terça-feira, 27 de junho de 2017

Faltou o “à séria” do nosso riso triste

Porque este “à séria” abunda cada vez com mais estridor, na oralidade dos nossos falantes da novelística televisiva nacional, como detectei há dias em “Amor Maior”, em actores e actrizes que respeito nas suas qualidades de representação artística, e que deixaram essa nódoa pestilencial no pano da sua reputação, embora ela se deva assacar, talvez, antes aos autores ou encenadores desatentos em questão de purismo linguístico, no que toca às camadas culturais e sociais mais distintas, pelo menos, pois os falantes “populares” são bom veículo de prevaricação linguística que favorece a deseducação do  povo, incapaz de distinguir o erro da graça. Refiro-me em especial aos actores Maria João Abreu e José Raposo, cujo excelente desempenho é responsável pelo aprofundar dos chutos grosseiros na gramática, necessariamente hilariantes e realistas, mas por isso mesmo favorecedores do enraizar dos erros grosseiros do povo, que, felizmente, já vê telenovela, mesmo sem conhecer a gramática da sua língua.
Já reparei, no entanto, que quanto maior é a chamada de atenção para o erro, mais ele fortalece e se ateia, tal como o fogo no matagal. O nosso PM é bem exemplo de alguns dos erros que aponta Bagão Félix, indiferente à sua correcção, caso da insistente «competividade» que, embora deformada, é sempre de manter como gloriosamente tem revelado.
Há mesmo quem adira à perversão do erro, e alguns comentários que mereceu o artigo de Bagão FélixCuidado com a língua”, o demonstram, sem respeito pelas regras, como o de Silva, que cito, pelo seu pretensiosismo adulador do inglês ou do português crioulo, e desprezador da sua língua, indiferente ao caos a que conduz esse desrespeito e desamor que manifesta, como tantos outros, numa ironia displicente de quem prefere curvar-se ao prestígio alheio, como meio pedante de auto-saliência intelectual perfeitamente irrisória:
«Silva, 14 de Junho: :O artigo está perfeito mas a mensagem arrepia. O espectro terrível da professora primária por instantes chegou a materializar-se mesmo à minha frente.
É claro que deve haver respeito pelas regras, mas uma língua deve ser sobretudo um meio vivo, descomplicado, estimulante, para fomentar comunicação e pensamentos. O crioulo transgressor dos brasileiros, por exemplo: é magnífico, e é isso que torna a Língua tão viva entre eles, criativa e fervilhante. Já entre os angolanos, ao contrário, enfronhados no formalismo da velha escola, e subjugados a estas coisinhas, a estes preciosismos inibitórios, a coisa é um terror; mesmo entre quadros qualificados. Hoje poucos se atrevem a redigir um relatório e muitos tremem só de pensar nisso. Até o pensamento lhes fica tolhido. Não admira, pois, que encontrem mais riqueza no gentílico. O caboverdino acabou por adoptar o crioulo como primeira língua e o português como ‘língua segunda’… e os outros lusófonos mais ou menos a mesma coisa perante tanta regrinha antipática.
Para Língua culta o mundo tem adoptado invariavelmente o inglês pelo seu potencial prático, conciso, simples e lógico. Exactamente o contrário do emaranhado de regras rocambolescas que fazem relegar este velho português para a prateleira das bizarrias. Não admira, pois, o brilhante futuro de uma e o ridículo declínio ensimesmado da outra. Para além de que em qualquer caso é sempre péssimo sinal (e crassa má educação) quando se objecta sobre o acento trocado ou o preciosismo filológico e nada se atende da substância comunicada.»
A este seguiu-se o comentário de Am que não resisto a transcrever:
«Am: Ninguém está a criticar calinadas na gramática resultantes do uso de gírias ou crioulo. O que está em causa é o espectáculo desolador da expressão oral e escrita que campeia em alguma comunicação social, nomeadamente na TV pública, que não tem paralelo com o que vemos por ex. no Brasil. A ideia de que o Português não se presta a que nos exprimamos de forma clara, simples e concisa também é cliché agora que o inglês está na moda. Como se costuma dizer – quem pensa claro fala claro …»
