«No nosso século XX, de Fernando Pessoa e suas várias
facetas, tão imbuídas de conceitos, alguns dos quais também contidos no
“Fausto” de Goethe (cf. “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos) às crónicas cheias
de rigor, reflexão, subtileza crítica, riqueza humana e literária, de Clara
Ferreira Alves, quem pode isolar-se de contágios literários, para mais numa
época mediática em que a informação se impõe em níveis que reclamam dons
extraordinários de absorção e análise, se escritores se concentram em torno de
ideais e temáticas comuns, se se agrupam em torno de revistas que lhes
condicionam o estro, de que terão que se furtar se pretenderem uma autonomia
mais de acordo com as suas potencialidades? Miguel Torga assim o fez, Vergílio
Ferreira, numa marcha constante de experimentalismo literário, foi
sucessivamente tentando novas técnicas - de neo-realismo, de existencialismo,
de “nouveau roman” - de acordo com as correntes nacionais ou estrangeiras. E se
é certo que Agustina Bessa Luís parece isolada num universo romanesco muito
pessoal, construído laboriosamente e requintadamente, com certeza não é
estranho ao seu processo diegético o desfiar arrastado da narrativa de precisão
realista de Flaubert, a de Proust e o seu “tempo da memória” ou “durée” de
Bergson, as narrativas rurais que a motivaram, de Camilo, de George Sand, e
tantos mais… »
O
texto de Clara Ferreira Alves, que segue, extraído da Revista “Única” do
“Expresso” desta semana é bem exemplo de outros muitos que a sua “Pluma Caprichosa”
ali tem publicado, revelador de autêntico domínio na arte da sátira, da
retórica e da prosódia, unido a informação livresca e viageira que a sua inteligência
acutilante alia a uma sensibilidade crítica admiravelmente atenta ao mundo.
Leio-a
desde que a conheço, ouço-a – agora menos, pelo atropelo pretensioso e ruidoso
de alguns dos parceiros do programa “Eixo do Mal” no exibicionismo de uma orientação
viperina a que falta o reconhecimento da tarefa exaustiva de um Governo que
parece querer reatar uma tradição de comedimento económico mais virtuoso, princípio
que nenhum dos parceiros do programa reconhece, por necessário que pareça ser a
um recomeço menos enredado.
Trata-se de
um texto literariamente argumentativo, de técnica circular, o fim retomando o
princípio, em que o “nós” dos enunciados negativos paralelos representam a
multiplicidade de pontos de vista da “gente” portuguesa mais ou menos tratada
com a altivez doutoral do seu saber imodesto, mas que a inclui também, necessariamente,
em tantas das razões apresentadas, e o enunciado positivo do início e do fim do
texto, apresenta o retrato irónico de todo um povo imaturo, preguiçoso e
confiante, construindo a vida à base da fé e da esperança na manhã de nevoeiro salvadora.
O texto:
«O Veneno»
«Confiamos na meteorologia e no
futebol. Na astrologia e no Euromilhões. Na sorte e no azar. Confiamos em tudo
o que está longe.
