quarta-feira, 28 de junho de 2017

Artigos de ANTÓNIO BARRETO


Sem Emenda, é o seu antetítulo, o que implica o sentido de análise crítica que os informa. O primeiro, entre elogios e censuras, é uma denúncia de uma situação que parece caricata, se não for temível. O Parlamente de uma União europeia, que se pretende democrática, sujeito ao aval do Parlamento de uma nação dessa União. Já é pecha antiga, não se deve estranhar, até favorece as guerras do expansionismo e da vileza. E com Emmanuel Macron, já outros o disseram, as energias positivas da nova aliança mastigarão em conformidade, retirado o Reino Unido do percurso da pseudo omnipotência germânica. Aguardamos, provavelmente agachados, esperando o cibo, gratos e esquecidos, bicos escancarados em pipilares clamorosos.
O segundo texto é sobre a hipótese de uma deslocalização para Portugal da Agência de Medicamentos sediada em Londres, de que o Brexit implica a transferência para um país da União. Seria uma candidatura de Lisboa, subentendia-se, mas as nossas habituais disputas internas assentes nas invejas e interesses que brotam no solo pátrio como bichas de rabiar, logo travam as hipóteses construtivas, ainda antes do processo se iniciar, atemorizando naturalmente os que têm as decisões em mão. No mínimo, tais obstáculos tão ridiculamente criados, de galarós em disputa, revelam quão minúsculos somos, habituados que estamos aos programas futebolísticos exibicionistas televisivos, que, embora sem lirismo adequado, mas de jeito façanhudo, “enclausurado nas duas polegadas do coração, não compreendendo dentre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias de Elvira”, que é como quem diz o rumor dos pontapeados e das cabeçadas de jogadores e de clubes, são uma impertinente prova da monocórdia televisiva portuguesa, complementar da mesma pasmaceira que ditava os lirismos de outrora, motivo da crítica de Eça no seu Fradique.
Para quando a mudança? Nunca, pois não dá audiência. Digo, na televisão.

A liturgia democrática
António Barreto
DN, 18/6/2017  -   SEM EMENDA
Todos merecem parabéns! Os portugueses em geral, António Costa, Mário Centeno, o governo e os partidos que o apoiam e os sindicatos: pelo que fizeram e pelo sentido de equilíbrio. Mas também a troika, os exportadores e o governo anterior, que preparou parte do caminho feito. São dias de congratulação e de lugares-comuns.
Quase todos merecem também condenação. Muitos dos que acima são referidos, mais José Sócrates e seu governo, banqueiros e ex-banqueiros, assim como ministros, uns empresários das rendas e das PPP e os autarcas dos swaps. Todos merecem um julgamento impiedoso por terem contribuído para a ruína de Portugal.
É falsa a percepção de que só um governo, este ou anterior, fez o que tinha a fazer. É errada a noção de que a austeridade não era necessária. E é finalmente perigosa a ideia de que o essencial está feito e já temos uma folga. Muito falta fazer, como todos sabem, mesmo os que não querem dizer.
Nas televisões, ouvimos Schäuble sobre as pretensões do governo português: "Já remeti ao Parlamento alemão o pedido de Portugal para sair do défice excessivo da UE e para adiantar o pagamento ao FMI. Estou convencido de que o Parlamento aceitará e não haverá problemas. Portugal é um caso de sucesso!" O homem estava visivelmente satisfeito. Depois, também disse umas tolices sobre Centeno e Ronaldo.
Uma pequena nota passou desapercebida: "Já remeti ao Parlamento federal..." Pois é. O poderoso governo alemão, a potente Angela Merkel e o irascível Wolfgang Schäuble têm de fazer o caminho do calvário, ir a Berlim pedir aprovação ao Parlamento. Sabemos que será coisa fácil, neste caso. Sabemos que pode ser mera liturgia. Mas terá de ser feito. O que funciona de duas maneiras. Obriga à aprovação posterior, tal como exige negociações anteriores.
Mesmo para questões europeias, a Alemanha nunca renunciou totalmente às instituições nacionais. O Parlamento federal alemão é, por vezes, a última instituição a pronunciar-se em toda a Europa e a demonstrar que a palavra final é sempre alemã! Também o Tribunal Constitucional se ocupa de inúmeras casos de decisões constitucionais europeias e toda a gente espera pelos seus acórdãos. E não esqueçamos que frequentemente compete aos parlamentos estaduais alemães aprovar decisões europeias.
Destes factos há lições a retirar. E experiências sobre as quais meditar. É chocante verificar o facto de o Parlamento alemão ter mais poder do que o Europeu. Atrás da Comissão e do Conselho, a verdadeira estrutura parlamentar é o Bundestag! Mas o essencial desta história não é a hegemonia alemã, contra a qual podemos rosnar. O essencial deste episódio reside na ligação entre União e Estado, entre as instituições europeias e as nacionais. Os alemães não abdicaram desta relação.

