sexta-feira, 16 de junho de 2017

Falta ainda Santo António



Sempre o sagrado nos protegeu os passos, até mesmo nos nossos primórdios, com a batalha de Ourique, cuja vitória de Afonso Henriques sobre cinco reis mouros, se deveu a um prévio encontro de Afonso com Jesus Cristo, segundo um passo que extraio da Internet, e que fortaleceu o nosso direito à independência relativamente ao Reino de Leão:
«A primeira referência conhecida ao milagre ligado a esta batalha é do século XIV, depois da batalha. Ourique serve, a partir daí, de argumento político para justificar a independência do Reino de Portugal: a intervenção pessoal de Deus era a prova da existência de um Portugal independente por vontade divina e, portanto, eterna.»
Por aqui se vê como as forças divinas sempre nos protegeram e a própria rainha Isabel, esposa de el-rei D. Dinis, assumiu o papel de santa, no tal milagre das rosas, tão bonito e esclarecedor das nossas potencialidades miraculosas, embora os cépticos alvitrem que, para um povo carenciado, o milagre mais relevante seria sempre, no nosso caso, o da transformação das rosas em pão.
A Itália criou as suas raízes também a partir de um mito, mas de diverso carisma anímico - de interacção amistosa entre a loba e os irmãos gémeos por ela amamentados, e outro foi o alcance da sua universalidade. Em nós predominam as aparições, de que dependemos como grandes devotos que somos, cada um utiliza as armas que tem, as nossas são as da fragilidade na busca de um apoio confortável.
E assim retomamos o artigo de Manuel Loff sobre as mensagens de Fátima:
Opinião
Fátima, contextos e história(s) (II)
"A mais profética das aparições" foi, afinal, contada ao sabor do tempo e do que se pedia a uma das videntes que tivesse visto.
Manuel Loff
Público, 27 de Maio de 2017
Sobre Fátima, já o percebemos, tem-se assistido nos últimos anos a um duplo discurso que parece resultar de uma evolução da postura da Igreja Católica sobre a questão mas que, de facto, procurar satisfazer duas estratégias diferentes. Por um lado, a Igreja nunca poderia abandonar, sob pena de trair cem anos de encenação simbólica, o discurso tradicional de Fátima, "a mais profética das aparições modernas" (cardeal Bertone), com o qual alimentou o mais significativo dos filões de mobilização católica. Por outro, um mínimo de aggiornamento pós-conciliar, mais Paulo VI e Francisco que João Paulo II, obriga o Vaticano e uma parte da hierarquia portuguesa a reler Fátima como um conjunto de "visões místicas" que compete tanto à Psicologia quanto à Teologia interpretar (D. Carlos Azevedo, PÚBLICO, 21.04.2017).
Tendo aceitado Fátima como um marco maior do catolicismo, a hierarquia da Igreja não podia confiar simplesmente o enunciado da mensagem da Virgem a três crianças — uma única das quais sobrevive à epidemia da pneumónica de 1918. Já vimos como da reciclagem da narrativa de 1917 surgiu a politização anticomunista de Fátima em 1941, com a referência à Rússia como fonte de todos os males. Nunca é demais sublinhar que tal se faz no arranque da guerra nazi contra a União Soviética, descrita por Hitler como uma “cruzada anti-bolchevista”, e a propósito de umas "aparições" que ocorrem meses antes da própria revolução russa. Neste processo, a Igreja desinteressou-se durante muito tempo do "3.º segredo", formulado por Lúcia (sempre a pedido do bispo de Leiria) em janeiro de 1944.
Mas, afinal, o que disse Lúcia que lhe terá contado a Virgem? É a história de "um bispo vestido de branco", que lhe insinua ser "o Santo Padre”, que sobe "uma escabrosa montanha" atravessando "uma grande cidade meia em ruínas" enquanto "ia orando pelas almas dos cadáveres que encontrava pelo caminho", sendo "morto por um grupo de soldados". Só em 2000 é que o Vaticano decide assumir abertamente a leitura de Karol Woytyla do texto de 1944, que, contudo, já vinha sendo alimentada havia anos: era, afinal, dele, apunhalado na Praça de São Pedro em 1981, que a Virgem teria falado 64 anos antes a três pastores na Cova da Iria.
Como terá chegado Lúcia a esta imagem? Há anos, Ratzinger, enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, achou que se trataria de imagens que "Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé" o que já é um avanço relativamente à tese tradicional da "revelação profética" e "milagrosa". Mas tentemos perceber que imagens (porque sobretudo disso se trata) terão impressionado Lúcia no momento em que lhe pedem que enuncie o "segredo". O que podia “ver” do mundo uma freira de clausura, fechada em conventos galegos havia 19 anos? Que teria ela visto do Papa nos meses anteriores? Ora justamente cinco meses antes, a 19 de julho de 1943, horas depois de um bombardeamento americano sobre a cidade de Roma que provocara três mil mortos, Pio XII visitou, excecionalmente em tempo de guerra, o bairro de San Lorenzo. Clamara contra o bombardeamento da "Cidade Eterna" como nunca o fizera nos quatro anos anteriores quando os nazis haviam arrasado Varsóvia, Roterdão, Londres, Belgrado, Leninegrado... Toda a imprensa católica — a única que entraria num convento como aquele em que estava Lúcia — se enchera destes protestos e, sobretudo, das imagens do Papa, abençoando feridos e mortos, evidentemente rodeado de muita gente desesperada que lhe pede ajuda, de muitos polícias e militares. Imagens destas seriam gravadas em foto uma única vez durante a guerra. E assemelham-se muito à "visão" que Lúcia garante ter sido a de 1917...
"A mais profética das aparições" foi, afinal, contada ao sabor do tempo e do que se pedia a uma das videntes que tivesse visto. É o que é — mais tudo quanto a Igreja quis que fosse. Dois dos videntes foram já santificados; falta apenas Lúcia. No fim de contas, esta é que parece ser a mensagem definitiva que a Igreja quer transmitir aos crentes sobre como interpretar Fátima.

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