terça-feira, 13 de junho de 2017

“Povo que lavas no rio”



Imunizar é necessário. Mas a democracia impõe que a liberdade faz parte dos direitos de todo o homem e mulher e daí que, mesmo em caso de vida ou morte não se pode impor uma vacina ou uma transfusão de sangue para salvar uma vida, o que significa que, por preceito religioso ou por capricho de auto-suficiência arrogante e mesquinha, se tem que aceitar aquilo a que já Gil Vicente, pela voz do Anjo à Alma, definia como “Vosso livre alvedrio, isento, forro, poderoso”, embora no contexto das tentações que submetem o Homem, não numa questão de livre arbítrio em função da saúde pública. Por isso, admiro as mães que têm as vacinas dos filhos em dia, admiro o Serviço Nacional de Saúde que as impõe.
Eis dois artigos importantes para a nossa informação:

1º Texto:
Vacinação obrigatória
Não posso aceitar, a coberto da liberdade de informação, que se dê cobertura jornalística igual e intensa aos que, por total ignorância ou má-fé, insistem em negar o direito dos filhos serem vacinados
Vivemos tempos de obrigatoriedades. Há bem pouco tempo era a do serviço militar que se queria reintroduzir. Talvez seja útil para muitos e, quem sabe, a defesa da nossa sociedade oPaís a isso obrigue. Não o cumpri, mas admito que seja desejável ter uma parte substancial da população apta para as tarefas da defesa nacional. Em todo o caso, não é tema para discussão ligeira, nem para princípios extremos de pacifismo ou belicismo. Não se trata disso. Nem sequer se trata de uma discussão sobre liberdades individuais quando o estatuto de objetor de consciência não merece contestação. O que estará em cima da mesa é saber de que forma, eventualmente com serviço militar obrigatório, podemos e devemos defender a nossa soberania e, por essa via, a liberdade.
Sobre a obrigatoriedade de todos pagarmos impostos, seguramente imprescindível, ainda que apenas sejam indiretos para os com menores rendimentos, ninguém se tem pronunciado. Parece que não há anarquistas lusos.
Ora, a discussão sobre uma obrigatoriedade vacinal, pesem embora as palavras inflamadas de alguma esquerda agora mais desperta para a Saúde Pública, não pode ser superficial ou distante da evidência científica. Pena que alguns comentadores e articulistas não se tenham manifestado, com a mesma veemência literária, sobre a necessidade de proteger as pessoas do fumo de tabaco a que não queiram ser expostos, quando escreveram sobre a ignorância de poucos que impõe alguma coisa de errado a todos.
Voltemos às vacinas que são, não haja confusões, um assunto diferente, embora também aqui se insista, em quase tudo o que envolve saúde pública, em confundir direitos pessoais com a liberdade de viver em sociedades que, em primeiro lugar, se devem definir como um produto da cooperação e convivência entre as pessoas. A civilização também é isto.
Têm estado bem, os nossos governantes da saúde e a administração pública, ao admitirem que precisamos de uma reflexão serena, cientificamente válida e atenta às consequências. Chegam mesmo a admitir que ainda não têm uma posição definitiva sobre o tema da vacinação obrigatória. Fica-lhes bem essa humildade científica. Verdade seja dita, até os peticionários pela vacinação obrigatória mais não pedem do que se pense sobre a possibilidade de a introduzir.
Há vacinas desde que Edward Jenner, em 1796, decidiu testar a vacinação, a inoculação do vírus de vacina propriamente dita. Em boa verdade, a variolização já tinha precedido a vacinação mas foi esta que legou o seu nome à prática de imunizar, ativar o sistema imunitário, por exposição ao agente causal ou às suas porções imunogénicas. Os benefícios para a humanidade têm sido incomensuráveis. A vacinação para a varíola foi a ferramenta que levou a um dos maiores êxitos sanitários da história da humanidade, a primeira erradicação de uma doença infecciosa humana, em 1980.
Vale a pena ler o Nemesis de Philip Roth para nos projetarmos no terror da poliomielite dos tempos pré-vacinais. Hoje, já nem há “pulmões de aço”, substituídos por ventiladores que, apesar da sua portabilidade, continuariam a ser um entrave à qualidade de vida daqueles que, infetados por um vírus, não tivessem sido vacinados e contraíssem a doença. Já para não falar das sequelas motoras que ainda afligem adultos que sobreviveram à poliomielite anterior a 1955. Lembrei-me da poliomielite por ser uma doença que, tal como a varíola, poderá ser erradicada pela vacinação. E a poliomielite é também um bom exemplo de como as vacinas têm evoluído e continuam a evoluir. A vacina de Jonas Salk, a de 1955, foi substituída pela de Albert Sabin, com vírus atenuado, em 1961, e agora já há vacinas inactivadas, mais potentes e seguríssimas. Foi na comunidade Amish, tradicionalmente anti-vacinas e contra qualquer tipo de progresso, que se deram os últimos casos de poliomielite paralítica nos EUA, país onde nem há vacinação universal e gratuita. Note-se que a resistência Amish foi usada, de forma epidemiologicamente abusiva, como demonstração da não necessidade de vacinas e de como fugir aos seus riscos. Em boa verdade, os riscos das vacinas são muitíssimo inferiores aos seus benefícios pessoais e coletivos. Como já tem sido bem lembrado nos últimos dias, os que não se vacinam, por opção pessoal ou contraindicação médica, beneficiam de um efeito de circulação controlada do agente biológico patogénico por força do elevado número de vacinados, a chamada “imunidade da manada”, a “herd immunity”. Não diria que é egoísmo. É o mesmo efeito que nos leva a estar mais protegidos da pneumonia por pneumococos, sem que haja vacinação universal, porque agora se vacinam grupos de pessoas com maior risco, incluindo idosos.
