sábado, 24 de junho de 2017

Raiva


Os artigos que seguem são bem reflexo do sentimento de raiva impotente contra uma calamidade em várias frentes, corporizada numa tragédia inesperada, decerto, e logo tratada de forma obscena, nas reportagens espectaculares por amantes do sensacionalismo, nos governantes sem pingo de vergonha, de pieguice balofa ou de táctica desresponsabilizadora, permitindo atribuir a um fenómeno de trovoada seca  repentina a responsabilidade exclusiva do incêndio descontrolado e imediato, para melhor desculpabilizar a distracção dos recursos humanos e  logísticos e os muitos interesses e inércia geral que estão na base dos crimes. Triste que assim seja, mas a maioria dos comentários que leio ao texto de Alberto Gonçalves mostram bem a falta de seriedade e compostura dos comentadores tão deselegantes e ocos quanto aquilo que condenam, de forma galhofeira e perversa, o que igualmente envergonha quem se dê ao trabalho de os ler para analisar o panorama intelectual e moral do povo a que pertencemos.
Alberto Gonçalves é objectivo, directo e feroz, sem mastigações de atenuação, revelando o clima de trafulhice, impunidade e palração cínica em que vivemos sob a batuta dos que governam, que de igual raiz provêm. Pedro Tamen assesta o dedo crítico, com igual ferocidade, sob a capa da ironia, num jornalismo primário a que não há estômago que resista.
Morrer entre brutos é triste
OBSERVADOR, 24/6/2017

Portugal não cede à baixa política, leia-se permite a impunidade geral. Portugal, repete-se, é uma nação muito forte, leia-se um recreio de oportunistas, desnorteados ao primeiro assomo da realidade.
Anteontem, o “Jornal de Notícias” recordava o “‘inferno’ idêntico ao de Pedrógão”, que “reduziu a cinzas cidade no Canadá”. Aconteceu em 2016, queimou 590 mil hectares e obrigou a evacuar Fort McMurray, uma cidade de 80 mil habitantes. O “JN” diz, provavelmente com razão, que “ninguém poderia prever” aquilo. O que o “JN” não diz é o número total de mortos. Digo eu: zero.
Ao invés dos abundantes especialistas em floresta que despontam por cá a cada Verão (ainda assim insuficientes para impedir a floresta de arder com empenho), acredito existirem fogos impossíveis de prever e quase impossíveis de controlar. Fortuita ou provocada, por árvore delinquente ou pirómano de aldeia, a destruição leva sempre vantagem. Embora Portugal queime de forma rara em regularidade e dimensão, às vezes há catástrofes devastadoras até em paragens desenvolvidas e organizadas e demograficamente equilibradas. Às vezes, a resignação é o único remédio.
Pedrógão Grande, porém, é um caso diferente. Aquele não foi um simples incêndio. Foi, desde que há registos fiáveis, um dos incêndios florestais mais mortíferos da História, portuguesa, europeia ou mundial. Na Califórnia, onde as chamas costumam arrasar territórios imensos e lugarejos inteiros, o recorde de fatalidades são 29, em 1933, e a regra duas ou três. Sessenta e quatro vidas, contas provisórias e para cúmulo numa área pouquíssimo povoada, não é um dado comum. É um massacre evitável. E é um crime fingir que não.
Na quarta-feira, o exacto dia em que a nomenclatura do regime compareceu pesarosa ao funeral de um bombeiro, o Presidente da República declarou que a “unidade nacional” perante a tragédia “mostra bem como somos uma nação antiga e uma nação muito forte”. À superfície, tais palavras são apenas um deprimente vazio. Sucede tratar-se do exacto PR que, entre abraços sortidos, ocupou os minutos iniciais que os noticiários dedicaram ao incêndio para garantir que fora feito tudo o que se podia fazer. Pelo meio, o país tomou conhecimento de dezenas de mortos e da radical desorientação ou impotência das autoridades. E o país viu-se atacado por uma operação, talvez inédita, de manipulação informativa liderada pelo governo e patrocinada por boa parte dos “media”. O país que quis perceber percebeu que a “nação muito forte” é uma coisinha débil, e que a “unidade nacional” é uma estratégia repugnante para, em nome das vítimas, socorrer os suspeitos. Note-se que não acuso ninguém. Não é preciso: os esforços para suprimir culpas são a sua maior admissão.
A “incompetência do Governo não pode encontrar justificação na meteorologia”, berrava o BE em 2015, face a 28 mil hectares queimados e, suponho, morto nenhum. Agora, a actriz Catarina Martins implora no Twitter: “Que venha a chuva. Bom dia”. A brandura é partilhada pelo PCP, o qual, salvo por um patético “pedido de esclarecimento”, refugiou-se no luto. “Luto”, aqui, é código para “ganhar tempo”. Não surpreende a cumplicidade dos partidos comunistas no arranjo. Não surpreendem os esforços do PS na elaboração do arranjo. Não surpreende o aval do PR ao arranjo, visto que já só os ceguinhos não vêem a verdadeira função do prof. Marcelo. E não surpreende a ajuda das televisões e dos jornais à eficácia do arranjo.
Numa proeza sem grandes precedentes na cronologia do servilismo ocidental, um diário de rever…, perdão, referência, mobilizou todo o corpo de colunistas para atribuir Pedrógão Grande à desdita, à conspiração dos elementos e – segurem-se – ao “fogo que voa”. É um mero, mesmo que particularmente asqueroso, exemplo. Descontadas as excepções, o tom das “notícias” não tem fugido à produção de prosa “poética” e sentimento. Em contrapartida, foge a oito pés na hora de escrutinar o poder. Editoriais espanhóis decretam o fim da carreira do primeiro-ministro, mas ignoram que o repórter português médio permite que o excelentíssimo espécime coloque as perguntas que quer em lugar de responder às que não quer. Mal habituados,  jornalistas a sério não concebem que o jornalismo a brincar colabore com estadistas de trazer por casa em sinistras encenações de compaixão. Aliás, o jornalismo a brincar também não concebe o seu oposto: um colunista do “El Mundo”, crítico das nossas desgraças, anda a ser investigado pelos colegas de cá, abismados com o desplante.
Em nações menos exóticas, haveria quem expusesse o talento do dr. Costa, de certos amigos do dr. Costa e de outras personalidades admiráveis no “investimento” de milhões em comunicações que não comunicam e em helicópteros que não descolam. E quem fosse directa ou indirectamente responsabilizado pelas famílias encurraladas e carbonizadas em plena estrada, que se apelida “da morte” para efeito “dramático”. E quem denunciasse as mentiras cometidas por figuras ditas de relevo a partir do ponto em que a quantidade de cadáveres era demasiada para continuar a adiar a divulgação. E quem, acima dos estropícios que entopem a Administração Interna, explicasse em língua de gente a recusa dos bombeiros galegos. E quem lembrasse que é tão fácil quanto inútil ganhar campeonatos de futebol, festivais de cantigas e incumbências na ONU: difícil é ganhar vergonha na cara.
Nações menos infantis não descansariam até varrer os demagogos que celebram glórias imaginárias e fintam as desgraças autênticas. Portugal, não. Portugal respeita os mortos, leia-se espera que os vivos não perturbem a “estabilidade”. Portugal observa prioridades, leia-se deixa arrefecer o assunto. Portugal não cede à baixa política, leia-se permite a impunidade geral. Portugal está unido, leia-se criou-se um ambiente hostil a questões desagradáveis. Portugal, repete-se, é uma nação muito forte, leia-se um recreio de oportunistas, desnorteados ao primeiro assomo da realidade.
Sobra uma lição, que a “nação muito antiga” teima em não aprender. Em Pedrógão Grande, o Estado falhou no solitário papel que lhe devia caber: proteger fisicamente os cidadãos. Logo o Estado, de que os portugueses esperam tudo e, no momento que importa, obtêm nada. Não é coincidência.

