Pese embora o mau começo de
António Costa, no esbulho aventureiro que praticou, salteador à espreita na
curva da estrada, com uma decisão despudorada que arrastou mais de metade do
país na satisfação da nova entente e deixou sacudido de vergonha o
restante, subtraídos os indiferentes, amodorrados nas suas inércias, ou os
quezilentos presos aos seus enjoos de omnisciência, o certo é que António Costa tem galgado na
opinião pública, acompanhado pelo ministro Centeno, cedendo à esquerda no que
entendeu ceder, mas cumprindo, com bom senso, os acordos iniciados por Passos
Coelho, o que lhe granjeou adesão europeia e, afinal a simpatia da maioria. Os
portugueses só podem estar-lhe reconhecidos, embora pensem que a conjuntura em
que se vive, de violência terrorista, tem contribuído para esta espécie de
adesão a um país que oferece boas condições climáticas para o aumento
turístico, acrescentadas do próprio desenvolvimento das estruturas turísticas
para acolher o estrangeiro pacífico. Por outro lado, as viagens dos governantes
ao estrangeiro em função de possíveis acordos económicos, exigindo a
descontracção de um savoir faire
imprescindível, além de muita resistência física e psicológica, tornam-nos
igualmente credores de admiração, na expectativa sempre de um futuro menos
cinzento, que o discurso positivo daqueles a cada passo faz prever. Por isso, o
artigo de Manuel Carvalho, comedido e honesto, ao fazer ressaltar quanto
é mais o que une os dois homens capitais no actual “êxito” económico – a
dupla Passos-Costa - do que o que os separa, ambos desejosos de sacudir a
nódoa que, como sempre, tem obscurecido o nosso viver de fraca produção e
constante endividamento, nos causa satisfação e um certo orgulho, ao constatar
que podemos ser outra coisa do que costumamos demonstrar, e que sempre haverá,
no nosso caminho desequilibrado, um João das Regras ou uns conjurados amantes
da pátria a desviar-nos do abismo.
Opinião
Uma vénia à dupla Passos-Costa
O que todos sabemos é que é muito melhor viver assim. Por obra dos
governos de Passos e de Costa. E, principalmente, por nossa própria obra.
Manuel Carvalho
Memória futura
Público, 24 de Maio de 2017
Quando duas crianças
briguentas disputam os mesmos brinquedos é bom que haja um adulto por perto. Felizmente
estava lá o Presidente-Rei Marcelo a acalmar António Costa e Pedro Passos
Coelho, dizendo-lhes que os brinquedos, ou melhor, a saída de Portugal do Procedimento por Défice
Excessivo (PDE), era pertença dos dois e também do país
inteiro. Em birras como
esta a paciência dos adultos por vezes esgota-se. Porque as
birras têm o condão de nos desviar do que de facto é importante e contribuem
para atestar o défice de qualidade da nossa vida pública e política, despindo-a
de argumentos e de racionalidade e preenchendo-a com artimanhas e resmungos.
Numa democracia madura onde o poder vê os cidadãos como adultos não haveria
certamente este “empurra para lá” de dois galos em luta pelo pelos louros de uma
grande notícia para Portugal e para os portugueses. Calem-se, portanto.
Só com um pouco menos de
ruído podemos então detectar que a proposta da Comissão Europeia é o lacre que
sela o final de processo de seis anos de sacrifícios no qual os portugueses voltaram
a ser os grandes heróis. José Pacheco Pereira gostaria de lhes ter visto
no auge dos dias de chumbo uma costela mais jacobina, em vez da “apatia cívica”
que revelaram perante a “política de dolo que a União Europeia usou”.
Ele ainda não percebeu que os portugueses perceberam que em 2010 e 2011 o país
estava na mesma penosa condição da bancarrota de 1892, mas desta vez não tinha
colónias para serem disputadas em troca da ajuda da Alemanha e da Inglaterra.
As pessoas sabem que há momentos em que é preciso cerrar os dentes e resistir.
Não percebeu também que, quando o país sentiu que o Governo estava abusar, como
aconteceu quando Passos anunciou que seriam os trabalhadores a pagar a TSU,
saíram da sua “apatia cívica” e, a 15 de Setembro de 2012, fizeram a
maior manifestação desde os dias quentes do PREC.
