Porque
este “à séria” abunda cada vez com mais estridor, na oralidade dos nossos
falantes da novelística televisiva nacional, como detectei há dias em “Amor
Maior”, em actores e actrizes que respeito nas suas qualidades de representação
artística, e que deixaram essa nódoa pestilencial no pano da sua reputação,
embora ela se deva assacar, talvez, antes aos autores ou encenadores desatentos
em questão de purismo linguístico, no que toca às camadas culturais e sociais
mais distintas, pelo menos, pois os falantes “populares” são bom veículo de prevaricação
linguística que favorece a deseducação do povo, incapaz de distinguir o erro da graça. Refiro-me
em especial aos actores Maria João Abreu e José Raposo, cujo
excelente desempenho é responsável pelo aprofundar dos chutos grosseiros na
gramática, necessariamente hilariantes e realistas, mas por isso mesmo favorecedores
do enraizar dos erros grosseiros do povo, que, felizmente, já vê telenovela,
mesmo sem conhecer a gramática da sua língua.
Já
reparei, no entanto, que quanto maior é a chamada de atenção para o erro, mais
ele fortalece e se ateia, tal como o fogo no matagal. O nosso PM é bem exemplo de
alguns dos erros que aponta Bagão Félix, indiferente à sua correcção,
caso da insistente «competividade» que, embora deformada, é sempre de manter
como gloriosamente tem revelado.
Há
mesmo quem adira à perversão do erro, e alguns comentários que mereceu o artigo
de Bagão Félix “Cuidado
com a língua”, o demonstram, sem respeito pelas regras, como o de Silva,
que cito, pelo seu pretensiosismo adulador do inglês ou do português crioulo, e
desprezador da sua língua, indiferente ao caos a que conduz esse desrespeito e
desamor que manifesta, como tantos outros, numa ironia displicente de quem prefere
curvar-se ao prestígio alheio, como meio pedante de auto-saliência intelectual
perfeitamente irrisória:
«Silva,
14 de Junho: :O
artigo está perfeito mas a mensagem arrepia. O espectro terrível da professora
primária por instantes chegou a materializar-se mesmo à minha frente.
É claro que deve haver
respeito pelas regras, mas uma língua deve ser sobretudo um meio vivo,
descomplicado, estimulante, para fomentar comunicação e pensamentos. O crioulo
transgressor dos brasileiros, por exemplo: é magnífico, e é isso que torna a
Língua tão viva entre eles, criativa e fervilhante. Já entre os angolanos, ao
contrário, enfronhados no formalismo da velha escola, e subjugados a estas
coisinhas, a estes preciosismos inibitórios, a coisa é um terror; mesmo entre
quadros qualificados. Hoje poucos se atrevem a redigir um relatório e muitos
tremem só de pensar nisso. Até o pensamento lhes fica tolhido. Não admira, pois,
que encontrem mais riqueza no gentílico. O caboverdino acabou por adoptar o
crioulo como primeira língua e o português como ‘língua segunda’… e os outros
lusófonos mais ou menos a mesma coisa perante tanta regrinha antipática.
Para Língua culta o mundo
tem adoptado invariavelmente o inglês pelo seu potencial prático, conciso,
simples e lógico. Exactamente o contrário do emaranhado de regras rocambolescas
que fazem relegar este velho português para a prateleira das bizarrias. Não
admira, pois, o brilhante futuro de uma e o ridículo declínio ensimesmado da
outra. Para além de que em qualquer caso é sempre péssimo sinal (e crassa má
educação) quando se objecta sobre o acento trocado ou o preciosismo filológico
e nada se atende da substância comunicada.»
A este seguiu-se o comentário
de Am que não resisto a transcrever:
«Am: Ninguém está a criticar calinadas na gramática resultantes do
uso de gírias ou crioulo. O que está em causa é o espectáculo desolador da
expressão oral e escrita que campeia em alguma comunicação social, nomeadamente
na TV pública, que não tem paralelo com o que vemos por ex. no Brasil. A
ideia de que o Português não se presta a que nos exprimamos de forma clara,
simples e concisa também é cliché agora que o inglês está na moda. Como se
costuma dizer – quem pensa claro fala claro …»
Mas
agradecemos a Bagão Félix o cuidado na recolha de exemplos para o seu artigo
atento, de quem ama realmente a sua língua, que tem tanto direito a pertencer
ao mundo bem falante como outra de quem quer que se respeite, o que é,
indiscutivelmente, o caso de Silva.