A vacina do sarampo só foi concebida em 1963, já eu tinha nascido e tido sarampo, sendo que a forma atualmente usada data de 1968. Digamos que não é uma novidade ainda por testar. No caso do sarampo há, além da diminuição do risco de infeção, a redução da mortalidade associada ao sarampo — habitualmente muito baixa, na ordem de 1 a 2/1000 – e a supressão de sequelas como a encefalite do sarampo. Por outro lado, repito, só com vacinação em larga escala se pode impedir a propagação de epidemias. Existem já situações em que, por convénio internacional, há vacinações obrigatórias de viajantes, sendo a vacina para a febre amarela o caso mais conhecido. Ou seja, mesmo em países sem vacinação universal obrigatória pode haver razões para implementar vacinas obrigatórias para quem vem de zonas endémicas para determinadas doenças.
Existem, como vimos, argumentos fortes a favor da generalização das vacinas, o que em Portugal tem sido feito por um dos melhores, mais seguros, mais modernos e mais abrangentes programas universais e gratuitos de vacinação em todo o mundo. É motivo de orgulho nacional e de inveja internacional, até pelas taxas de cobertura atingidas. Sendo assim, a decisão de não vacinar é, além de estúpida, injustificada e atentatória do direito à proteção da saúde das crianças, bem como viola o dever individual de proteger e manter a saúde. São estas as determinações da Constituição da República Portuguesa que, no entanto, não pode impor que as pessoas tomem um medicamento ou façam um tratamento que não queiram, exceto em situações de doença mental grave e por ordem judicial.
Há o direito de se impor, por via legal ou judicial, a vacinação de todas as crianças que residam em Portugal? Para já, não. Dificilmente será possível alterar este estado de coisas. As implicações, nomeadamente a definição de a quem pertence a responsabilidade de efeitos secundários que possam advir da vacinação, são complexas demais para serem reduzidas a um simples sim ou não à vacinação obrigatória. O que não afasta a necessidade de reflectir sobre a dimensão e alcance do poder parental quando este possa ser exercido de forma a prejudicar a saúde das crianças, neste caso por omissão. Há paralelismos, salvaguardadas as distâncias de uma medida preventiva para outra curativa, entre a recusa de vacinar e a de não autorizar a transfusão, mesmo quando em risco imediato de vida, de menores que sejam filhos de Testemunhas de Jeová. No segundo caso há solução prevista pela intervenção dos Tribunais e uma complexa rede de legislação e jurisprudência que protege as crianças de negligência na saúde. A recusa de vacinar será uma negligência de valor equivalente?
Lembro que ainda hoje, apesar da revisão recente da Lei de Saúde Pública, a Assembleia da República não se entendeu sobre a prevalência do artigo 64º, o do direito à proteção da saúde, sobre o 27º, o do direito à liberdade e segurança, onde, infelizmente, incluíram os internamentos compulsivos de doentes mentais. Os internamentos são, para um médico, uma oportunidade de tratamento, enquanto que, para um jurista, representam um equivalente à prisão. Não pode haver direito à liberdade e segurança se não houver proteção da saúde. Veja-se o caso recente da epidemia de Ébola em que não existiam ferramentas legais adequadas para promover internamentos compulsivos ou permanência domiciliária de quarentena, tal como, ainda hoje, nada obriga a que um portador de tuberculose multi-resistente seja tratado se não quiser. São exemplos de como é complexo compatibilizar obrigações e direitos na administração e na prestação de cuidados de saúde.
Vejamos o surto de hepatite A que decorre em Portugal. Suspeita-se que possa haver transmissão sexual associada. Pelos vistos há população não vacinada e vejam a dificuldade que tem sido convencer as pessoas a só terem sexo protegido quando o praticam com parceiros não habituais (ou parceiras, para aqueles novilinguistas dos “Portugueses e Portuguesas”). Nada indica que a obrigatoriedade de uso de preservativo pudesse vingar e até há quem se vá esquecendo do cinto de segurança nos automóveis, felizmente obrigatório e alvo de coimas para os mais amnésicos.
Julgo que a possibilidade de vacinação é um bem que ninguém deve desperdiçar. É inconcebível que existam pais que impeçam os seus filhos de aceder a medidas preventivas ou terapêuticas que se julguem úteis. Mas percebo que haja quem possa ter reservas, ainda que infundadas. A melhor forma de as vencer será pela informação e ensino e nunca pela obrigação de aceitar um tratamento que não se quer. Todavia, poderão existir situações de epidemia ou pandemia que obriguem a medidas excecionais. Não me parece que seja o caso, para já. O que não posso aceitar, ainda que em nome da liberdade de informação, é que se dê cobertura jornalística igual, intensa e persistente aos que, por absoluta ignorância ou má-fé, insistem em negar o direito dos seus filhos a serem vacinados. Dessa forma, mais do que informar ou noticiar, propala-se desinformação.
Acompanhemos, confiantes, o trabalho das nossas Autoridades de Saúde. Não as menosprezemos. Recusemos raciocínios simplistas e em cima do acontecimento. A situação epidemiológica não obriga a decisões imediatas sobre aplicação obrigatória, compulsiva, do Plano Nacional de Vacinação. Apresentem-se argumentos científicos e censure-se, é essa a palavra, a crendice e o obscurantismo. Aceitemos uma discussão sobre argumentos válidos. Lamentemos a morte que já aconteceu. Não culpemos ninguém. Desejemos que mais mortes não aconteçam, nem complicações graves e com sequelas definitivas. Façamos cálculos e, com toda a informação compilada e analisada, quem tiver que decidir decida bem, pela nossa saúde e das nossas crianças.
Ex-ministro da Saúde

