Prefácio de “O Maravilhoso Mundo das Lendas de Santos de Eça de Queirós”, publicado em 2010 pela Chiado Editora, a propósito da teoria da imitação:

«No nosso século XX, de Fernando Pessoa e suas várias facetas, tão imbuídas de conceitos, alguns dos quais também contidos no “Fausto” de Goethe (cf. “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos) às crónicas cheias de rigor, reflexão, subtileza crítica, riqueza humana e literária, de Clara Ferreira Alves, quem pode isolar-se de contágios literários, para mais numa época mediática em que a informação se impõe em níveis que reclamam dons extraordinários de absorção e análise, se escritores se concentram em torno de ideais e temáticas comuns, se se agrupam em torno de revistas que lhes condicionam o estro, de que terão que se furtar se pretenderem uma autonomia mais de acordo com as suas potencialidades? Miguel Torga assim o fez, Vergílio Ferreira, numa marcha constante de experimentalismo literário, foi sucessivamente tentando novas técnicas - de neo-realismo, de existencialismo, de “nouveau roman” - de acordo com as correntes nacionais ou estrangeiras. E se é certo que Agustina Bessa Luís parece isolada num universo romanesco muito pessoal, construído laboriosamente e requintadamente, com certeza não é estranho ao seu processo diegético o desfiar arrastado da narrativa de precisão realista de Flaubert, a de Proust e o seu “tempo da memória” ou “durée” de Bergson, as narrativas rurais que a motivaram, de Camilo, de George Sand, e tantos mais… »

            O texto de Clara Ferreira Alves, que segue, extraído da Revista “Única” do “Expresso” desta semana é bem exemplo de outros muitos que a sua “Pluma Caprichosa” ali tem publicado, revelador de autêntico domínio na arte da sátira, da retórica e da prosódia, unido a informação livresca e viageira que a sua inteligência acutilante alia a uma sensibilidade crítica admiravelmente atenta ao mundo.

Leio-a desde que a conheço, ouço-a – agora menos, pelo atropelo pretensioso e ruidoso de alguns dos parceiros do programa “Eixo do Mal” no exibicionismo de uma orientação viperina a que falta o reconhecimento da tarefa exaustiva de um Governo que parece querer reatar uma tradição de comedimento económico mais virtuoso, princípio que nenhum dos parceiros do programa reconhece, por necessário que pareça ser a um recomeço menos enredado.

Trata-se de um texto literariamente argumentativo, de técnica circular, o fim retomando o princípio, em que o “nós” dos enunciados negativos paralelos representam a multiplicidade de pontos de vista da “gente” portuguesa mais ou menos tratada com a altivez doutoral do seu saber imodesto, mas que a inclui também, necessariamente, em tantas das razões apresentadas, e o enunciado positivo do início e do fim do texto, apresenta o retrato irónico de todo um povo imaturo, preguiçoso e confiante, construindo a vida à base da fé e da esperança na manhã de nevoeiro salvadora.

O texto:

«O Veneno»

«Confiamos na meteorologia e no futebol. Na astrologia e no Euromilhões. Na sorte e no azar. Confiamos em tudo o que está longe.

