Já os
clássicos – nem todos, é bem de ver – se regiam por princípios inspirados no
sentimento de que o poder material entre os homens era mal repartido, o
igualitarismo social nunca sendo princípio aceite por estes, o que contrariava as
intelectualidades defensoras das ideologias da espiritualidade prevalecendo nas
várias cartilhas humanistas euro-asiáticas. Mas a própria Bíblia, que conta
histórias verdadeiras dos homens e suas famílias, é um cóio de pecadores com imensos
crimes por conta dos direitos de propriedade, sinal de que o mundo já nasceu
com os genes da avidez do poder, como de resto o mostram as literaturas, e que
lançou Karl Marx num protesto tão veemente de incitamento à subversão que o
mundo pôs a ferro e fogo, até hoje.
Mas não
posso deixar de, para exemplificar em beleza, uma vez mais citar da “Écloga
Basto”, do nosso quinhentista Sá de Miranda, os protestos de Gil,
comparando as “brutas feras” com os homens, quanto à crueldade e ambição, muito
mais expressivas nestes do que naquelas, apesar do índice de racionalidade que
os distingue de desvantagem para as primeiras, segundo o consenso geral,
contestado pelos fabulistas:
«Falas-me nos animais, / a que nós
brutos chamamos, / que guardam leis naturais; / nós outros não as guardamos, / a
isso obrigados mais. / Estes homens com quem tratam, /não homens, mas leões
bravos, / por força tudo rematam; /os leões não se resgatam, / não se vendem por escravos.
«Para que mandem nem rejam, / não vão
as águas tingidas / do seu sangue; se pelejam, / não alçam forcas erguidas / onde
às aves manjar sejam./ Não têm repartida a terra /por marcos tão desiguais,
/ de sangue e fogo por guerra: / um possui de serra a serra, / outro nada, ou
dous tojais.»
Nos nossos tempos tão enevoados - muito
embora o próprio Pessoa já o afirmasse para o seu tempo –“Ó Portugal, hoje
és nevoeiro” – para não falarmos na “austera tristeza” pátria, dos
tempos de Camões e posteriores, e por isso até já poderíamos estar a isso habituados,
pois deve resultar a anomalia das desigualdades sociais tão surpreendentes, de
sucessivas governações de longa data deficientes - uma esquerda folclórica vive
do abocanhamento real e figurado de uma pseudodireita prática, fornecedora dos
cabedais, por vezes reticentemente, o que provoca revoltas ideológicas contra
as perversidades de quem é mais prestável para si próprio, abotoando-se com o
miolo de que se julga merecedor no lugar cimeiro que lhe coube no mundo, por conquista
própria ou testamentária, e reservando a côdea dura de roer para as franjas dela
dependentes.
Mas é sobre
essa esquerda astuciosamente virtuosa que trata o magnífico historial de Vasco
Pulido Valente no Público de 1 de Junho, demonstrativo de que também ela
perdeu em qualidade pela ausência de massa orgânica justificativa dos seus
protestos a favor das classes trabalhadoras romanticamente exploradas outrora,
e tendo que canalizar a sua acção protestante unicamente sobre os sucessivos
governos incapazes de gerir, por conta também dessa esquerda responsável, com a
sua acção democraticamente arruaceira, pelo depauperamento nacional. Salazar
sabia-o, sagaz como era:
«O problema das esquerda»
O principal problema da esquerda é um problema teórico.
O proletariado desapareceu e acabou por se tornar numa pequena burguesia, sem
aspirações subversivas mas com aspirações de estatuto e consumo, enquanto a
grande massa dos trabalhadores desceu a uma categoria heterogénea e confusa,
mais parecida com os “miseráveis” de Victor Hugo ou com os “sans-culottes” da
Revolução Francesa do que com o apoio certo e seguro que em Paris como em St.
Petersburgo levou ao poder a classe média. Por outro lado os capitalistas
também já não aparecem à vista do público e são hoje uma entidade obscura e
vaga que a esquerda trata por “banca usurária”, “especuladores”, “casino”
financeiro e epítetos desta natureza sem utilidade prática ou significação
precisa. Do padrão que estava ali, como em Soeiro Pereira Gomes, com o seu
charuto e o seu automóvel, o “explorador” emigrou para uma nuvem, às vezes
longínqua, às vezes próxima, nunca exactamente identificável.
A esquerda precisa de um programa e de objectivos. Mas
pela maneira como ela própria fala, esse programa e a imensidão de objectivos
que dele derivam, que servem talvez para criticar parcialmente o passado, não
servem para guia de acção. Nem manifestações, nem greves, nem uma ou várias
greves gerais garantem a mudança do Governo ou do regime político e nenhuma
delas contribui para o fim da miséria, que de ano em ano cresce. Ainda por
cima, excepto o ocasional maluquinho, pensa seriamente em autarcia ou em desenvolvimento
endógeno. Numa palavra, a esquerda depende do capital e, sobretudo, do
capital estrangeiro, que desconfia dela e não porá cá dentro um único vintém,
se o obrigarem a essa absurda operação. Sem diabo e sem um salvador, a
esquerda voltará pouco a pouco ao século XIX, onde verdadeiramente pertence.
Não por acaso o Papa Francisco se chamou Francisco –
queria chamar a si os “pobrezinhos” – e não por acaso ressuscitou o diabo, por
quem a Igreja se desinteressara, e que em 2013 ele recomeçou a perseguir a
golpes de exorcismos. A esquerda portuguesa não tem na sua velha tradição esta
arma terrível. Mas tem, em contrapartida, a arma (um pouco heterodoxa, admito)
da revolução mundial: primeiro na Europa; a seguir na América, e lá para o fim,
na Ásia. A duração do projecto permite indefinidamente a esperança e, enquanto
espera, à esquerda cá do sítio com certeza que não faltará uma longa série de
querelas para se
ocupar. E se divertir.»
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