Bem precisamos de aprender a pensar e
ainda bem que existem pessoas sabedoras e responsáveis que nos lembram isso a
cada passo, escandalizadas com a nossa ignorância, e que têm uma capacidade de
leitura de autêntica heroicidade. Vasco Pulido Valente é um
dos que a tem, e mais ainda a autoridade, para expor um ponto de vista crítico que
é fruto do seu muito saber, como as críticas que faz a certas versões de Frederico
Lourenço segundo a tradução do grego que este acima de tudo preza,
retirando o tom solene da mística que as traduções da Vulgata Latina desde
sempre impuseram, em função da fé. A mim, o que mais me chocou – pois achei um
trabalho arejado e de grande mérito o empreendimento de Frederico Lourenço, foi
a sua adaptação ao Acordo Ortográfico, que deslustrou em grande parte o propósito
do escritor moderno, mancha que, concordo, teria que adoptar, como candidato a
prémios.
Mas, como estamos “nas covas do mar”, pregando aos peixes como fez
Santo António, em obra-prima de composição linguística do nosso Padre
António Vieira, acrescento, de P. Gonçalo Portocarrero de Almada,
um artigo sobre os saberes do nosso Santo António, com que este
igualmente ilustra a nossa ignorância, de bailarico, garrafão e sardinha assada.
De ambos gostei.
Diário de Vasco Pulido Valente
Onde
se meteu a “correcção política”
OBSERVADOR,
18/6/2017
…hopes expire of a low dishonest decade… (W. H. Auden)
Espicaçado por um artigo
encomiástico de António Lobo Antunes na última Visão resolvi ler a
tradução da Bíblia de Frederico Lourenço. A Bíblia dos Capuchinhos não é uma
obra-prima e Portugal precisava de uma versão de confiança numa língua
impecável e legível. Bem sei que os portugueses não lêem a Bíblia nem sentem
a necessidade de lê-la. A ignorância dos católicos sobre a sua própria fé chega
a ser inacreditável. Os políticos citam frases do Novo Testamento, declarando
que são ditados populares. Escritores a quem se presumia um módico de educação
atribuem descrições, episódios e parábolas a outros escritores ou à sua própria
fantasia. E quase ninguém reconhece uma citação directa dos Evangelhos. Dirão
que isto é normal num país católico e que de qualquer maneira não tem grande
importância. Para quem acha que tem, a tradução de Frederico Lourenço
(directamente do grego) veio dar uma grande ajuda à pequena parte dos indígenas
que ainda conservam alguma coisa dentro da cabeça.
Dito isto a tradução não
me entusiasmou. Admito que Lourenço é um grande
gramático, como ele nas notas de pé de página abundantemente prova. Reconheço
também que a ideia de tornar os números dos versículos quase imperceptíveis faz
reviver a pontuação natural e torna a leitura mais fácil e fluente. Em
contrapartida, a estrita adesão aos tempos verbais gregos (segundo me pareceu,
porque não tenho autoridade para decidir sobre isso) não permite que o
português tome o tom solene e, às vezes, majestático que devia tomar. Lendo
Frederico Lourenço nunca se perde a noção de que se está a ler Frederico
Lourenço e não Marcos, Lucas ou Mateus. Seria injusto que nesta hora e data
alguém lhe pedisse para escrever a Bíblia do Rei James. Mas com certeza que há
sucedâneos com mais nobreza do que este.
Sobre isso, para mim, a
parte imperdoável desta Bíblia é a tradução de “Filho do Homem” por “Filho da
Humanidade”. O próprio Frederico Lourenço confessa
que não tem uma justificação estritamente gramatical. Só que a justificação que
ele dá e que acha “a mais relevante” não faz sentido algum. É ela a seguinte:
não se pode chamar, “em português” (?), a Jesus “Filho do Homem”, porque Jesus,
de acordo com o Novo Testamento, “não é filho de nenhum homem: é filho de Deus e
de um ser humano, Maria”. Fora que o argumento é absurdo porque a designação
“Filho do Homem” se destina precisamente a lembrar a presença simultânea
naquela pessoa do divino e do humano. “Filho da Humanidade”, como Frederico
Lourenço sabe muito bem, rompe com uma tradição milenar e automaticamente evoca
a linguagem anticlerical do século XIX. Pior do que isso, contribui para
obscurecer o entendimento da Bíblia, com a sua ressonância das profecias de
Daniel, que anunciavam a vinda do “Filho do Homem” e, através dele, uma
refundação do Templo e do judaísmo. E que, apesar de apócrifas, eram
verdadeiras para toda a gente no século I. Finalmente, Jesus disse com toda a
clareza que só vinha para as “ovelhas tresmalhadas” da casa de Israel; e
considerava os gentios, ou seja, quase a humanidade inteira, “porcos” (daí as
pérolas a porcos) e “cães”. Sim, “cães”.
