quinta-feira, 29 de junho de 2017

Lições de História actual


São antigos os textos seguintes, que informam e comentam, sobre casos já idos mas ninguém nos diz que não se repitam. O de Paulo Rangel é mesmo assustador, na referência aos tantos interesses em jogo, lá para os lados de Sarajevo, que nos ficou gravado na memória da nossa incultura como um slogan justificativo da 1ª Guerra Mundial – “O Atentado de Sarajevo”- contra o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro em vias de se desmoronar. Revivi, literariamente, é certo, as andanças dos Thibault em torno dessa Primeira Grande Guerra da obra de Martin Du Gard que tanto impacto teve na minha juventude, e só desejo que, contrariamente ao previsto e bem esmiuçado por Paulo Rangel acerca dessas novas manobras de interesses na Europa Central ameaçadores da paz, esta consiga segurar-se ainda, com os esforços de Macron e Merckel, se é que as suas políticas de abertura democrática não contribuirão antes para a tal guerra de que os atentados terroristas – embora não mais a arquiduques - vão semeando os indícios. Esperemos que isso não aconteça.
1º TEXTO: Terror em São Petersburgo
Qualquer graduação no impacte, na forma de repúdio até a nível emocional, é um modo enviesado de dar a entender que há reações diferentes face ao terror.
Público, 8 de Abril de 2017
Domingos Lopes
Já se sabia o que foi confirmado com o atentado terrorista contra os passageiros do metropolitano de S. Petersburgo. Há mortos e mortos. Os nossos. E os outros. Os nossos mortos são franceses, ingleses, belgas, estadunidenses ou alemães. Os outros são todos os outros, embora nesses outros todos também há uns mais que outros.
Os russos mortos em S. Petersburgo não mereceram os tempos de antena que os media ocidentais deram aos mortos do passeio de Westminster ao pé do parlamento do Reino Unido. E muito menos a emoção das emissões. A obrigatória referência à relação da Rússia com os bombardeamentos na Síria não teve equivalência nos media no que concerne aos bombardeamentos na Líbia ou no Iraque por parte da Grã-Bretanha.
Os seis mortos em Londres foram mortos por um britânico que estaria ligado ao Daesh, segundo a revindicação do Daesh. Os 11 mortos do metropolitano de S. Petersburgo foram mortos, segundo as autoridades russas, por um quirguize com ligação ao extremismo islâmico.
Na tarde do dia 3 de Abril, as televisões “pararam” para passar a comentar os acontecimentos de Londres. O atentado em S. Petersburgo não teve o mesmo tratamento, embora as vítimas fossem mais, mas não eram bem as nossas.
Houve até quem referisse que a Rússia de Putin tem problemas com os muçulmanos da Chechénia que faz parte daquele país; o que não acontece à Líbia, ou o Iraque, que os ingleses foram atacar militarmente.
Os chechenos podem não ser russos, podem querer ser independentes como os bascos ou os escoceses ou os catalães, mas por ora são parte da Rússia. Os catalães têm de ser espanhóis, como os bascos. Os chechenos, se ficassem independentes, enfraqueciam a Rússia… como os kosovares enfraqueceram a Sérvia.
Os sírios, os iraquianos, os iemenitas, os líbios, esses não são seguramente ingleses nem britânicos. Ao contrário do terrorista que atacou em Londres, que era cidadão do Reino Unido, o que atacou na Rússia não era russo.
Há uma diferença, embora todo o terrorismo só possa ser considerado do mesmo modo ignóbil.
O terrorismo no Ocidente é brutal e hediondo; o mesmo ocorre em S. Petersburgo ou em Moscovo. Onde quer que aconteça. Nenhum tem qualquer espécie de justificação e as condenações devem assumir as mesmas dimensões políticas, éticas, religiosas, emocionais e psicológicas, naturalmente em termos gerais. 
Todo o terrorismo é condenável, incluindo, por maioria de razão, o terrorismo de Estado, o qual é muito mais violento e tem outra proteção. As mortes humanas causadas pelos terroristas são quase sempre todas elas de cidadãos inocentes desligados de qualquer responsabilidade pelas políticas prosseguidas por certos governos.
Num contexto de vivência democrática, no interior de uma dada sociedade há uma luta que se pode e deve travar contra o que se considera errado; luta essa que os cidadãos podem utilizar e com ela dar expressão à concórdia ou ao repúdio pela ação dos respetivos governos. O terrorismo tem como objetivo tentar em vão paralisar o modo de viver de certas sociedades e o de tentar tomar ou manter poderes em certos países ou regiões que controlam ou pretendam vir a controlar.
O terror é uma arma para tentar impor uma política que impeça os cidadãos de desfrutarem a segurança acompanhada das liberdades e direitos cívicos arduamente conquistados. Mas é também uma política contra os próprios muçulmanos no sentido de os impedir de usufruírem direitos e liberdades universais, na medida em que os coloca sob o terror dos jihadistas.
Segundo o autoproclamado califa e os dirigentes jihadistas do Daesh, esta é a vontade do Deus que proclamam adorar, bem sabendo que a sua interpretação é tão hostil à vontade das gentes que só por via das crucificações, amputações e degolações se impõem à generalidade dos crentes muçulmanos.