Em quem confiamos? Não confiamos nas instituições democráticas porque estão desvirtuadas; não confiamos nos tribunais porque achamos que a justiça não é distribuída, existe a dos ricos e a dos pobres (que faz com que Duarte Lima e Oliveira Costa estejam no conforto das casas e os condenados por pequenas fraudes e burlas estejam em prisões nacionais); não confiamos na banca que está cheia de bonificações e vazia de consciência; não confiamos nos jornalistas porque estão corrompidos pelo poder ou coagidos pelas administrações que exercem a autocensura e a punição administrativa e pecuniária; não confiamos na lei porque se a desobediência é recompensada no topo, a ilegalidade de base deve ser praticada como medida de compensação; não confiamos no emprego porque corremos todo o tempo o risco de ficar sem o emprego que temos e porque a intuição e o credo dominante nos dizem que todo o emprego que temos pode ser convertido num desemprego (para nos manter ágeis e activos e seguros pelas pontas); não confiamos nas poupanças porque a União Europeia pode decretar a todo o tempo que as nossas poupanças são as poupanças deles e usá-las para pagar resgates e afins; não confiamos nos professores porque o sistema está viciado e porque fazem greves; não confiamos nos estudantes porque não querem estudar; não confiamos nos velhos porque consomem o futuro dos novos; não confiamos nos novos porque consomem o presente dos futuros velhos; não confiamos nos desempregados porque não têm poder e não servem para nada; não confiamos nos jovens porque não se esforçam o suficiente e não são empreendedores (e não montam indústrias entre os 15 anos e os 20 anoa); não confiamos nos transportes públicos porque estão sempre em greve; não confiamos nos gestores públicos porque fazem swaps e levam as empresas públicas à falência, que por sua vez causam diminuição de salários e despedimentos que por sua vez causam greves; não confiamos no casamento porque sem dinheiro os divórcios aumentam; não confiamos na maternidade (nem na paternidade) porque sem dinheiro os filhos pesam; não confiamos no fisco porque é como a justiça, existe um para os ricos e outro para os pobres (existe um para os assalariados e outro para os banqueiros (e mais ricos de Portugal); não confiamos nos políticos porque nos mentem e nos roubam; não confiamos nos governos nem nas oposições porque só querem poleiro; não confiamos nos filhos porque quando têm 20 anos (e não estão a criar empresas) também nos mentem mas em pequeníssimas quantidades e com o nosso consentimento (quase sempre às quintas-feiras à noite); não confiamos nos patrões porque nos querem despedir; não confiamos nos chefes porque nos querem torturar; não confiamos nos colegas porque nos querem ultrapassar; não confiamos nos artistas porque gastam o dinheiro dos nossos impostos; não confiamos nos governos porque dão o dinheiro dos nossos impostos a gente em quem não confiamos; não confiamos no clima porque acabaram as estações do ano e o planeta está a aquecer e sufocar-nos; não confiamos na comida porque está cheia de pesticidas; não confiamos nos médicos públicos porque se fossem bons estavam no privado; não confiamos nos médicos privados porque se fossem bons trabalhavam no sistema público; não confiamos nos hospitais porque nos tratam mal; não confiamos nos empreiteiros porque corrompem os presidentes de câmaras; não confiamos nos presidentes de câmaras porque fazem negócios escuros com os empreiteiros; não confiamos em obras públicas porque são derrapagens; não confiamos em obras privadas porque são sempre e também públicas (e nós é que pagamos); não confiamos na polícia porque não (excepto um e demorou) prende os empreiteiros nem os presidentes das câmaras; não confiamos nas privatizações nem nas reestruturações; não confiamos no sol porque faz cancro; não confiamos no mar porque está poluído; não confiamos nos medicamentos porque a indústria farmacêutica é uma máfia; não confiamos nos antibióticos porque deixaram de fazer efeito (tal como os sedativos e antidepressivos); não confiamos no ar porque faz alergias; não confiamos nos ricos porque nos querem oprimir; não confiamos nos pobres porque nos querem pedir; não confiamos no Acordo Ortográfico nem em nenhum acordo; não confiamos em pactos, contratos, orçamentos, previsões; não confiamos em ninguém porque desconfiamos uns dos outros. Confiamos no que dizem as televisões e os telemóveis. Nos carros e nos computadores. Nos actores. No Google e no YouTube. Nos mil amigos Facebook. No Justin Bieber e na Rihanna. No nosso cão. E gato (nem sempre). Confiamos na meteorologia e no futebol. Na astrologia e no Euromilhões. Na sorte e azar. Confiamos em tudo o que está longe e não depende de nós.»

           

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