Mas agradecemos a Bagão Félix o cuidado na recolha de exemplos para o seu artigo atento, de quem ama realmente a sua língua, que tem tanto direito a pertencer ao mundo bem falante como outra de quem quer que se respeite, o que é, indiscutivelmente, o caso de Silva.
Cuidado com a língua!
Público, 12 de Junho de 2017
Li no Ciberdúvidas um texto que me entristeceu: o de que a RTP irá interromper (terminar?) o programa “Cuidado com a Língua”. Trata-se de um didáctico magazine, iniciado em 2006, e que vai na sua 9ª série. Um projecto interessante de promoção da nossa língua, “ao mesmo tempo informativo e lúdico, divertido e com algum humor q.b.”.
A confirmar-se este óbito linguístico, e embora desconhecendo o contexto da decisão, não posso deixar de criticar mais um duro golpe no quase deserto de iniciativas públicas para se bem falar e escrever. Neste caso, tratando-se de um programa do serviço público de televisão, bom seria sabermos as razões que levam a esta sentença. Questão de audiência? Desconsideração do tema? Outras prioridades de programação?
Parte da linguagem televisiva deixou-se capturar pela indigência semântica, gramatical e fonética. Há jovens profissionais, no seu esplendor de idade e de ignorância, a debitarem um paupérrimo português com a mais convencida conversa para “com vocês”. Por sua vez, oráculos surgem nos nossos ecrãs com erros linguísticos primários. Tudo rápido, tudo excitante, tudo avassalador, tudo misturado, mas tudo cada vez com menos atenção ao pobre português falado e escrito.
Se alguém estiver disposto a coligir erros na nossa língua, sugiro um lápis e um bloco para apontar o que se diz em certos programas de televisão. Há de tudo em avantajadas doses. Deixo aqui o que anotei em poucos dias. Há, evidentemente, os já batidos erros desde “interviu” a “entreteu”, “hadem de ser” a “houveram”, “há tempos atrás” a “à condição”, e a fonética nunca emendada dos “acórdos”, das “hepátites” e “bácterias”, dos “juniores” e “seniores” (que são graves com a tónica na penúltima sílaba), dos “lidéres” em vez dos líderes, da “rúbrica” em lugar da rubrica e do “tem a ver” pronunciado como se fosse “tem a haver”. Ouvi, também, a “hetacombe” de “quaisqueres” crises qualificadas como humanitárias, “despoletadas como constrangedoras confrangedor, entendidas como vocábulos  sinónimos.  “Dignatário” sem dignidade é o que há para aí mais, eminentes trocados por iminentes nem só com eminências pardas, “encapuçados” sem capuz também abundam no crime e “cônjugues” com dois é meio-caminho andado para o divórcio. Tudo com o bem-estar linguístico do mal “mau-estar”. Tudo “expontâneo” nos “mídia” (que fino, hem!). Entre o uso de de ou que é um fartote: “deve de ser”, mas “tem que ser” “enquanto que for”).  E é claro que se agradece aos convidados “terem aceite em vez de “aceitado”. “Precaridade” (sem o pobre e) “empreendorismo” e “competividade” (engolindo uma sílaba), perca (não me refiro ao peixe do Nilo) no lugar de perdapor ventura em vez de porventura, “concerteza” com certeza, “prejorativo”, “preverso” e “previlégio” são erros que “saiem” à “descrição”.
Cuidado com a língua” alertava para exemplos concretos de erros nos noticiários, que, todavia, persistem. É que, nesta matéria, o erro faz parte da moda. Ou porque se acha que o erro deixou, aparentemente, de o ser (correndo-se até o risco de quem diz correctamente ser olhado como usando mau português), ou porque a correcção exige predisposição para tal e isso dá muito trabalho…
Há, ainda, a “terceira via” do “pós-acordismo” ortográfico, em que, no meio de tanta confusão, se escrevem palavras que nem correspondem à anterior escrita, nem ao AO (por exemplo, fato para facto e contato sem tacto…). Imagino a trapalhada nas escolas!

Em suma, vai acabar o que creio ser o único programa televisivo sobre a nossa língua. Resistiu muito tempo, mas cai onde melhor falar e escrever  conta pouco. No entanto, não há dia que não se fale da lusofonia e se lhe teçam louvaminhas. Tudo teatro, tudo encenação, quando, ao mesmo tempo, se menospreza a essência e pureza da língua.

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