2º TEXTO: Nos umbrais da guerra (em sentido literal)
Se Macron não for capaz de apresentar uma visão convincente para a França e para o seu lugar na Europa, Le Pen pode vencer. Repito: pode vencer. E por isso esta é uma semana de angústia, de inquietação, de desassossego.
Público, 2 de Maio de 2017
Paulo Rangel
1. Esta semana que antecede a segunda volta das eleições presidenciais francesas é uma semana particularmente difícil. Quase todos dão como certa a vitória de Emmanuel Macron, com mais ou com menos diferença para Marine Le Pen. Mas em caso algum se deve ter isso por garantido. Le Pen é uma candidata muito experiente e que, apesar das suas ideias populistas e extremistas, conseguiu uma aura de credibilidade. Nada tem a ver com o estilo Trump, Wilders, Grillo ou do seu pai – que, mesmo assim, não deixaram de, num ou noutro momento, acumular vitórias. É muito mais sofisticada, muito mais articulada, muito mais convicta, muito mais perigosa portanto. Quem julga que a contenda está ganha, engana-se. Se Macron não for capaz de apresentar uma visão convincente para a França e para o seu lugar na Europa, Le Pen pode vencer. Repito: pode vencer. E por isso esta é uma semana de angústia, de inquietação, de desassossego.
2. E, no entanto, na sombra, muito na sombra, há uma porção da Europa que caminha aceleradamente para a guerra. Para a guerra em sentido literal. São os Balcãs e, designadamente, as antigas repúblicas jugoslavas que não fazem parte da União Europeia. Para quem, por dever de ofício (por ter o pelouro da “filiação” – “membership” – na presidência do PPE) tem de acompanhar de perto a vida política interna desses países e tem de os visitar de tempos a tempos, a situação é alarmante. O caso mais grave é o da Macedónia – da antiga república jugoslava da Macedónia –, onde a etnia eslava cristã e a etnia albanesa muçulmana se digladiam violentamente. O país, totalmente contaminado pela corrupção, está à beira do caos e da guerra civil. Sem qualquer exagero ou hipérbole, a guerra está iminente.
3. Neste momento, o factor de maior perturbação é a ambição do vizinho albanês. Os líderes albaneses sonham com a criação da Grande Albânia, que incluiria parte da Macedónia e o Kosovo. Todos os dias a Albânia intervém nas lides políticas macedónias, incendeia e exacerba as posições contrastantes. Os albaneses – e os macedónios albaneses – estão a ser directamente patrocinados por Erdogan e pela Turquia, que sonha, por sua vez, com o estender do velho e longo braço otomano. A inspiração e conspiração turca é completada pelo suporte financeiro da Arábia Saudita e do Qatar, que não cessam de inundar os seus aliados com recursos monetários. Os protagonistas do Golfo actuam basicamente no domínio religioso, enviando os religiosos wahabitas para todas as mesquitas e pagando quantias mensais relevantes (na casa dos 100 euros) às famílias muçulmanas que obriguem as suas filhas e os seus filhos a adoptar os preceitos mais fundamentalistas (designadamente, em sede de indumentária e de prática religiosa). Os macedónios eslavos, de religião ortodoxa, recebem, pelo seu lado, o apoio da Sérvia (também impregnada do sonho de, mais dia menos dia, restaurar a Grande Sérvia). E com a ajuda sérvia vem naturalmente o alto patrocínio da Rússia e de Putin. Putin e Erdogan jogam no tabuleiro balcânico com todas as pedras e já sem nenhuma cerimónia ou disfarce. Aqueles que crêem que há uma santa aliança entre o czar e o sultão, também podem desenganar-se. Não é necessário lembrar que, ainda muito recentemente, foi a Turquia que documentou e certificou o ataque químico do Governo sírio, algo que não poderia desagradar mais a Moscovo. Mas basta visitar os Balcãs para compreender como a Rússia e a Turquia, os seus aparelhos de influência e as suas máquinas de propaganda, se enfrentam no terreno.
Importa perceber que se a Albânia interferir no conflito civil macedónio, a Sérvia reagirá imediatamente. A Sérvia, de resto, já só aguarda esse pretexto para entrar no Norte do Kosovo e descer até à Macedónia, recuperando assim a parcela de terra onde se formou a sua “alma nacional”. E, nesse caso, Albânia e Sérvia serão os procuradores encartados da tensão entre Turquia e Rússia.
