segunda-feira, 26 de junho de 2017

Reencontro em devoção


De repente, uma foto colorida, de António Barreto, trazendo-me à memória velhas lembranças de tempos vividos noutros sóis e noutras perspectivas de vida, em que o que se fomentava de traição e reviravolta era ainda desconhecido das populações assentes na sua tranquilidade de ordem e trabalho, ignorando o que se fabricava na sombra, ramos de árvore carcomida, erguendo airosos a sua folhagem a proteger o tronco ainda, sem lhe prever o desbaste. Era-se mais jovem, ria-se, brincava-se, sentia-se - como em todos os tempos se fez - na ignorância do cataclismo, agindo ou reagindo às circunstâncias e às experiências vividas, em liberdade e independência crítica, desde que esta não excedesse os limites impostos, de respeito pelos valores que breve se revelariam anacrónicos, exigindo debandada em várias frentes. E o velho tronco remoçou, de facto, graças, é certo, ao endividamento externo, e ao envolvimento das novas aves canoras, defendendo coisas sociais importantes e modernizações, mas mergulhando-o em trajectórias de desvios sob a capa das ideologias democráticas que a esses ascensores à governança cobriu, em primeiro lugar, talvez apegados ao santo cuja foto António Barreto expõe. Também eu em tempos escrevera sobre o dito, texto que transcrevo a seguir, por ser mais leve na graça, que os novos tempos amorteceram.

As minhas fotografias
António Barreto
Observador (25/6/2017)
São Judas Tadeu: votos, promessas e graças. Fotografia dos anos 1970, na Sé de Braga (ou será no santuário do Sameiro?), com a guerra de África bem presente. É um santo antigo, foi apóstolo de Cristo, com quem consta ser muito parecido, diz-se mesmo que era seu primo. Não deve ser confundido com Judas Iscariotes, o "apóstolo traidor", o do "beijo de Judas". Era irmão de Tiago. Mártir, foi assassinado com outro apóstolo, Simão, por terras da Pérsia. É o "santo das causas perdidas" ou das "causas impossíveis". Ao que parece, escrevia muito bem. Tem carta publicada na Bíblia. Pode encomendar-se-lhe muita coisa em Portugal, tantas são as causas difíceis. Ou mesmo desesperadas. Talvez a causa das florestas, cujo patrono poderia ser ele. Na sua carta, alude às "nuvens sem água arrastadas pelos ventos" e às "árvores de Outono sem fruto, duas vezes mortas e arrancadas pela raiz"...




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«Reze a S. Judas Tadeu”
(In “Pedras de Sal”, 1974, e “Cravos Roxos”, 1981)
«Quando as coisas me não correm de feição – e também quando me correm, de outra maneira seria egoísmo puro – apego-me aos santos e não me tenho dado mal com o sistema. Nós, os pecadores, devemos escolher espíritos de eleição para nos orientarmos convenientemente onde precisarmos de orientação.
Devem ter tido conhecimento do meu apego e da minha necessidade de orientação – estas coisas sabem-se – pois recebi uma carta duma pessoa amiga que me deseja bem, encarregando-me de rezar a S. Judas Tadeu para obter dele aquilo que eu mais desejar.
Pus-me, pois, imediatamente a rezar e imediatamente também a fazer reformas na casa, já por conta da fortuna que ele não deixará de fazer tombar sobre a minha pessoa reconhecida e expectante.
Entretanto, tiro as 19 cópias necessárias e vou enviá-las às dezanove pessoas a quem desejo boa sorte. Estive a fazer cálculos e reparei que são vinte as pessoas a quem desejo boa sorte. Como, de modo algum, penso alterar a cadeia, terei de suprimir uma cópia ou uma amizade, mas optarei com certeza por rezar para que S. Judas se não esqueça também da minha amiga suprimida.
Foi um senhor de Benguela chamado Domingos, oficial do exército – noto, por sinal, neste conjunto de favorecidos, uma pronunciada predilecção por titulares do exército – que iniciou esta sequência, e antes dos dez dias estabelecidos, alcançou uma grande fortuna – possivelmente o que ele mais desejava e o que pediu a S. Judas, tal como eu.
Outro senhor português de nome Mário Gomes respondeu à sequência e obteve o 1º prémio da lotaria, assim como a empregada duma senhora – não especifica a nacionalidade – que, ao ver a patroa atirar para o cesto dos papéis a cópia recebida, aproveitou-a, respondendo em nome próprio, e antes de vinte dias caiu-lhe a lotaria em casa.
Também um general enriqueceu, sem explicar de que maneira mas sem grande esforço, depois de ordenar à empregada que se encarregasse ela das cópias e dos envios às suas amizades. Não esclarece a nótula recebida da amiga que me deseja bem se a empregada do general assim enriquecido beneficiou de alguma percentagem, mas não me cabe a mim pôr em dúvida a generosidade e critério de justiça de um general.
Por outro lado, aqueles que quebram estas cadeias sofrem riscos graves, como na Bíblia. Foi o caso do sr. Pery que sofreu um desastre, outro foi durissimamente golpeado pela vida, comendo os filhos por tabela, sem culpa nenhuma dos desmazelos do pai.
Ante estes casos tão explícitos de catástrofes resultantes de quebras de sequência, e de fortunas resultantes de obediência e fé, eu de maneira nenhuma iria permitir que os meus empregados domésticos – não possuo outros – aproveitassem do meu cesto dos papéis um benefício por mim desdenhado. O mais que posso fazer – e com todo o prazer - é incluí-los nas minhas 19 cópias, embora receie um pouco que se dê aí a quebra, sobretudo no que respeita à Marta, desconhecedora dos caracteres escritos, o que, aliás, só lhe tem trazido vantagens para justificação de enganos comerciais.
Esta sequência de cartas em homenagem a S. Judas Tadeu deve dar a volta ao mundo tal como outrora o antipatriota Fernão de Magalhães, e não, como ele, ficar-se pelas Filipinas em desastrosa interrupção.
O meu espírito profundamente dedutivo conclui, pois, que a quantidade de acidentes sucedidos por aí diariamente resulta apenas de quebras de sequência de homenagens, tal como as fortunas também fabricadas diariamente provêm da sua não interrupção.
Não, não tenho intenção nenhuma de interromper. As reformas no mobiliário da casa são já por conta da recompensa.





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