De João César das Neves,
o excelente texto sobre uma figura que no canal 1, aos domingos, vai vertendo argumentos
matreiros, de aparência feita de saber experiente e imaculado, a uma bonita
entrevistadora, representante não dos que nele se revêem, mas dos que fabricam
a destruição dos sucessores desse, que, abrutalhadamente vão cerzindo remendos
no pano puído do rectângulo pátrio, esgarçado pelos sucessivos puxões em que
todo um povo foi colaborando, reivindicando continuamente as migalhas que lhe
eram devidas de um bolo em que naturalmente chafurdou mais, quem mais amassou a
massa.
E todos esses que
negociaram maliciosamente a sua exposição pública se saracoteiam em torno da
figura ruidosamente “amoral” que cá chamaram, sem qualquer decência perante a
nação, cientes de que o povoléu se lhe irá prostrar aos pés, habituado que está
a suplicar o milagre, na sua humilhação de séculos, e que as outras frentes
feridas no seu sossego provavelmente o aclamarão, indiferentes às
responsabilidades dessa figura na marcha da nossa ruína.
Mas se outras mais figuras
de caquexia são aceites e veneradas nas bojardas que por aí debitam, porque não
aceitarmos mais estas que, afinal, até se apresentam lindamente encadernadas?
Escusamos de condenar. O
país vive na desvergonha de uma embriaguez sem tino.
INOCENTE
Portugal passa por um
momento terrível, mas isso não o deve impedir de admirar esteticamente uma obra
de arte excepcional. Ora o regresso de José Sócrates é um espantoso feito de
técnica política, do mais alto nível mundial.
A personagem é notável.
Verve, atitude, táctica são excelentes. Para lá das qualidades como tribuno e
estratega, aquilo que o distingue dos demais e o coloca acima da sua geração é
a total ausência de escrúpulos. Não existe a menor contemplação pela realidade
dos factos, interesse nacional, simples decoro pessoal.
Existe apenas um projecto
de poder, e tudo lhe é sacrificado. Há muitas décadas que não tínhamos um
político assim, e já nos esquecemos do estilo. Por isso tanto nos admira a
quase inacreditável capacidade de imaginação e manipulação com que consegue
sair de uma posição que seria desesperada para qualquer outro. Além disso é
terrivelmente eficaz e convence mesmo. Digno de antologia!
Apresenta-se como totalmente
inocente dos males que afligem o País. Foi primeiro-ministro durante mais de
seis anos mas é inimputável pelo desastre que deflagrou nos últimos meses do
seu mandato. A culpa vem de uma "crise das dívidas soberanas", que
lhe é naturalmente alheia. E claro também de um terrível bando de malfeitores,
onde se inclui o actual Governo, bancos, União Europeia e FMI, que pretendem,
por razões não esclarecidas, destruir Portugal. Ele, pelo contrário, sempre
esteve do lado do progresso e alegria, que infelizmente não se concretizaram.
Não é claro se mente
descaradamente ou acredita mesmo na fábula, sofrendo de delírio. Em qualquer
caso, todos os dados apontam para o facto de José Sócrates ser, não imoral, mas
completamente amoral. Não se lhe parecem colocar quaisquer remorsos de
consciência. Por isso é tão convincente. A nossa actual democracia nunca teve,
em posições cimeiras, pessoas deste calibre. Assim, Sócrates destaca-se
flagrantemente.
É preciso dizer que ele
ainda não atingiu os níveis do contemporâneo mestre absoluto da técnica, Silvio
Berlusconi. Nem sequer é evidente que o português alguma vez consiga os feitos
do italiano. No entanto, cabe-lhe um honroso segundo lugar. Esta atribuição não
é forçada porque a relação entre ambos é evidente.
Tirando eles, todos os
líderes que estavam no poder quando bateu a crise, alguns deles de reconhecidas
qualidades, caíram fragorosamente: Geir Haarde na Islândia, Kostas Karamanlis e
George Papandreou na Grécia, José Luis Zapatero em Espanha, Brian Cowen na Irlanda,
Yves Leterme na Bélgica, Nicolas Sarkozy em França, Gordon Brown no Reino
Unido, George Bush nos EUA, etc.
Todos forçados a sair de
cena sem remissão. Deles, apenas Berlusconi e Sócrates mantêm esperanças de
regresso, estando bastante avançados no processo. O estilo de ambos, apesar das
diferenças, tem paralelos evidentes. Mas temos de admitir que o magnata
transalpino, que saiu depois e regressou mais cedo do que o nosso «engenheiro»,
tem evidente primazia.
Admirando o engenho e a
arte, não podemos esquecer o muito que eles devem aos tempos que vivemos. É
preciso recuar às primeiras décadas do século passado para encontrar casos
semelhantes, porque nessa altura o mundo enfrentava dilemas e conflitos
próximos dos actuais. O rancor das acusações, o ressurgimento da retórica
antidemocrática, os contínuos apelos à Grande Depressão aproximam as duas
épocas. Talvez tenhamos aprendido a evitar o pior dessa evolução, mas não
admira o ressurgimento do mesmo tipo de animais políticos.
A única coisa que pode
fazer a diferença é a capacidade dos eleitorados em resistir ao engano. O caso
italiano assusta muito, porque repete traços da antiga trajectória, embora com
diferenças significativas e ainda sem Mussolinis no horizonte. Portugal começou
agora o seu processo. Veremos até que ponto a raiva pelos sacrifícios, junto
com o ilusionismo, conseguirão fazer que o grande beneficiário da crise venha a
ser aquele que indiscutivelmente foi o seu principal responsável. Isso seria
uma obra de arte incomparável.
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