quarta-feira, 26 de junho de 2013

Está-nos na massa do sangue

E foi por isso que de longa data nos habituámos a zarpar, arrostando contra ventos e marés. Mas alguns, longe da pátria, gemeram de saudade, como fez António Nobre, na autopiedade mórbida do seu destino de enfermo:

Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó.
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!
Que triste foi o seu fado! Antes fosse pra soldado,
Antes fosse próprio Brasil...

Manuel Alegre, não em Paris como Nobre, mas na África nortenha do seu terreno de luta pela tal liberdade que acabou por obter, também chora pela sua pátria acorrentada na escuridão de um destino de fome e medo, reivindicando poeticamente a glória da sua resistência de traição à pátria, em que consistiu essencialmente a resistência ao “fascismo” salazarista:

Pergunto ao vento que passa
 notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz. o vento nada me diz. ….

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo
o que tem quem vive na servidão. ….

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados. ….

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
  à beira de um rio triste. ….

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz. …

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
  há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
  há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

Esses nos ditaram o sestro de coitadinhos desterrados, num estrangeiro inicialmente de exclusão social, na época de Salazar, mas de progressivo enriquecimento cultural e económico, nos países da sua fixação, ao que se tem visto e se vira já nos tempos do “brasileiro de torna-viagem”, ou do “africano” do sul que os extensos territórios e a força económica e cultural tornaram menos mesquinhos. É o que afirma Isaías Afonso, na sua prosa cordata, do texto «HÁ EMIGRANTES E EMIGRANTES» defendendo o conselho objectivo de Passos Coelho de busca de novos horizontes no estrangeiro, na actual crise, como solução talvez provisória para as suas vidas. Os actuais patriotas, defendendo os coitadinhos da nossa baixa auto-estima, seguem as dolentes visões de poetas como os citados, excepto para o caso da emigração futebolística da nossa alta auto estima, segundo Isaías Afonso:

«HÁ EMIGRANTES E EMIGRANTES»

«Vi na televisão, nos vários noticiários, contra a auto-estima dos portugueses, em que a desgraça continua, com as culpas habituais para o actual governo, como se fosse ele o malvado do endividamento nacional.
Este já vem de longe, mas a face visível da crise são Passos Coelho em larga escala e Paulo Portas um pouco menos.
Parece ser a história daquele amigo que emprestava dinheiro a outro, até que este deixou de lhe pagar os sucessivos empréstimos porque o fruto do seu trabalho já não dava para satisfazer tanto empréstimo.
Acabou também este por se revoltar contra o prestamista, porque fechara a torneira das dádivas e então jurou não querer pagar o que devia.
Veio agora A TV anunciar que mais de uma centena e meia de crianças saíram das escolas do 1°Ciclo, na região de Viana do Castelo, a caminho da emigração, acompanhando os seus pais.
A noticia é apresentada como uma tristeza mórbida, como se a emigração não tivesse sempre feito parte da estrutura económico-social portuguesa.
Tenho sempre encarado este fenómeno como uma partida para a valorização pessoal e, nesse aspecto, eu sei do que falo. Com 12 anos de Angola e três dezenas e meia de França, deu-me a clara noção de que apenas a partida é dramática e depois a emoção vai-se esbatendo e tudo se torna normal no espaço que nos acolheu.
A saída das crianças e dos pais é relatada no âmbito da culpa atribuída à actualidade. Aqueles que saíram antes não fazem parte do nosso fado porque a memória é curta ou ela tem a enorme faculdade dum fenómeno a que se dá o nome de esquecimento.
Curiosamente, há uma emigração que eleva a nossa auto-estima e que a imprensa relata como uma valorização acrescida. Trata-se da "exportação de treinadores de futebol".
Estes não são os emigrantes da crise, do drama ou da tragédia nacional. Não são tão pouco culpa deste Governo. Esses são a nossa auto-estima! Louvados e adorados como resultado da nossa capacidade, do nosso "know how" em matéria futebolística.
Os outros são os nossos "coitadinhos"!
A nossa imprensa é que é formada por uma corja de malfeitores que habitam um espaço que se chama Portugal. Esses é que poderiam emigrar para os paraísos que andam a tentar vender barato.» 23 de Junho de 2013
Isaías Afonso
 