Em quem confiamos? Não confiamos nas instituições
democráticas porque estão desvirtuadas; não confiamos nos tribunais porque
achamos que a justiça não é distribuída, existe a dos ricos e a dos pobres (que
faz com que Duarte Lima e Oliveira Costa estejam no conforto das casas e os
condenados por pequenas fraudes e burlas estejam em prisões nacionais); não
confiamos na banca que está cheia de bonificações e vazia de consciência; não
confiamos nos jornalistas porque estão corrompidos pelo poder ou coagidos pelas
administrações que exercem a autocensura e a punição administrativa e
pecuniária; não confiamos na lei porque se a desobediência é recompensada no
topo, a ilegalidade de base deve ser praticada como medida de compensação; não
confiamos no emprego porque corremos todo o tempo o risco de ficar sem o
emprego que temos e porque a intuição e o credo dominante nos dizem que todo o
emprego que temos pode ser convertido num desemprego (para nos manter ágeis e
activos e seguros pelas pontas); não confiamos nas poupanças porque a União
Europeia pode decretar a todo o tempo que as nossas poupanças são as poupanças
deles e usá-las para pagar resgates e afins; não confiamos nos professores
porque o sistema está viciado e porque fazem greves; não confiamos nos
estudantes porque não querem estudar; não confiamos nos velhos porque consomem
o futuro dos novos; não confiamos nos novos porque consomem o presente dos
futuros velhos; não confiamos nos desempregados porque não têm poder e não
servem para nada; não confiamos nos jovens porque não se esforçam o suficiente
e não são empreendedores (e não montam indústrias entre os 15 anos e os 20
anoa); não confiamos nos transportes públicos porque estão sempre em greve; não
confiamos nos gestores públicos porque fazem swaps e levam as empresas públicas
à falência, que por sua vez causam diminuição de salários e despedimentos que
por sua vez causam greves; não confiamos no casamento porque sem dinheiro os
divórcios aumentam; não confiamos na maternidade (nem na paternidade) porque
sem dinheiro os filhos pesam; não confiamos no fisco porque é como a justiça,
existe um para os ricos e outro para os pobres (existe um para os assalariados
e outro para os banqueiros (e mais ricos de Portugal); não confiamos nos
políticos porque nos mentem e nos roubam; não confiamos nos governos nem nas
oposições porque só querem poleiro; não confiamos nos filhos porque quando têm
20 anos (e não estão a criar empresas) também nos mentem mas em pequeníssimas
quantidades e com o nosso consentimento (quase sempre às quintas-feiras à
noite); não confiamos nos patrões porque nos querem despedir; não confiamos nos
chefes porque nos querem torturar; não confiamos nos colegas porque nos querem
ultrapassar; não confiamos nos artistas porque gastam o dinheiro dos nossos
impostos; não confiamos nos governos porque dão o dinheiro dos nossos impostos
a gente em quem não confiamos; não confiamos no clima porque acabaram as
estações do ano e o planeta está a aquecer e sufocar-nos; não confiamos na
comida porque está cheia de pesticidas; não confiamos nos médicos públicos
porque se fossem bons estavam no privado; não confiamos nos médicos privados
porque se fossem bons trabalhavam no sistema público; não confiamos nos
hospitais porque nos tratam mal; não confiamos nos empreiteiros porque
corrompem os presidentes de câmaras; não confiamos nos presidentes de câmaras
porque fazem negócios escuros com os empreiteiros; não confiamos em obras
públicas porque são derrapagens; não confiamos em obras privadas porque são
sempre e também públicas (e nós é que pagamos); não confiamos na polícia porque
não (excepto um e demorou) prende os empreiteiros nem os presidentes das
câmaras; não confiamos nas privatizações nem nas reestruturações; não confiamos
no sol porque faz cancro; não confiamos no mar porque está poluído; não
confiamos nos medicamentos porque a indústria farmacêutica é uma máfia; não
confiamos nos antibióticos porque deixaram de fazer efeito (tal como os
sedativos e antidepressivos); não confiamos no ar porque faz alergias; não
confiamos nos ricos porque nos querem oprimir; não confiamos nos pobres porque
nos querem pedir; não confiamos no Acordo Ortográfico nem em nenhum acordo; não
confiamos em pactos, contratos, orçamentos, previsões; não confiamos em ninguém
porque desconfiamos uns dos outros. Confiamos no que dizem as televisões e os telemóveis.
Nos carros e nos computadores. Nos actores. No Google e no YouTube. Nos mil
amigos Facebook. No Justin Bieber e na Rihanna. No nosso cão. E gato (nem
sempre). Confiamos na meteorologia e no futebol. Na astrologia e no
Euromilhões. Na sorte e azar. Confiamos em tudo o que está longe e não depende
de nós.»
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