Os artigos que seguem são bem reflexo do sentimento de raiva impotente
contra uma calamidade em várias frentes, corporizada numa tragédia inesperada,
decerto, e logo tratada de forma obscena, nas reportagens espectaculares por
amantes do sensacionalismo, nos governantes sem pingo de vergonha, de pieguice
balofa ou de táctica desresponsabilizadora, permitindo atribuir a um fenómeno
de trovoada seca repentina a
responsabilidade exclusiva do incêndio descontrolado e imediato, para melhor
desculpabilizar a distracção dos recursos humanos e logísticos e os muitos interesses e inércia
geral que estão na base dos crimes. Triste que assim seja, mas a maioria dos
comentários que leio ao texto de Alberto Gonçalves mostram bem a falta de
seriedade e compostura dos comentadores tão deselegantes e ocos quanto aquilo
que condenam, de forma galhofeira e perversa, o que igualmente envergonha quem
se dê ao trabalho de os ler para analisar o panorama intelectual e moral do
povo a que pertencemos.
Alberto Gonçalves é objectivo, directo e feroz, sem mastigações de
atenuação, revelando o clima de trafulhice, impunidade e palração cínica em que
vivemos sob a batuta dos que governam, que de igual raiz provêm. Pedro Tamen
assesta o dedo crítico, com igual ferocidade, sob a capa da ironia, num
jornalismo primário a que não há estômago que resista.
Morrer entre brutos é triste
OBSERVADOR, 24/6/2017
Portugal não cede à baixa política, leia-se permite a impunidade geral.
Portugal, repete-se, é uma nação muito forte, leia-se um recreio de
oportunistas, desnorteados ao primeiro assomo da realidade.
Anteontem, o “Jornal de Notícias”
recordava o “‘inferno’ idêntico ao de Pedrógão”, que “reduziu a cinzas cidade
no Canadá”. Aconteceu em 2016, queimou 590 mil hectares e obrigou a evacuar Fort
McMurray, uma cidade de 80 mil habitantes. O “JN” diz, provavelmente com razão,
que “ninguém poderia prever” aquilo. O que o “JN” não diz é o número total de
mortos. Digo eu: zero.
Ao invés dos abundantes especialistas
em floresta que despontam por cá a cada Verão (ainda assim insuficientes para
impedir a floresta de arder com empenho), acredito existirem fogos impossíveis
de prever e quase impossíveis de controlar. Fortuita ou provocada, por árvore
delinquente ou pirómano de aldeia, a destruição leva sempre vantagem. Embora
Portugal queime de forma rara em regularidade e dimensão, às vezes há
catástrofes devastadoras até em paragens desenvolvidas e organizadas e
demograficamente equilibradas. Às vezes, a resignação é o único remédio.
Pedrógão Grande, porém, é um caso
diferente. Aquele não foi um simples incêndio. Foi, desde que há registos
fiáveis, um dos incêndios florestais mais mortíferos da História, portuguesa,
europeia ou mundial. Na Califórnia, onde as chamas costumam arrasar
territórios imensos e lugarejos inteiros, o recorde de fatalidades são 29, em
1933, e a regra duas ou três. Sessenta e quatro vidas, contas provisórias e
para cúmulo numa área pouquíssimo povoada, não é um dado comum. É um massacre
evitável. E é um crime fingir que não.
Na quarta-feira, o exacto dia em que a
nomenclatura do regime compareceu pesarosa ao funeral de um bombeiro, o
Presidente da República declarou que a “unidade nacional” perante a tragédia
“mostra bem como somos uma nação antiga e uma nação muito forte”. À superfície,
tais palavras são apenas um deprimente vazio. Sucede tratar-se do exacto PR
que, entre abraços sortidos, ocupou os minutos iniciais que os noticiários
dedicaram ao incêndio para garantir que fora feito tudo o que se podia fazer.
Pelo meio, o país tomou conhecimento de dezenas de mortos e da radical
desorientação ou impotência das autoridades. E o país viu-se atacado por uma
operação, talvez inédita, de manipulação informativa liderada pelo governo e
patrocinada por boa parte dos “media”. O país que quis perceber percebeu que a
“nação muito forte” é uma coisinha débil, e que a “unidade nacional” é uma
estratégia repugnante para, em nome das vítimas, socorrer os suspeitos. Note-se
que não acuso ninguém. Não é preciso: os esforços para suprimir culpas são a
sua maior admissão.
A “incompetência do Governo não pode
encontrar justificação na meteorologia”, berrava o BE em 2015, face a 28 mil
hectares queimados e, suponho, morto nenhum. Agora, a actriz Catarina Martins
implora no Twitter: “Que venha a chuva. Bom dia”. A brandura é partilhada pelo
PCP, o qual, salvo por um patético “pedido de esclarecimento”, refugiou-se no
luto. “Luto”, aqui, é código para “ganhar tempo”. Não surpreende a cumplicidade
dos partidos comunistas no arranjo. Não surpreendem os esforços do PS na
elaboração do arranjo. Não surpreende o aval do PR ao arranjo, visto que já só
os ceguinhos não vêem a verdadeira função do prof. Marcelo. E não surpreende a
ajuda das televisões e dos jornais à eficácia do arranjo.
