De repente, uma foto colorida, de António Barreto, trazendo-me à memória
velhas lembranças de tempos vividos noutros sóis e noutras perspectivas de
vida, em que o que se fomentava de traição e reviravolta era ainda desconhecido
das populações assentes na sua tranquilidade de ordem e trabalho, ignorando o
que se fabricava na sombra, ramos de árvore carcomida, erguendo airosos a sua
folhagem a proteger o tronco ainda, sem lhe prever o desbaste. Era-se mais
jovem, ria-se, brincava-se, sentia-se - como em todos os tempos se fez - na
ignorância do cataclismo, agindo ou reagindo às circunstâncias e às
experiências vividas, em liberdade e independência crítica, desde que esta não
excedesse os limites impostos, de respeito pelos valores que breve se
revelariam anacrónicos, exigindo debandada em várias frentes. E o velho tronco
remoçou, de facto, graças, é certo, ao endividamento externo, e ao envolvimento
das novas aves canoras, defendendo coisas sociais importantes e modernizações,
mas mergulhando-o em trajectórias de desvios sob a capa das ideologias
democráticas que a esses ascensores à governança cobriu, em primeiro lugar, talvez
apegados ao santo cuja foto António Barreto expõe. Também eu em tempos
escrevera sobre o dito, texto que transcrevo a seguir, por ser mais leve na
graça, que os novos tempos amorteceram.
As minhas fotografias
António Barreto
Observador (25/6/2017)
São Judas Tadeu: votos,
promessas e graças. Fotografia dos anos 1970, na Sé de Braga (ou será no
santuário do Sameiro?), com a guerra de África bem presente. É um santo antigo,
foi apóstolo de Cristo, com quem consta ser muito parecido, diz-se mesmo que
era seu primo. Não deve ser confundido com Judas Iscariotes, o "apóstolo
traidor", o do "beijo de Judas". Era irmão de Tiago. Mártir, foi
assassinado com outro apóstolo, Simão, por terras da Pérsia. É o "santo
das causas perdidas" ou das "causas impossíveis". Ao que parece,
escrevia muito bem. Tem carta publicada na Bíblia. Pode encomendar-se-lhe muita
coisa em Portugal, tantas são as causas difíceis. Ou mesmo desesperadas. Talvez
a causa das florestas, cujo patrono poderia ser ele. Na sua carta, alude às
"nuvens sem água arrastadas pelos ventos" e às "árvores de
Outono sem fruto, duas vezes mortas e arrancadas pela raiz"...
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«Reze a S. Judas Tadeu”
(In “Pedras de Sal”,
1974, e “Cravos Roxos”, 1981)
«Quando as coisas me não correm de feição – e também quando me correm,
de outra maneira seria egoísmo puro – apego-me aos santos e não me tenho dado
mal com o sistema. Nós, os pecadores, devemos escolher espíritos de eleição
para nos orientarmos convenientemente onde precisarmos de orientação.
Devem ter tido conhecimento do meu apego e da minha necessidade de
orientação – estas coisas sabem-se – pois recebi uma carta duma pessoa amiga
que me deseja bem, encarregando-me de rezar a S. Judas Tadeu para obter dele
aquilo que eu mais desejar.
Pus-me, pois, imediatamente a rezar e imediatamente também a fazer
reformas na casa, já por conta da fortuna que ele não deixará de fazer tombar sobre
a minha pessoa reconhecida e expectante.
Entretanto, tiro as 19 cópias necessárias e vou enviá-las às dezanove
pessoas a quem desejo boa sorte. Estive a fazer cálculos e reparei que são
vinte as pessoas a quem desejo boa sorte. Como, de modo algum, penso alterar a
cadeia, terei de suprimir uma cópia ou uma amizade, mas optarei com certeza por
rezar para que S. Judas se não esqueça também da minha amiga suprimida.
Foi um senhor de Benguela chamado Domingos, oficial do exército – noto,
por sinal, neste conjunto de favorecidos, uma pronunciada predilecção por
titulares do exército – que iniciou esta sequência, e antes dos dez dias
estabelecidos, alcançou uma grande fortuna – possivelmente o que ele mais
desejava e o que pediu a S. Judas, tal como eu.
Outro senhor português de nome Mário Gomes respondeu à sequência e
obteve o 1º prémio da lotaria, assim como a empregada duma senhora – não especifica
a nacionalidade – que, ao ver a patroa atirar para o cesto dos papéis a cópia
recebida, aproveitou-a, respondendo em nome próprio, e antes de vinte dias
caiu-lhe a lotaria em casa.
Também um general enriqueceu, sem explicar de que maneira mas sem
grande esforço, depois de ordenar à empregada que se encarregasse ela das
cópias e dos envios às suas amizades. Não esclarece a nótula recebida da amiga
que me deseja bem se a empregada do general assim enriquecido beneficiou de alguma
percentagem, mas não me cabe a mim pôr em dúvida a generosidade e critério de
justiça de um general.
Por outro lado, aqueles que quebram estas cadeias sofrem riscos graves,
como na Bíblia. Foi o caso do sr. Pery que sofreu um desastre, outro foi
durissimamente golpeado pela vida, comendo os filhos por tabela, sem culpa
nenhuma dos desmazelos do pai.
Ante estes casos tão explícitos de catástrofes resultantes de quebras
de sequência, e de fortunas resultantes de obediência e fé, eu de maneira
nenhuma iria permitir que os meus empregados domésticos – não possuo outros –
aproveitassem do meu cesto dos papéis um benefício por mim desdenhado. O mais
que posso fazer – e com todo o prazer - é incluí-los nas minhas 19 cópias,
embora receie um pouco que se dê aí a quebra, sobretudo no que respeita à
Marta, desconhecedora dos caracteres escritos, o que, aliás, só lhe tem trazido
vantagens para justificação de enganos comerciais.
Esta sequência de cartas em homenagem a S. Judas Tadeu deve dar a volta
ao mundo tal como outrora o antipatriota Fernão de Magalhães, e não, como ele,
ficar-se pelas Filipinas em desastrosa interrupção.
O meu espírito profundamente dedutivo conclui, pois, que a quantidade
de acidentes sucedidos por aí diariamente resulta apenas de quebras de
sequência de homenagens, tal como as fortunas também fabricadas diariamente
provêm da sua não interrupção.
Não, não tenho intenção nenhuma de interromper. As reformas no
mobiliário da casa são já por conta da recompensa.
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