Um Parlamento trivial
António Barreto
DN, 25/6/2017 -   SEM EMENDA
A Agência Europeia de Medicamentos poderá vir para Portugal! A saída da Grã-Bretanha da União tem consequências destas. Organismos estabelecidos no Reino Unido serão deslocados. Dezenas de empregos apetecíveis serão criados noutros países. Muitos funcionários sairão de Inglaterra. Centenas de funcionários britânicos deixarão Bruxelas, Estrasburgo, Luxemburgo e outras localidades onde existem representações. Em vários países, por efeitos do despedimento de britânicos, abrirão vagas e empregos. Percebe-se. É uma maneira de castigar os irreverentes e de favorecer os disciplinados. Também é verdade que mal se compreenderia que uma agência não estivesse sediada num país membro. Cargos até hoje ocupados por ingleses ficarão acessíveis à competição: muitos são os técnicos e os cientistas, indivíduos e empresas, que se preparam para colher os despojos. Uns casos serão decididos por mérito e concurso, outros pela família ou o partido.
Há, na União, dezenas de instituições que desempenham funções importantes e beneficiam de elevados orçamentos e de quantidades de pessoal qualificado. Todos os países querem ter organismos destes dentro das suas fronteiras. Os mais poderosos conseguem os melhores. Uma dúzia de países lançou-se atrás da Agência de Medicamentos. A sede fica num prestigiado centro de edifícios modernos, em Canary Wharf, Londres. Trabalham lá 800 funcionários de elevada competência técnica. O organismo tem a tutela, por assim dizer, de umas dezenas de instituições nacionais que tratam dos medicamentos e das indústrias farmacêuticas.
Já há 18 candidatos, entre os quais Barcelona, Paris, Amesterdão e Milão. Assim foi que o governo e o Parlamento decidiram candidatar Lisboa à localização da agência. Tudo corria bem, até que surgiu a polémica. Então e o Porto? A resolução votada no Parlamento era explícita: Lisboa! Os deputados não viram. Ou não se deram conta. Ou não perceberam. Ou foram obrigados a mudar de posição. Algo aconteceu. Os chefes partidários, os deputados de várias cidades e os organismos locais dos partidos acordaram! Pensaram nas autárquicas. Na descentralização. Nas regiões. Uns mudaram de opinião e disseram, outros mudaram e não disseram, outros ainda não mudaram... Dias depois, com o coração apertado pelas autárquicas, o governo decidiu reabrir a hipótese de outras cidades, isto é, do Porto. E até o primeiro-ministro afirma que foi enganado! Sobra a questão: o que se passou para que uma unanimidade fosse posta em causa em tão poucos dias por tanta gente? Como foi possível?
Pense-se num dia de votações no Parlamento. Veja-se como aquilo funciona e percebe-se que tudo é possível. São listas de votações automáticas, umas seguidas às outras, para que ninguém falte e não haja surpresas. A música é conhecida e vê-se bem no Canal Parlamento. Resolução número tal, projecto de lei número tanto, proposta disto e daquilo, quem vota contra, quem aprova, quem se abstém, está aprovado pelos partidos tal e tal, rejeitado pelos partidos assim e assado. Quando o presidente pergunta quem vota a favor e contra, de cada grupo levanta-se um senhor ou senhora, é como se todos se levantassem, não há indivíduos nem pessoas, não há deputados nem representantes, há unidades colectivas, regimentos e claques. Voto sindicado e obediente. Vota um por todos.




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