4. Quase ao pé do desastre está ainda a Bósnia-Herzegovina com a sua presidência tripartida – muçulmana, sérvia e croata –, onde têm assento três políticos do pré-guerra. Também aqui os sauditas investem fortemente, transformando os arredores de Sarajevo num novo destino turístico para a sua classe média e numa ilha de fundamentalismo religioso empedernido. Os líderes bósnios muçulmanos visitam Ancara e Erdogan todos os meses. Os sérvios, praticamente autodeterminados na República Srpska, já só dialogam com Belgrado e Moscovo. Os croatas recebem passaporte da Croácia para poderem emigrar para a União Europeia como cidadãos europeus. Na federação bósnio-croata, os alunos muçulmanos têm aulas de manhã e os alunos católicos à tarde, de forma a não se encontrarem. A convivência entre jovens das três comunidades foi reduzida a zero, justamente nos antípodas do que se passava nos tempos da federação jugoslava. No início de 2016, os sérvios bósnios promoveram um referendo para criar o seu feriado nacional, o que, para lá de ser declarado inconstitucional, foi visto como um ensaio para a secessão. Como resposta, o presidente bósnio muçulmano recorreu, no último dia possível (28 de Fevereiro passado), da decisão do Tribunal da Haia que absolvia a Sérvia de apoio directo ao massacre de Srebrenica. Fê-lo à revelia dos outros dois membros do colégio presidencial e entretanto não teve sucesso, mas incendiou por completo as já periclitantes relações políticas. Com a emulação turca e russa, com uma enorme passividade europeia, nunca as coisas estiveram tão mal. A Bósnia caminha para o desastre e não se vê quem possa travar o reacender da guerra.
A União Europeia, centrada nos seus problemas, adormeceu na região, descansando numa ajuda financeira que todos aproveitam mas que nenhum agradece. O esquecimento a que votou os Balcãs deixou todo o terreno à Rússia, à Turquia, ao Golfo e até à China. Esse olvido vai ser pago com o sangue das populações locais e com uma enorme crise de refugiados. É tarde, bastante tarde.
3º TEXTO:  Como aproveitar as boas notícias vindas de França
O que pode ser feito para aproveitar a vitória de Macron e fazer avançar ainda mais a luta contra o populismo?
Público, 26 de Maio de 2017
Kenneth Roth
A vitória de Emmanuel Macron contra Marine Le Pen permite a quem estava preocupado com o crescimento do populismo antiliberal dar um suspiro de alívio. A margem de vitória de Macron, de dois para um — mais do que as sondagens tinham previsto — representa um “non” firme dos eleitores franceses às políticas de ódio e intolerância antimuçulmanas e anti-imigrantes de Marine Le Pen.
No entanto, um triunfo único do liberalismo democrático não é propriamente um momento para complacência. O partido de Le Pen ainda pode ter um bom resultado nas eleições legislativas francesas, em Junho. Os populistas continuam no poder na Hungria e na Polónia e a União Europeia tem sido lenta a desafiar o desmantelamento por parte destes dos pesos e contrapesos da autoridade executiva e o seu desprezo pelos valores de tolerância e abertura do bloco europeu. Entretanto, a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, deixou claro que o objectivo do seu governo não é apenas o “Brexit”, mas também impor limites à aplicação dos padrões de direitos humanos, seja através da revogação da Lei de Direitos Humanos britânica ou do abandono da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Para lá das fronteiras da UE, populistas de vários géneros estão no poder na Turquia, na Rússia, no Egipto, na Índia, nas Filipinas e, claro, nos Estados Unidos. Cada um destes líderes, falando em nome do “povo”, revelou estar disposto a esmagar os direitos das minorias desfavorecidas e, muitas vezes, até dos críticos dominantes.
O que pode ser feito para aproveitar a vitória de Macron e fazer avançar ainda mais a luta contra esta forma perigosa de populismo? É útil começar por analisar as preocupações públicas de que os populistas tiram partido. Os populistas são muito bons a oferecer soluções fáceis a problemas complexos — tipicamente, fazendo dos mais vulneráveis bodes-expiatórios —, mas isso não nos deve distrair das queixas muito reais que estão por trás do seu crescimento.
A economia global e a mudança tecnológica deixaram muitos trabalhadores a sentir que tinham sido deixados para trás, com muitos deles a perder o emprego ou a ter reduções no salário. Claramente, os líderes que aceitaram a visão económica de que o comércio livre iria expandir a economia para benefício de todos não prestaram atenção suficiente à forma como estas recompensas económicas iriam ser distribuídas e como os trabalhadores atingidos iriam ser afectados. Uma defesa útil contra o populismo pode ser produzida garantindo uma rede de segurança social adequada, passos para melhorar a formação profissional e lidar com o desemprego e uma partilha mais equitativa dos benefícios do crescimento económico, inclusive através da rectificação de políticas fiscais que favorecem injustamente os ricos.
Uma defesa contra o populismo também exige que se abordem os problemas da imigração e da integração. Há factores fortes que atraem pessoas para a Europa e o Ocidente: a fuga da perseguição, da pobreza e do conflito, juntamente com a necessidade que o Ocidente tem de trabalhadores para suplementar as suas populações decrescentes. No entanto, os países europeus, de um modo geral, não fizeram um bom trabalho na integração das comunidades imigrantes, como exemplificam as zonas de desespero nos subúrbios de Paris. A defesa contra o populismo exige uma maior atenção aos obstáculos da integração, incluindo a discriminação na habitação, educação, emprego e policiamento. Também exige uma discussão mais franca sobre o equilíbrio apropriado entre a imigração e a integração, uma vez que a incapacidade de um governo para dar os passos necessários à integração é um caminho seguro para haver oposição pública a mais imigração.


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