2º Texto:
Vacinação: o que pertence à opinião e à decisão
A obrigatoriedade não deve ser excluída. Seria importante que os militantes anti-vacinação entendessem que podem estar a tornar essa decisão inevitável.
Público, 21 de Abril de 2017
Rui Tavares
Não sei o nome da jovem que morreu de sarampo esta semana no nosso país. Não sei o nome dos seus pais, que estão a passar pelo mais terrível sofrimento, ainda para mais certamente agravado pelo enorme debate público que esta morte, provocada por uma doença que já não era suposto matar em Portugal no ano de 2017, está a gerar. Mas sei que, se queremos que este debate doloroso tenha algum significado, a primeira coisa que há a fazer é afastar dele qualquer espírito persecutório. A segunda é fazê-lo de forma tão construtiva quanto possível: ele pode partir de um caso particular, mas é para o sentido geral que é preciso levá-lo.
Imaginemos por isso (para afastar todo o sentido de culpa particular) que um determinado indivíduo não foi vacinado por erro administrativo. Poderia também tratar-se de uma grávida ou de uma pessoa que não pudesse ser vacinada por razões médicas de outra ordem, mas o que importa aqui é que esse indivíduo não foi imunizado. O que há a fazer? Simples: garantir que o grupo em torno dele está tão imunizado quanto possível para que o indivíduo não-imunizado tenha o mínimo de possibilidade de ser contagiado. Como é óbvio, se eu não me vacinar, não estou só a pôr-me em risco a mim: estou também a criar um canal que pode contagiar esse outro indivíduo que não foi imunizado. A vida dele (ou dela) depende da minha escolha. Em consequência: a minha opinião e a minha decisão têm aqui critérios diferentes. A minha opinião vale só para mim; a minha decisão vale para a minha vida e para a vida de outros.
Digo “a vida” e não apenas “a saúde”, porque há uma realidade que importa salientar e que o caso trágico desta semana ilustra. Quando descem os níveis de imunização numa comunidade, não aumentam só as probabilidades de contágio. Segundo vários estudos (aquele que consultei foi da prestigiada revista médica Lancet), a própria severidade da doença quando contraída aumenta. No caso do sarampo, a doença pode ser até quatro vezes mais fatal quando contraída em bolsas de não-vacinação numa sociedade predominantemente vacinada. Por isso é importante, longe de qualquer estigmatização, chamar a atenção dos nossos concidadãos que não se vacinam ou não vacinam os filhos por militância: ao fazê-lo, não estão apenas a colocar-se em risco a si mesmos, nem sequer apenas a colocar em risco os vossos filhos, nem sequer a providenciar mais canais de contágio que fazem com que a doença atinja mais pessoas. Estão também a criar as condições para que a doença seja mais perigosa em cada caso.
Chegados a este ponto, os militantes da não-vacinação dir-me-ão que esta é apenas uma opinião que os não obriga a eles. Mas as consequências daquilo a que eles chamam de “opinião” pró-vacina e anti-vacina são muitíssimo diferentes, e por isso estas “opiniões” não podem estar em posições equivalentes no que diz respeito à tomada de decisões em saúde pública. Numa sociedade democrática, todas as opiniões são possíveis. Mas onde há decisões a tomar, a comunidade tem de se guiar pelos factos disponíveis e pelo consenso em torno deles. Podemos, por exemplo, achar o que quisermos sobre o “debate” entre conduzir sóbrio e alcoolizado: que é um debate interessante, irritante, inútil, ou até que não é debate nenhum. Mas ninguém vai esperar pelo fim da conversa para só aí tomar a decisão de proibir a condução alcoolizada: a conversa pode ser interminável e os riscos de não se tomar uma decisão são demasiado grandes. Face aos riscos da não-proibição e aos benefícios da proibição, a decisão de proibir a condução alcoolizada foi proporcional — e a proporcionalidade é a regra de ouro nestas decisões. Ora, a proporcionalidade que vale para uma proibição vale também, é claro, para uma obrigatoriedade.
Isto deveria, aliás, levar os adeptos da não-vacinação a manterem eles próprios a sua militância no domínio estrito da opinião e não passarem à prática de não vacinar. Pela simples razão de que, no seu caso, passar da opinião à decisão — de acordo com toda a informação que temos disponível — põe em risco a vida de terceiros. Por outro lado, caso se verifique que a não-vacinação está a aumentar e a vacinação a afastar-se da desejável universalidade, é perfeitamente legítimo que a comunidade tenha também de decidir em face dos dados disponíveis e do consenso científico. Ora, dada a comparação entre os perigos que ocorrem se baixarem os níveis de vacinação e a simplicidade, segurança e baixo custo de vacinar toda a gente (contra as doenças de que estamos a falar), é mais do que evidente que a decisão de tornar a vacinação obrigatória pode ser proporcional. A obrigatoriedade não deve por isso ser excluída. Seria importante que os militantes anti-vacinação entendessem que podem estar a tornar essa decisão inevitável.