O que Isaías Afonso condena nos jornalistas arteiros, useiros e vezeiros na arte da insinuação ou mesmo de difamação para destruição do governo, videirinhos difamadores, poder-se-á atribuir a muitas outras figuras do vário tecido social.
Não resisto à tentação de transcrever, como sintomático da nossa idiossincrasia de povo trapaceiro, burlão, mexeriqueiro, mandrião e interesseiro, o retrato que Fialho de Almeida faz do povo alentejano em “O País das Uvas”, e que é extensível a tantos de nós, como povo de rancores e inércia invejosa:
 
A vila conta naqueles clubes o seu número de comensais invariáveis, que desde rapazes vão lá, e por fim envelheceram aferrados ao travo especial da má-língua que se permuta na locanda preferida. Estes conclaves são magníficos de carácter e cor local. Salários, negócios, estatística de colheitas e poucas-vergonhas, bofetadas, roubos de palha, cancãs de rua, tudo ali vai cancelar a sua bagagem, pagar imposto aduaneiro aos farricocos da moralidade montesa e tirar folha corrida para poder seguir roteiro através do mau hálito das bocas maldizentes. Todas as classes têm na vila o seu predilecto lugar de assembleia. Ao começar da manhã, a classe serva anda nos campos lidando. Os ricos dormem ainda nas suas casas. E o “propriatairo” que então reina, como déspota do burgo, gozando o ripanço dum mariola pela rua central da povoação. Lentamente, depois de “morto o bicho”, cada madraço vem-se arrastando de casa como pode, com os seus chatos fundilhos avergastados de nódoas, o colarinho sujo e sem gravata, as mãos vazias, a face oleosa, e o todo profundamente enfastiado. Nas caras trigueiras, mal barbeadas, balofas, uma expressão vegetal mascara a vida. Aos trinta anos a ociosidade tornou esses homens obesos, moles de músculos, apáticos e profundamente sonegados à função do trabalho activo. (…)
 
E o retrato do «propriatairo» alentejano prossegue, na pujança linguística atrabiliária de Fialho:
 
“Seu ódio contra os ricos é talvez mais torvo ainda do que a surda má vontade que já tinham mostrado aos inferiores. Desta maneira, colocado entre as duas classes que o detestam (a dos “nababos que vivem nos grandes centros, indiferentes ao cultivo e empenhados somente em perceber num prazo fixo o dinheiro das rendas , para sustentação das suas prodigalidades e magnificências”, e a dos “pobres diabos a trabalhar quarenta e cinquenta anos, vestindo saragoça, comendo chicharros, privando-se enfim, por amor do lucro, do estritamente necessário à existência, e que ao fim de velhos e cansados mal puderam juntar em vinhas podres e casebres de telha vã o capital de meia dúzia de contos”) o “propriatairo” vinga-se calcando nos que lhe ficam por baixo e pondo ratoeiras debaixo dos pés dos que lhe ficam por cima. É ele que nos anos de vinho barato vai pelas vindimas lançar à uva um preço caro, por que usufrua o encanto de assistir às percas dos grandes compradores. Ele quem no tempo das cavas incita o jornaleiro às jornas excessivas, tendo primeiro cavado as suas vinhas; e ainda ele que nas tabernas, chupando o cigarro, com um cinismo vesgo, se compraz em destruir a reputação dos ricos-homens da terra, incitando a canalha a arrancar-lhe de noite as plantações, a entrar-lhe com o rebanho nas searas e a deitar fogo ao trigo arroleirado por essas courelas afora. Este miserável ignorante, que ninguém consulta e toda a gente receia, é o invisível gnomo das patifarias aldeãs, o homenzinho das birras, das invejas, das perversidades, das calúnias, o terrível pulha gelatinoso que mesmo fugindo morde e que sob uma hipocrisia de Basílio, vive no ódio, como uma atmosfera propícia, com a cegueira despótica do mando, que ele exerce, em podendo, no sentido pior que lhe é possível!»
 
Eis um retrato do alentejano que podemos generalizar a todo um povo e uma época de ódios e sujeições, como são os de hoje. Mais engravatados, todavia. Se bem que os “fundilhos avergastados de nódoas” do “propriatairo” alentejano bem os podemos encontrar, de certo modo, nos fundilhos descidos de alguma da nossa rapaziada moderna de um desleixo propositadamente fabricado, não para inglês ver, mas para atrair olhares de doce concupiscência, mantenedora, essa, da nossa auto-estima, como Vénus defende, na interpretação de Camões:
 
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
Lus. I, 33

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