Sempre
o sagrado nos protegeu os passos, até mesmo nos nossos primórdios, com a
batalha de Ourique, cuja vitória de Afonso Henriques sobre cinco reis mouros, se
deveu a um prévio encontro de Afonso com Jesus Cristo, segundo um passo que
extraio da Internet, e que fortaleceu o nosso direito à independência
relativamente ao Reino de Leão:
«A
primeira referência conhecida ao milagre ligado a esta batalha é do século
XIV, depois da batalha. Ourique serve, a partir daí, de argumento político
para justificar a independência do Reino de Portugal:
a intervenção pessoal de Deus era a prova da existência de um Portugal
independente por vontade divina e, portanto, eterna.»
Por
aqui se vê como as forças divinas sempre nos protegeram e a própria rainha Isabel,
esposa de el-rei D. Dinis, assumiu o papel de santa, no tal milagre das rosas,
tão bonito e esclarecedor das nossas potencialidades miraculosas, embora os
cépticos alvitrem que, para um povo carenciado, o milagre mais relevante seria
sempre, no nosso caso, o da transformação das rosas em pão.
A
Itália criou as suas raízes também a partir de um mito, mas de diverso carisma
anímico - de interacção amistosa entre a loba e os irmãos gémeos por ela
amamentados, e outro foi o alcance da sua universalidade. Em nós predominam as
aparições, de que dependemos como grandes devotos que somos, cada um utiliza as
armas que tem, as nossas são as da fragilidade na busca de um apoio confortável.
E
assim retomamos o artigo de Manuel Loff sobre as mensagens de Fátima:
Opinião
Fátima, contextos e história(s) (II)
"A mais profética das aparições" foi,
afinal, contada ao sabor do tempo e do que se pedia a uma das videntes que
tivesse visto.
Manuel Loff
Público, 27 de Maio de 2017
Sobre
Fátima, já o percebemos, tem-se assistido nos últimos anos a um duplo discurso
que parece resultar de uma evolução da postura da Igreja Católica sobre a
questão mas que, de facto, procurar satisfazer duas estratégias diferentes.
Por um lado, a Igreja nunca poderia abandonar, sob pena de trair cem anos
de encenação simbólica, o discurso tradicional de Fátima, "a mais
profética das aparições modernas" (cardeal Bertone), com o qual alimentou
o mais significativo dos filões de mobilização católica. Por outro, um
mínimo de aggiornamento pós-conciliar, mais
Paulo VI e Francisco que João Paulo II, obriga o Vaticano e uma parte da
hierarquia portuguesa a reler Fátima como um conjunto de "visões
místicas" que compete tanto à Psicologia quanto à Teologia interpretar (D.
Carlos Azevedo, PÚBLICO, 21.04.2017).
Tendo
aceitado Fátima como um marco maior do catolicismo, a hierarquia da Igreja não
podia confiar simplesmente o enunciado da mensagem da Virgem a três crianças —
uma única das quais sobrevive à epidemia da pneumónica de 1918. Já
vimos como da reciclagem da narrativa de 1917 surgiu a politização
anticomunista de Fátima em 1941, com a referência à Rússia como fonte de
todos os males. Nunca é demais sublinhar que tal se faz no arranque da
guerra nazi contra a União Soviética, descrita por Hitler como uma “cruzada
anti-bolchevista”, e a propósito de umas "aparições" que ocorrem
meses antes da própria revolução russa. Neste processo, a Igreja
desinteressou-se durante muito tempo do "3.º segredo", formulado por
Lúcia (sempre a pedido do bispo de Leiria) em janeiro de 1944.
Mas,
afinal, o que disse Lúcia que lhe terá contado a Virgem? É a
história de "um bispo vestido de branco", que lhe insinua ser "o
Santo Padre”, que sobe "uma escabrosa montanha" atravessando
"uma grande cidade meia em ruínas" enquanto "ia orando pelas
almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho", sendo "morto por um
grupo de soldados". Só em 2000 é que o Vaticano decide assumir abertamente
a leitura de Karol Woytyla do texto de 1944, que, contudo, já vinha sendo
alimentada havia anos: era, afinal, dele, apunhalado na Praça de São Pedro em
1981, que a Virgem teria falado 64 anos antes a três pastores na Cova da Iria.
Como
terá chegado Lúcia a esta imagem? Há anos, Ratzinger, enquanto
Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, achou que se trataria de imagens
que "Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de
antigas intuições de fé" — o que já é um avanço
relativamente à tese tradicional da "revelação profética" e
"milagrosa". Mas tentemos perceber que imagens (porque sobretudo
disso se trata) terão impressionado Lúcia no momento em que lhe pedem que
enuncie o "segredo". O que podia “ver” do mundo uma freira de
clausura, fechada em conventos galegos havia 19 anos? Que teria ela visto
do Papa nos meses anteriores? Ora justamente cinco meses antes, a 19 de julho
de 1943, horas depois de um bombardeamento americano sobre a cidade de Roma
que provocara três mil mortos, Pio XII visitou, excecionalmente em tempo de
guerra, o bairro de San Lorenzo. Clamara contra o bombardeamento da
"Cidade Eterna" como nunca o fizera nos quatro anos anteriores quando
os nazis haviam arrasado Varsóvia, Roterdão, Londres, Belgrado, Leninegrado...
Toda a imprensa católica — a única que entraria num convento como aquele em que
estava Lúcia — se enchera destes protestos e, sobretudo, das imagens do Papa,
abençoando feridos e mortos, evidentemente rodeado de muita gente desesperada
que lhe pede ajuda, de muitos polícias e militares. Imagens destas seriam
gravadas em foto uma única vez durante a guerra. E assemelham-se muito à
"visão" que Lúcia garante ter sido a de 1917...
"A
mais profética das aparições" foi, afinal, contada ao sabor do tempo e do
que se pedia a uma das videntes que tivesse visto. É o que é — mais tudo quanto
a Igreja quis que fosse. Dois dos videntes foram já santificados; falta apenas
Lúcia. No fim de contas, esta é que parece ser a mensagem definitiva que a
Igreja quer transmitir aos crentes sobre como interpretar Fátima.
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