A verdade é que “o
dinheiro é tão bonito, é tão bonito o ladrão, tem tanta graça o maldito, tanto
chiste o maganão!“, segundo a introdução humorística de João de Deus ao
seu poema “O Dinheiro”, que desde tempos recuados se faz da finança
motivo de arte, e o financeiro é apresentado com traços repugnantes, como na
peça “Turcaret” de Lesage, mas à roda de quem se entretecem intrigas em que ninguém
escapa ao ferrete da depravação, dos nobres aos criados, todos no desejo de
explorarem o usurário odiado, para, afinal, utilizando os ardis da malícia
impiedosa, se beneficiarem, em truques sucessivos que acabarão por abortar, e o
reinado do criado “Frontin”, o especialista dos truques para seu proveito, irá
começar. O nosso Gil Vicente bem o glosou também, mas em tom condenatório e
moralista, como na seguinte rábula do “Auto da Lusitânia” (1532):
«Ninguém: Que andas aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: / delas não posso
achar / porém ando porfiando /
por quão bom é
porfiar.
Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo:
Eu hei nome Todo o
Mundo / e meu tempo todo inteiro / sempre é ganhar dinheiro / e sempre
nisto me fundo.»
Mas vem de longa
data, o carimbo que a ambição traça nos homens e nos costumes, aliada à
corrupção, e os nossos jornais são hoje bem marca contra tal prevaricação que
envergonha as gentes, mas que cada vez mais revela quanto ela é inextinguível.
A última página do Público
de 3/6 apresenta o habitual Bartoom de Luís Afonso sobre o
tema da corrupção na EDP e na REN, complementada com o artigo de João
Miguel Tavares na sua referência à delação premiada dos nossos
tempos, que as pessoas de bem recusam, comparando-a à dos tempos pidescos -
para J. M. T. bastante diferentes, todavia, - e hoje, segundo ele, necessária
para acelerar os processos da Justiça.
O texto
iconográfico acompanha humoristicamente através do desenho as poses e as falas
das personagens, segundo as vinhetas sóbrias mas expressivas de graça malandra
- o barman e o cliente corcovado, para a leitura profunda do seu jornal em
moderno computador - alternando as bocas abertas em O ou reduzidas a um ponto,
conforme as falas ou as escutas à vez de cada personagem, o olho sempre vivo, e
concluindo com a sentença do experiente barman, sobre a sua compreensão da
corrupção nas ditas empresas, como veículos de excelência de difusão da
corrupção, pelo facto de serem sectores de energia.
Quanto ao artigo de João Miguel Tavares, embora
repugne sempre a categoria de delator, e mais ainda se premiada, compreende-se
que ele e todos queiramos acelerar o processo da justiça, mas julgo que confia
demais, como jovem que é. Porque a verdade é que as malhas em que se move a
Justiça portuguesa são tão inextricáveis, que nem com delação - para mais corrompida
- lá chegaremos.
Delação premiada, bufos e grandes princípios
Será que ninguém vê
que a maior ofensa ao Estado de Direito é a confrangedora incapacidade de
aplicar uma justiça célere e eficaz nos casos de corrupção?
João Miguel Tavares
3 de Junho de 2017
A conversa sobre a delação premiada está de
regresso, à boleia das Conferências do Estoril, que juntaram numa só sessão o
juiz português Carlos Alexandre, o juiz brasileiro Sérgio Moro, o magistrado
italiano Antonio Di Pietro e o juiz espanhol Baltazar Garzón. Pergunta: quantos
destes magistrados são a favor da delação premiada em casos de corrupção?
Resposta: todos.
Mas não são só estes magistrados. Entretanto, o PSD também se declarou
“inequivocamente a favor” da delação premiada (Paula Teixeira da Cruz dixit),
tal como a associação dos juízes e a associação dos magistrados do Ministério
Público. Significa isto que a conversa vai evoluir para um debate
sofisticado, informado e sério, acerca do alcance da medida, das suas
limitações e dos seus instrumentos? Duvido muito. Há demasiada gente com
vontade de desconversar.
A desconversa é de dois tipos. O primeiro tipo
pode resumir-se assim: “Delação?!? Mas o que é isto?!? Voltámos aos tempos
da PIDE?!? 25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!” Como acontece com
quase todos os argumentos que contêm demasiados pontos de exclamação, esta
alegação é apenas estúpida. O bufo servia para denunciar à PIDE pessoas
inocentes cujo único crime era discordarem de um regime político. O
delator premiado (em Portugal prefere-se a expressão “colaborador premiado”,
exactamente para evitar a carga política da palavra “delação”) serve para
denunciar à justiça pessoas supostamente culpadas de crimes de corrupção,
através de esquemas obscuros e pactos de silêncio muito difíceis de quebrar.
Querer comparar um bufo com este tipo de delator é assim como confundir
espiar com expiar. A justiça portuguesa tem muito a ver com a do Estado
Novo, com certeza, mas não é na promoção de centenas de milhares de bufos – é
na protecção injusta dos mais poderosos e na forma como a oligarquia escuda as
práticas criminosas através de leis que dificultam o seu escrutínio. Aí, sim,
há parecenças muito significativas.
O segundo tipo de desconversa é ainda mais
pernicioso do que este, porque parece mais inteligente: a eterna
invocação dos grandes princípios do Estado de Direito, dos quais ninguém
discorda. Cito José Manuel Pureza, do Bloco, como poderia citar António
Lobo Xavier, Pacheco Pereira ou Jorge Coelho: “Ceder às respostas fáceis
e aos instintos justiceiros é um caminho muitíssimo perigoso e poderá originar
situações de difamação agravada.” Se repararem, qualquer pessoa que
defenda a delação premiada ou a lei do enriquecimento ilícito apanha
logo com uma saraivada de acusações de populismo e justicialismo. A nova
definição de populismo é esta: achar que as coisas não podem continuar como
estão e tentar encontrar alternativas sérias para modificar o statu quo.
Os grandes defensores do Estado de Direito não
gostam disso. Concordam que as coisas não estão bem, mas quando
se chega à parte chata de decidir o que mudar ficam-se pelos princípios gerais
de “mais meios” e “melhor legislação”. Enriquecimento ilícito? Não,
porque inverte o ónus da prova. Delação premiada? Não, porque belisca a
presunção de inocência. Será que ninguém vê que a maior ofensa ao Estado
de Direito é a confrangedora incapacidade de aplicar uma justiça célere e
eficaz nos casos de corrupção? Pelos vistos, não. Celebremos, pois, os
magníficos princípios da justiça portuguesa. Quanto ao pequeníssimo facto de a
própria justiça não estar a ser justa, é detalhe sem importância, que não nos
deve aborrecer demasiado.
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