Cuidado com a língua!
Público, 12 de Junho de 2017
Li
no Ciberdúvidas um
texto que me entristeceu: o de que a RTP irá interromper (terminar?) o programa
“Cuidado com a Língua”.
Trata-se de um didáctico magazine, iniciado em 2006, e que vai na sua 9ª série.
Um projecto interessante de promoção da nossa língua, “ao mesmo tempo informativo e lúdico, divertido e
com algum humor q.b.”.
A confirmar-se este óbito
linguístico, e embora desconhecendo o contexto da decisão, não posso deixar de
criticar mais um duro golpe no quase deserto de iniciativas públicas para se
bem falar e escrever. Neste caso, tratando-se de um programa do serviço público
de televisão, bom seria sabermos as razões que levam a esta sentença. Questão
de audiência? Desconsideração do tema? Outras prioridades de programação?
Parte da linguagem
televisiva deixou-se capturar pela indigência semântica, gramatical e fonética.
Há jovens profissionais, no seu esplendor de idade e de ignorância, a debitarem
um paupérrimo português com a mais convencida conversa para “com vocês”. Por sua vez, oráculos
surgem nos nossos ecrãs com erros linguísticos primários. Tudo rápido, tudo
excitante, tudo avassalador, tudo misturado, mas tudo cada vez com menos
atenção ao pobre português falado e escrito.
Se alguém estiver disposto
a coligir erros na nossa língua, sugiro um lápis e um bloco para apontar o que
se diz em certos programas de televisão. Há de tudo em avantajadas doses. Deixo
aqui o que anotei em poucos dias. Há, evidentemente, os já batidos erros desde
“interviu” a “entreteu”, “hadem de ser” a “houveram”, “há tempos atrás” a “à
condição”, e a fonética nunca emendada dos “acórdos”, das “hepátites” e “bácterias”, dos “juniores” e
“seniores” (que são graves com a tónica na penúltima sílaba), dos “lidéres” em vez dos líderes, da “rúbrica” em lugar da rubrica e do “tem a ver” pronunciado como se
fosse “tem a haver”. Ouvi, também, a “hetacombe” de “quaisqueres” crises
qualificadas como humanitárias,
“despoletadas” como constrangedoras e confrangedor, entendidas como
vocábulos sinónimos. “Dignatário” sem dignidade é o que há para aí
mais, eminentes trocados
por iminentes nem
só com eminências pardas, “encapuçados”
sem capuz também abundam no crime e “cônjugues” com dois u é meio-caminho andado para
o divórcio. Tudo com o bem-estar linguístico do mal “mau-estar”. Tudo “expontâneo” nos “mídia” (que fino, hem!). Entre o
uso de de ou que é um fartote: “deve de ser”,
mas “tem que ser” “enquanto que for”). E é claro que se
agradece aos convidados “terem aceite” em
vez de “aceitado”. “Precaridade” (sem o pobre e) “empreendorismo” e
“competividade” (engolindo uma sílaba), perca (não me refiro ao peixe do Nilo)
no lugar de perda, por ventura em vez de porventura, “concerteza” com
certeza, “prejorativo”,
“preverso” e “previlégio” são erros que “saiem” à “descrição”.
“Cuidado com a língua” alertava
para exemplos concretos de erros nos noticiários, que, todavia, persistem. É
que, nesta matéria, o erro faz parte da moda. Ou porque se acha que o erro
deixou, aparentemente, de o ser (correndo-se até o risco de quem diz
correctamente ser olhado como usando mau português), ou porque a correcção
exige predisposição para tal e isso dá muito trabalho…
Há, ainda, a “terceira via”
do “pós-acordismo”
ortográfico, em que, no meio de tanta confusão, se escrevem palavras que nem
correspondem à anterior escrita, nem ao AO (por exemplo, fato para facto e contato sem tacto…). Imagino
a trapalhada nas escolas!
Em suma, vai acabar o que
creio ser o único programa televisivo sobre a nossa língua. Resistiu muito
tempo, mas cai onde melhor falar e escrever conta pouco. No entanto, não
há dia que não se fale da lusofonia e se lhe teçam louvaminhas. Tudo teatro,
tudo encenação, quando, ao mesmo tempo, se menospreza a essência e pureza da
língua.
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