Porquê então desceu
Frederico Lourenço a esta trapalhada? Pelo que havia de ser? Por causa da
“sensibilidade de género”, que de resto se manifesta pela tradução inteira:
onde aparece “homem”, se possível Lourenço escreve “ser humano”, enquanto as
mulheres são sempre mulheres. Esta conformidade estúpida ao “politicamente
correcto” data e deforma a tradução, além de a tornar inútil para qualquer
construção teológica.
Falta dizer que na
sombra pesa o movimento a favor do sacerdócio das mulheres. Tão pesado que até
Frederico Lourenço, no recato de uma nota de pé de página, tem de meter na
ordem o nosso conhecido Frei Bento Domingues, que pretendeu fazer passar por
apóstolos umas servas de Jesus.
Onde se foi meter a
“correcção política”?
P.S.: Frederico Lourenço
não discute a sério a datação dos Evangelhos e aceita a sequência tradicional:
Mateus, Marcos, Lucas e João. Por mim continuo a preferir a prioridade de Marcos,
porque o anti-judaísmo (não confundir com anti-semitismo) perceptível em Mateus
e agressivo em Lucas os liga a uma época relativamente tardia da expansão do
cristianismo helénico; e pelo menos Lucas escreveu depois da destruição de
Jerusalém no ano 70. João é um caso mais complicado.
0BSERVADOR, 17/6/2017
Santo António de Lisboa,
de Pádua e do mundo inteiro, foi um grande santo e um grande sábio, que de
‘santinho’ não tinha nada, pois foi um dos homens mais cultos do seu tempo.
Uma coisa são os santos
populares, outra muito diferente é o que os populares acham dos santos…
Expressões quase homónimas podem ter, na verdade, significados muito
diferentes: por exemplo, não convém confundir as obras-primas do mestre, com as
primas do mestre-de-obras!
Os santos populares –
como o nosso Santo António – são grandes vultos da história universal, cuja
memória a Igreja liturgicamente celebra; mas a sua versão popular por vezes não
vai muito além do bailarico, das sardinhas, das fogueiras, da sangria, das
quadras brejeiras e dos manjericos. Embora sejam louváveis os festejos
populares, os santos são para tomar a sério e bom seria que assim fossem também
as respectivas comemorações que, por vezes, são mais superficiais e profanas do
que sinceras e profundas manifestações de verdadeira piedade.
Quando, na véspera do dia
de Santo António, perguntei a uma jovem aluna de um colégio de que sou capelão
se recorria à sua intercessão, respondeu-me que, seguramente por sugestão dos
pais, lhe pedia que arranjasse um lugar de estacionamento para o carro! Como
os casamentos andam pelas ruas da amargura, o desgraçado do Santo António serve
agora, pelos vistos, de arrumador … Não é que não se deva recorrer aos
santos para necessidades tão prosaicas, mas é pena que se perca, até entre os
cristãos, a memória destes ilustres bem-aventurados, hoje substituídos por uma
qualquer celebridade, como o famoso jogador de futebol a quem já se fez, na sua
terra natal, uma estátua, um busto e até se deu o nome ao aeroporto local!
Uma pecha que continua a
prejudicar a popularidade dos santos é a suposição de que, no fundo, eram uns
sonhadores, que nunca chegaram a saber bem o que o mundo ou a vida são … Daí a
ideia de que um ‘santinho’ é, afinal, um ingénuo, quase um alienado, fazendo
jus à sentença marxista, que dizia ser a religião o ópio do povo.