Pierre Moscovici, o comissário
europeu das Finanças disse-o, o Presidente-Rei Marcelo
sublinhou-o e, na prática, toda a gente reconheceu que a relativa bonança
destes dias se deve muito à capacidade de encaixe dos portugueses – e ao seu
talento. E, também, ao desempenho dos seus governantes. Como disse e bem o
Presidente, Pedro Passos Coelho tem de estar na galeria dos elogios pelo
percurso que fizemos do limiar da bancarrota até à saída do PDE.
A sua inconsistência ideológica, a forma estrangeirada e ligeira de ver o país,
o seu ardor neoliberal inspirado em leituras de revistas cor-de-rosa foram
terríveis para o país. Mas, no momento da proximidade do caos, ele teve
coragem, energia e determinação para traçar um rumo. Governou o país na mais
terrível conjuntura em décadas e deixou-o melhor para o primeiro-ministro que
lhe sucedeu. Deixou-o com um défice controlável e, principalmente, liberto da
sensação de que o Estado estava capturado por figuras como Ricardo Espírito
Santo ou empresas como a Ongoing. Só assim se explica que o PSD tenha sido o partido
mais votado em 2015.
Como aconteceu a
Churchill depois de ganhar a guerra, talvez Passos seja uma figura da História.
Provavelmente perdido na desilusão de se sentir injustiçado, o líder do PSD
põe-se em bicos de pés e tenta que o ouçam com a mensagem de sempre – “não podemos cometer os mesmos erros”,
disse outra vez esta segunda-feira. Faz lembrar as estrelas da rádio que
não deram conta da vinda da televisão. Portugal e a Europa (com a infeliz
excepção da Grécia) deixaram de estar focadas na crise financeira como há cinco
anos, Costa já o percebeu e diz que a União está a mudar, mas Passos ainda não
saiu desse bunker. Mas é bom que haja um esforço para sacudir o sectarismo e
reconhecer-lhe o serviço que prestou.
Da mesma forma, António
Costa merece todos os elogios por ter sido capaz de pegar numa herança ainda
periclitante e em menos de dois anos a ter tornado muito melhor. Fica-lhe mal
recuperar a cantilena do “fim da austeridade”
e da treta de que o anterior Governo se empenhou numa estratégia de
“empobrecimento colectivo”. Porque não é verdade. Estamos onde estamos
porque Costa fez ouvidos moucos aos cantos das sereias do Bloco e às canções de
protesto do PCP e seguiu uma linha de enorme rigidez na política fiscal. E se o
empobrecimento foi travado, ou até revertido, é porque hoje respira-se melhor
no rectângulo mais ocidental da Europa. Sem crescimento económico não há
receita fiscal e sem receita fiscal não há milagres, certo?
Dizer que não há uma
continuidade (num genial golpe de analista o Presidente-Rei chamou-lhe até o
novo “consenso do regime não explícito”, como recordou
David Dinis no PÚBLICO) entre Passos e Costa é absurdo
e incoerente – o que torna a sua briga ainda mais patética. Ambos se fixaram no
respeito pelos compromissos europeus, com a troika ou com o Pacto de
Estabilidade e Crescimento, ambos deram importantes contributos para que
Portugal seja hoje olhado outra vez como um país responsável e credível,
habitado por um povo que sabe o que quer. É esse clima de confiança no país que
ajuda o turismo, que faz com que os juros da dívida flutuem dentro de margens
toleráveis, que justifica o maior índice de investimento directo estrangeiro em
muitos anos, que melhora a marca do país nos mercados de exportação. E sim, que
nos permite outra vez desembarcar num qualquer aeroporto estrangeiro sem
carregar às costas o anátema do cidadão do país que não se sabe governar.
Descontando as birras
pueris, a verdade é que este marco do final de um ciclo só será mesmo
importante se, como prometeu António Costa, esta for “a última vez que passamos por um processo tão
traumático”. O espantalho dos cortes está longe e é
confortável ver o primeiro-ministro e o ministro das Finanças a garantir
comedimento e responsabilidade. Como é bom ouvir o Bloco insistir mais
na necessidade de o país investir do que na urgência de redistribuir a eito.
Talvez todos tenham percebido que não dá para viver acima do que a economia e
os impostos permitem. Talvez o desnorte dos anos 2000 tenha sido uma crise de
puberdade e o ajustamento uma transição para a vida sem acne juvenil. O
que todos sabemos é que é muito melhor viver assim. Por obra dos governos de
Passos e de Costa. E, principalmente, por nossa própria obra.
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