As vantagens dos incêndios
OBSERVADOR, 23/6/2017
A economia daquilo a que chamam tragédias é favorável à comunicação social. Enquanto nos períodos normais, vive de luzes e plumas que tem de pagar, nos desastres tudo é a baixo custo.
Há razões para em Portugal se usar a palavra ‘tragédia’ para uma classe larga de acontecimentos, que inclui o genocídio e o desaparecimento do vinho de Carcavelos. As palavras ‘acidente’ ou ‘desastre’ parecem insatisfatórias, porque de facto não prometem nada: apenas indicam que uma coisa violenta, triste, e inesperada aconteceu. ‘Tragédia’ pelo contrário garante que aquilo que aconteceu é um episódio numa história muitíssimo maior, normalmente oculta, e por isso susceptível de ser revelada.
Encarregam-se das revelações os jornalistas, que explicam o sentido do que acabou de se passar e transmitem histórias de interesse humano. O trabalho de jornalista cobre de uma capa de vileza moral tudo o que é o caso: sugere que há uma explicação para os acontecimentos, que naturalmente é a que ocorre aos jornalistas; e transforma tudo o que lhes interessa em interesse. Os jornalistas alegarão que a sua profissão se ocupa do interesse humano: mas na realidade o interesse humano de tudo o que acontece coincide sempre com o seu interesse profissional; nada do que é profissional lhes é estranho.
A economia daquilo a que chamam tragédias é favorável à comunicação social. Enquanto nos períodos normais a televisão e a imprensa vivem de luzes, música, plumas, comentadores e lantejoulas, que têm de ser pagos e custam muito dinheiro, um acontecimento imprevisto fornece grandes cenários naturais e humanos a baixo custo. A consequência evidente para quem presta atenção a esses acontecimentos é a atenção extraordinariamente demorada a tudo aquilo que sai de graça. Num barranco em chamas, e entre blocos de publicidade, o mesmo jornalista improvisa infinitamente sobre o barranco em chamas; e quando escasseiam imagens variadas de barrancos em chamas, o mesmo jornalista improvisa infinitamente sobre as mesmas imagens. O seu género é a stand-up tragedy.
Mas são os cenários humanos obtidos de graça que tornam o espectáculo mais repelente. Nessas alturas o jornalista aproxima-se pé ante pé e faz perguntas que sabe antecipadamente serem de êxito garantido. É o herdeiro das mães que gostam de ver os filhos a chorar, e das crianças que arrancam as pernas às moscas. A sua vileza maior consiste em tornar pessoas vis: em deliberadamente e com premeditação converter o mundo num repositório de figurantes em que cada pessoa paga o seu aparecimento na televisão com o espectáculo público daquilo que em circunstâncias normais lhe deveria aparecer apenas em sonhos.
Embora alguns jornalistas gostem de se mostrar entre pessoas mortas, são os barulhos e os gestos das pessoas vivas que lhes permitem ocupar o tempo de emissão com mais proveito; e são eles que mobilam com conteúdos o que de qualquer maneira os jornalistas nunca conseguiriam por si só imaginar: um cão, um filho, um tractor, uma mala de roupa. Visto o que se tem visto, os acontecimentos recentes sugerem que nem sempre será boa ideia não matar o mensageiro.



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