A verdade, graças a Deus, é
bem diferente, como se pode ler na Vida de Santo António de Lisboa, de
Aloisío Tomás Gonçalves, agora reeditada pela editora Paulus, com
excelente prefácio de Henrique Raposo. O nosso tão popular e querido
Santo António de Lisboa, de Pádua e do mundo inteiro, foi um grande santo, mas
foi também um grande sábio que, na verdade, de ‘santinho’ não tinha nada. Frei
José de Sousa Monteiro, franciscano e sócio efectivo da Academia das Ciências,
afirmou, em finais do séc. XIX, que S. António dominava todas as ciências e
artes: “nada enjeita o seu engenho agudo. Expõe de Galeno, no Passionário, a
teoria sobre as quatro espécies de febre, e de Vegécio, as qualidades de um
general na guerra”.
Se o único português a
quem foi outorgado o título de Doutor da Igreja era douto nas ciências
profanas, mais sábio era ainda no saber teológico: o Papa “Gregório IX ouviu-o
interpretar os livros santos e chamou-lhe, maravilhado, Arca do Testamento”.
Foi também esta a opinião dos seus contemporâneos, pois citava de cor a Bíblia
e os Santos Padres, com uma erudição que, por vezes, pecava por excessiva.
Outro receio comum é o
de que a muita devoção possa levar ao fanatismo. A santidade exige um supremo
amor a Deus e ao próximo, mas a verdadeira caridade nada tem de excesso: o
fanatismo não é o grau excelso da virtude, mas o seu contrário. Por isso,
Aristóteles ensinava que o acto virtuoso é o que se situa num ‘justo meio’, e
Tomás de Aquino calibrava a virtude pelo critério da ‘recta razão’: onde não há
razão, não há mérito, nem muito menos santidade cristã.
Uma devoção que
desrespeite a liberdade das consciências dos ateus, agnósticos ou crentes de
outras religiões, é incompatível com o Evangelho e contradiz a doutrina e a
prática do próprio Jesus Cristo. Os santos são o exemplo perfeito do que deve
ser um verdadeiro cristão; não os que, tergiversando os ensinamentos do Mestre,
“manso e humilde de coração” (Mt 11, 29), negam, pela violência dos métodos
evangelizadores ou das práticas repressoras, a bondade da pacífica mensagem
cristã.
Lê-se na antiga Legenda
Benignitas, que António de Lisboa não se cansava de lutar contra a heresia,
“de tal maneira que, por toda a parte, é chamado vulgarmente incansável
martelo de hereges”. Mas erraria quem associasse a este título uma
conduta fundamentalista ou intolerante em relação aos que não pensavam de
acordo com a sua fé. Na luta contra a heresia albigense, a atitude de Santo
António sempre foi de tolerância e de respeito pela liberdade das consciências:
“Assim como não se lança o fogo à casa onde repousa um morto – escreveu o Santo
alfacinha – assim não deveis destruir essa casa em que Deus tende a desaparecer
sob os golpes [da heresia], especialmente quando podeis ter esperança de que
Ele a ressuscitará para a glória. Mas, mesmo que tivésseis a certeza da
obstinação, deveis sempre inclinar-vos para a tolerância, porque Deus é o
primeiro a dar-nos o exemplo. Tolerai, repito, a fim de que isso possa servir
de exemplo”.
Outra recorrente
acusação feita aos santos é o do seu suposto modo de ser antissocial: parecem
tão obcecados pelas suas crenças que não são capazes de ouvir os outros, nem de
dialogar. Talvez o sejam os fanáticos, mas não os santos que,
pelo contrário, são amáveis, sobretudo com os que, por não serem crentes, mais
carecem da sua caridade. Assim foi o próprio Cristo e, como ele, segundo conta
João Rigauld, António de Lisboa: “Certo dia, em uma cidade de Itália, foi o
santo convidado por alguns hereges a jantar. Aceitou o convite, na esperança de
os converter dos seus erros e de os confirmar na fé, a exemplo do Salvador que,
por semelhante motivo, comia com os publicanos e os pecadores”.
Em boa hora o presidente
da Câmara Municipal de Lisboa, no encerramento do Simpósio Internacional
Antoniano Exulta Lusitania Felix, anunciou que Santo António, o lisboeta mais
mundialmente famoso, vai ter um Centro de Estudos e de Investigação em Lisboa.
Se a sua vida e obra for melhor conhecida, decerto que a nossa juventude,
estimulada por um tal exemplo, será mais douta, mais tolerante, mais caridosa
e, sobretudo, muito mais feliz.
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