sexta-feira, 2 de junho de 2017

Tudo isso é verdade, mas…



Quando fazemos feef back sobre os que, neste espaço onde nos fincámos, passaram no tempo, dos quais nos orgulhamos a valer, e os que passam ainda hoje, em realizações do nosso entusiasmo e admiração, por muito que valorizemos e admiremos os génios de outros povos, não podemos calar o nosso gosto pelos que, tantas vezes em condições amargas, souberam engrandecer a nossa pátria, com a sua presença genial - na voz, na escrita, na arte, no esforço heróico. Acabo de escutar Amália e o seu “Cochicho” e mais outras músicas populares de uma presença inteligente e elegante, numa voz única e imorredoira. Mas direi de António Variações coisas entusiásticas, por ser tão genialmente português. Bem como outras vozes que vão ficando, de cantores de uma Coimbra de saudade, ou mesmo outras canções tão popularmente nossas, lindas a valer e tão expressivamente cantadas. Os escritores! Ah! Os nossos escritores! Como não reconhecer a genialidade no lirismo mais ou menos conciso, mais ou menos erudito de todos os tempos, na arte dramática vicentina, na arte de Eça e outros mestres, no pensamento profundo e vário de Pessoa, na arte, de uma simplicidade complexa, de Torga, em tantos pintores que a nossa incúria desconheceu e agarra agora, mais abertos os olhos para um saber que a protecção exterior fez promover.
Sim, José Pacheco Pereira tem toda a razão no que afirma, e, acima de tudo - e que nunca as mãos lhe doam por o lembrar - no que refere do tal Acordo Ortográfico fruto de masturbações mentais perfeitamente vis e mentecaptas, e peço desculpa do palavrão que só a muita repulsa ditou, e repito o passo de Pacheco Pereira, cuja indignação é refreada pela disciplina mental do ser culto que é, a que nenhum governante faz jus, pois se está nas tintas para o assunto - mais grave ainda do que a dívida impagável, pois se trata do abastardamento gráfico e fonético grosseiros da língua portuguesa, com consequências fatais sobre uma população cada vez mais despegada da pureza das normas, pontapeando com garra uma escrita sem regras decentes, porque optámos definitivamente pelo jogo do pontapé lucrativo, ou mesmo de cabeça em trabalho de parto físico, de rentabilidade bem fintada: «com acordos como o Acordo Ortográfico, que fez proliferar as normas da ortografia do português, em vez de as unificar, ficando nós com a mais pobre».
Voltemos à Ode Triunfal especificadora, de Álvaro de Campos:
«…Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais….»
Ou à consciência da trágica condição humana, relativizadora dos traumas, segundo Ricardo Reis:
«… Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.»
Crescemos 20 centímetros com a vitória na Eurovisão, mas encolhemos metro e meio nos últimos anos
Os 20 centímetros que o Salvador Sobral trouxe são em grande parte mérito dele, e o metro e meio que perdemos é demérito nosso.
Público,20 de Maio de 2017
José Pacheco Pereira
Isto de ser desmancha-prazeres não é propriamente muito agradável, mas lá terá de ser. A Pátria está mais uma vez a atravessar um espasmo nacionalista por causa da vitória dos irmãos Sobral na Eurovisão. Isto é por surtos, agora vai haver 15 dias de celebrações, cheias de grandes frases, cheias de peito feito, por parte de quase toda a gente que nem sabia que Salvador Sobral existia. Como agora se diz, “as redes sociais fervem”, e, quando elas “fervem”, a comunicação social, que devia ser menos excitável, perde o equilíbrio. Subitamente tudo parece possível, o interesse pelo português sobe em flecha, o lirismo passa a receita universal, Portugal é o maior, e duas pessoas, os irmãos Sobral, passam do anonimato para heróis nacionais. É bom, é cómodo para toda a gente, mas, com a excepção dos irmãos e de quem os ajudou e apoiou, este sucesso tem a característica habitual do modo como nos “auto-estimamos” com o trabalho e a dedicação dos outros, ou seja, sem trabalho próprio, sem esforço — cai-nos no céu. É por isso que é politicamente útil e utilitário, porque civicamente barato e psicologicamente agradável.
Ninguém o disse melhor que o senhor Presidente da República, que afirmou que “a vitória na Eurovisão deu 'mais 20 centímetros' aos portugueses” (cito o PÚBLICO). Sim, excelente, andamos todos com mais 20 centímetros, mas onde é que está o metro e meio que perdemos como nação há 20 anos para cá, com a perda de poderes do Parlamento português, com a assinatura de tratados como o Orçamental, com a subjugação a um modelo de crescimento medíocre em nome das “regras europeias”, com acordos como o Acordo Ortográfico, que fez proliferar as normas da ortografia do português, em vez de as unificar, ficando nós com a mais pobre, com os cortes no ensino da língua e da projecção da cultura, com a ênfase na diplomacia económica e o definhar das instituições como o Instituto Camões?
O mais grave de tudo é que os 20 centímetros que o Salvador Sobral trouxe são em grande parte mérito dele, e o metro e meio que perdemos é demérito nosso. Foi o resultado de uma política de dolo que a União Europeia usou, com destaque para o Tratado de Lisboa, que tirou às escondidas e sem debate público poderes que ninguém conscientemente deu à União, em detrimento da soberania nacional, foi o resultado dos desastres de Sócrates que nos levaram ao resgate e da política para forçar eleições em 2011 do PSD, foi o resultado da nossa apatia cívica face ao que é verdadeiramente importante, em contraste com as excitações futebolísticas. Foi o resultado de um sistema político no qual a dimensão cultural, histórica e expressiva da língua e da sua ortografia foi deitada ao lixo, por uma espécie de engenharia diplomática que se revelou um desastre, ficando todos pior do que o que estavam.
Nós gostamos da vida fácil, anómica, civicamente alheia e, salvo raras excepções, não somos voluntários para quase nada, não temos causas a não ser as mediáticas nestes surtos, somos mais clubistas do que patrióticos, deixamos estragar o que de bom ainda temos, mostramos uma indiferença egoísta face ao trabalho dos outros, a quem atribuímos sempre más intenções, exibimos a nossa ignorância com cada vez com mais arrogância, possuímos a atitude da aldeia, punindo a iniciativa, porque há sempre alguma coisa que está mal, e depois vampirizamos, para alimentar a nossa “auto-estima”, o trabalho e o mérito alheio. Há razões sociais para ser assim, a mais importante é que somos muito mais pobres do que aquilo que pensamos que somos, e temos um caminho ainda longo até termos essa força cívica que faz as nações fortes. Se fosse assim, não “engolíamos” o que engolimos, por inércia, por preguiça, ou porque protestamos pouco e mal.

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