Mas, para amenizar, e sabendo quanto as vacinas têm contribuído para impedir epidemias bem graves, como as referidas pelo ex-ministro da Saúde Fernando Leal da Costa, no seu estudo crítico, transcrevo, de um artigo epistolar, de «Cravos Roxos» (1981) - “Lafões, vitela e jejuns” - um breve passo como homenagem a uma antiga vizinha nossa - a srª Palmira, mulher de uma energia física e vocabular extremamente contagiantes do meu espírito infantil, que a educação caseira convencional eliminaria atempadamente. Eis a referência, que destaca o jeito que Zeca Afonso com tanto carinho definiria na sua Grândola - não, é certo, que por educação, mas pela ausência dela, como também já Fernão Lopes apreciara, de dinâmica democrática independentista - “o povo é quem mais ordena”:

« De Oliveira passámos para Pinheiro de Lafões, para uma casa que me parecia enorme nessa altura, com quintal, horta e cerejeira. Os ares eram puríssimos e vivemos em relativa liberdade, frequentando a escola na eira, no tempo da D. Clara e posteriormente da D. Aurora, que nos ajudava a compor as cartas para o meu pai, o qual toda a vida atravessou em África dificuldades pecuniárias incompreensíveis, dada a sua posição de colonialista e explorador.
A nossa educação fazia-se por diversos processos, entre os quais não se desdenhava a experiência directa do português vernáculo, por intermédio da excelente mestra, a senhora Palmira, tão amiga da tua mãe, e que vencia e convencia qualquer doutor em despique vocabular. Lembro-me até de que um dia, na escola, ao fazer-se vacinação geral contra a varíola, ao ver a sua filha Maria entre as mãos de uns energúmenos de bata branca, a srª Palmira rompeu por entre o povo que enchia a sala de aula e tirou-lhes triunfalmente a criança, acompanhando o feito de largo estendal de impropérios, que neutralizariam toda a equipa de bata branca. Tinha razão, aliás, a srª Palmira, que a filha nunca apanhou varíola nem ficou com marcas da vacina, enquanto que nós, os que nos submetemos, recolhemos largos dias ao leito, com tremendíssima febre e tremendíssimas bolhas que resultaram em marcas espectaculares da vacina e da sujeição.»

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