Numa proeza sem grandes precedentes na
cronologia do servilismo ocidental, um diário de rever…, perdão, referência, mobilizou
todo o corpo de colunistas para atribuir Pedrógão Grande à desdita, à
conspiração dos elementos e – segurem-se – ao “fogo que voa”. É um mero, mesmo
que particularmente asqueroso, exemplo. Descontadas as excepções, o tom das
“notícias” não tem fugido à produção de prosa “poética” e sentimento. Em
contrapartida, foge a oito pés na hora de escrutinar o poder. Editoriais
espanhóis decretam o fim da carreira do primeiro-ministro, mas ignoram que o
repórter português médio permite que o excelentíssimo espécime coloque as
perguntas que quer em lugar de responder às que não quer. Mal
habituados, jornalistas a sério não
concebem que o jornalismo a brincar colabore com estadistas de trazer por casa
em sinistras encenações de compaixão. Aliás, o jornalismo a brincar também não
concebe o seu oposto: um colunista do “El Mundo”, crítico das nossas desgraças,
anda a ser investigado pelos colegas de cá, abismados com o desplante.
Em nações menos exóticas, haveria quem
expusesse o talento do dr. Costa, de certos amigos do dr. Costa e de outras personalidades admiráveis
no “investimento” de milhões em comunicações que não comunicam e em
helicópteros que não descolam. E quem fosse directa ou indirectamente
responsabilizado pelas famílias encurraladas e carbonizadas em plena estrada,
que se apelida “da morte” para efeito “dramático”. E quem denunciasse as
mentiras cometidas por figuras ditas de relevo a partir do ponto em que a quantidade
de cadáveres era demasiada para continuar a adiar a divulgação. E quem, acima
dos estropícios que entopem a Administração Interna, explicasse em língua de
gente a recusa dos bombeiros galegos. E quem lembrasse que é tão fácil quanto
inútil ganhar campeonatos de futebol, festivais de cantigas e incumbências na
ONU: difícil é
ganhar vergonha na cara.
Nações menos infantis não descansariam até varrer os
demagogos que celebram glórias imaginárias e fintam as desgraças autênticas.
Portugal, não. Portugal respeita os mortos, leia-se espera que os vivos não
perturbem a “estabilidade”. Portugal observa prioridades, leia-se deixa
arrefecer o assunto. Portugal não cede à baixa política, leia-se permite a
impunidade geral. Portugal está unido, leia-se criou-se um ambiente hostil a
questões desagradáveis. Portugal, repete-se, é uma nação muito forte, leia-se
um recreio de oportunistas, desnorteados ao primeiro assomo da realidade.
Sobra uma lição, que a “nação muito antiga” teima em não aprender. Em
Pedrógão Grande, o Estado falhou no solitário papel que lhe devia caber:
proteger fisicamente os cidadãos. Logo o Estado, de que os
portugueses esperam tudo e, no momento que importa, obtêm nada. Não é
coincidência.
As vantagens dos incêndios
OBSERVADOR,
23/6/2017
A
economia daquilo a que chamam tragédias é favorável à comunicação social.
Enquanto nos períodos normais, vive de luzes e plumas que tem de pagar, nos
desastres tudo é a baixo custo.
Há
razões para em Portugal se usar a palavra ‘tragédia’ para uma classe larga de
acontecimentos, que inclui o genocídio e o desaparecimento do vinho de
Carcavelos. As palavras ‘acidente’ ou ‘desastre’ parecem insatisfatórias,
porque de facto não prometem nada: apenas indicam que uma coisa violenta,
triste, e inesperada aconteceu. ‘Tragédia’ pelo contrário garante que aquilo
que aconteceu é um episódio numa história muitíssimo maior, normalmente oculta,
e por isso susceptível de ser revelada.
Encarregam-se
das revelações os jornalistas, que explicam o sentido do que acabou de se
passar e transmitem histórias de interesse humano. O trabalho de jornalista
cobre de uma capa de vileza moral tudo o que é o caso: sugere que há uma
explicação para os acontecimentos, que naturalmente é a que ocorre aos
jornalistas; e transforma tudo o que lhes interessa em interesse. Os
jornalistas alegarão que a sua profissão se ocupa do interesse humano: mas na
realidade o interesse humano de tudo o que acontece coincide sempre com o seu
interesse profissional; nada do que é profissional lhes é estranho.
A
economia daquilo a que chamam tragédias é favorável à comunicação social.
Enquanto nos períodos normais a televisão e a imprensa vivem de luzes, música,
plumas, comentadores e lantejoulas, que têm de ser pagos e custam muito
dinheiro, um acontecimento imprevisto fornece grandes cenários naturais e
humanos a baixo custo. A consequência evidente para quem presta atenção a esses
acontecimentos é a atenção extraordinariamente demorada a tudo aquilo que sai
de graça. Num barranco em chamas, e entre blocos de publicidade, o mesmo
jornalista improvisa infinitamente sobre o barranco em chamas; e quando
escasseiam imagens variadas de barrancos em chamas, o mesmo jornalista
improvisa infinitamente sobre as mesmas imagens. O seu género é a stand-up
tragedy.
Mas
são os cenários humanos obtidos de graça que tornam o espectáculo mais
repelente. Nessas alturas o jornalista aproxima-se pé ante pé e faz perguntas
que sabe antecipadamente serem de êxito garantido. É o herdeiro das mães que
gostam de ver os filhos a chorar, e das crianças que arrancam as pernas às
moscas. A sua vileza maior consiste em tornar pessoas vis: em deliberadamente e
com premeditação converter o mundo num repositório de figurantes em que cada
pessoa paga o seu aparecimento na televisão com o espectáculo público daquilo
que em circunstâncias normais lhe deveria aparecer apenas em sonhos.
Embora
alguns jornalistas gostem de se mostrar entre pessoas mortas, são os barulhos e
os gestos das pessoas vivas que lhes permitem ocupar o tempo de emissão com
mais proveito; e são eles que mobilam com conteúdos o que de qualquer maneira
os jornalistas nunca conseguiriam por si só imaginar: um cão, um filho, um
tractor, uma mala de roupa. Visto o que se tem visto, os acontecimentos
recentes sugerem que nem sempre será boa ideia não matar o mensageiro.
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