quinta-feira, 25 de março de 2010

Barco Ébrio

Li um texto no PortugalClub, ao que parece saído no Libération(http://www.liberation.fr/monde/0101625174-jose-socrates-le-portugais-ensable ), , assinado por François Musseau, envoyé spécial à Lisbonne, em 7/3/2010 que tem por título “José Sócrates, le Portugais ensablé”.
Um texto esclarecedor sobre as actividades e o carácter do nosso PM e uma nação à deriva, discutindo um e outras, sem conclusões definitivas, beco sem saída, onde o PM se impõe e vai.
Uma frase surgiu, definidora do nosso país e do nosso PM, que me fez matutar. E traduzir: “ Le Portugal est un bateau ivre dans lequel le capitaine est le plus suspect de tout l’équipage.”.
Deveria ficar triste com a imagem, aparentemente ofensiva, mas depois de traduzir o bonito poema de Rimbaud, senti orgulho. Porque se trata de um extraordinário poema, “Bateau ivre” de Rimbaud, nada a ver com quaisquer conotações negativas que o seu título possa sugerir.
Um poema de rebeldia, dum adolescente de dezassete anos, que como um meteoro surgiu no horizonte literário da França e do mundo, para se apagar literariamente aos vinte e um, encaminhando-se para percursos mais aventureiros de viagens exóticas e negócios lucrativos em África e na Arábia. Um tumor num joelho causaria a amputação da perna, em Marselha, e a sua morte em 1891, aos trinta e sete anos.
Toda uma nova atitude literária, refractária ao tradicionalismo poético, está contida neste poema de visionário, onde simbolismo, surrealismo, busca de efeitos encantatórios através de uma estranha e rara imagística de sinestesias frequentes, e uma nova métrica de transposições constantes, admirável de genialidade num jovem de dezassete anos que tanta influência exerceria sobre os poetas vindouros e sobre o primeiro modernismo português.
(No poema “Bateau Ivre” é o barco que fala, um lanchão usado no transporte de mercadorias que, após ter deixado as vias fluviais, se aventurou pelo mar):

Como eu descia uns Rios impassíveis
Não me senti mais guiado pelos homens rebocadores
Peles-Vermelhas em alta gritaria tinham-nos tomado como alvo
Pregando-os nus nos postes multicores.

Eu era indiferente a todas as equipagens
Transportador de trigos flamengos ou de algodões ingleses.
Quando com os meus rebocadores acabou a gritaria
Os Rios deixaram-me descer para onde eu queria.

No marulhar furioso das marés,
Eu, no outro inverno, mais surdo que o cérebro dos infantes,
Corri! E as ilhas flutuantes desatracadas
Nunca sofreram tumultos mais triunfantes.

A tempestade abençoou o meu despertar marítimo.
Mais leve que uma rolha, durante dez noites
Dancei sobre as ondas, de vítimas eternos baloiços fatais
Sem lamentar o olhar néscio dos faróis .

Mais doce do que para as crianças a polpa das maçãs seguras
A água verde, no meu casco de pinheiro penetrando,
Me lavou das nódoas dos vinhos tintos e dos vomitados,
Leme e arpéu dispersando.

E desde então banhei-me no Poema
Do Mar, de astros penetrado e lactescente
Devorando os azuis verdes; onde, linha de flutuação pálida
E radiante, um afogado por vezes desce pensativamente;

Onde, tingindo de repente os azulados, delírios
E ritmos lentos sobre as rutilações do dia de calor,
Mais fortes que o álcool, mais vastos que as vossas liras
Fermentam as amargas manchas ruivas do amor!

Eu sei os céus estalando em relâmpagos, e as trombas
E as ressacas e as correntes: eu sei a noite,
O Alvorecer a elevar-se como um bando de pombas
E vi muitas vezes o que o homem julgou ver.

Vi o sol baixo, manchado de místicos horrores,
Iluminando longas coagulações violetas,
Semelhantes a actores de dramas muito antigos
As ondas rolando ao longe calafrios sobre os postigos!

Eu sonhei a noite verde de neves deslumbradas
Beijos subindo em lentidões aos olhos dos mares,
A circulação das seivas inauditas,
E o despertar amarelo e azul dos fósforos cantores!

Segui, em meses plenos, semelhante às vacarias
Histéricas, a vaga no assalto aos recifes
Sem pensar que os pés luminosos das Marias
Pudessem forçar o bafo aos Oceanos arfantes.

Choquei, vede, contra incríveis Floridas
Misturando às flores olhos de panteras com peles
De homens! Arco-íris tensos como rédeas
A glaucos rebanhos, sob o horizonte dos mares!

Vi fermentar os pântanos, enormes nassas
Onde apodrece nos juncos todo um Leviatan (1) (
1-monstro bíblico).
Catadupas de águas, no meio das bonanças
E os longes para os abismos cataratando.

Glaciares, sóis de prata, ondas de nacre, céus em brasa
Encalhamentos odiosos no fundo dos golfos pardos
Onde as serpentes gigantes devoradas por percevejos
Caem das árvores torcidas, com perfumes negros.

Gostaria de mostrar às crianças estas douradas
Da onda azul, estes peixes de ouro, estes peixes cantantes.
- Espumas de flores embalaram as minhas partidas
E inefáveis ventosme impeliram por instantes.

Por vezes, mártir cansado dos pólos e das zonas
O mar cujo soluço tornava doce o meu vaivém,
Lançava para mim as suas flores de sombra de ventosas amarelas
E eu ficava, tal como uma mulher ajoelhada e sem ninguém,

Ilha flutuante, balançando na minha amurada as querelas
E os excrementos de aves de olhos louros vociferando,
E eu vogava, quando através dos meus nós frágeis
Afogados desciam para dormir, recuando.

Ora eu, barco perdido sob os cabelos das enseadas,
Lançado pelo furacão para o éter sem ave,
Eu cujos Monitores (1) e os veleiros das Hansas(2) (
1-barcos guarda-costas; 2- Ligas de cidades
Não teriam repescado a carcassa ébria de água;
marítimas na Idade Média)

Livre, fumegante, equipado por brumas violeta
Eu que furava o céu flamejante como um muro,
Que leva, festim delicado para os bons poetas,
Líquenes de sol e ranhos de azul,

Que corria, manchado de lúnulas eléctricas,
Prancha louca, por hipocampos negros escoltada,
Quando os julhos faziam aluir à cacetada
Os céus de azul marinho para os ardentes funis;

Eu que tremia, sentindo gemer a cinquenta léguas
O cio dos Behemots (1) e os Maelstroms(2) espessos,
(1-Monstro bíblico; 2-turbilhões)
Fiador eterno das imobilidades azuis,
Eu sinto saudades da Europa dos antigos parapeitos!

Eu vi arquipélagos siderais! E ilhas
Cujos céus delirantes são abertos ao vogador:
- É nestas noites sem fundo que tu dormes e te exilas,
Milhão de pássaros de oiro, ó futuro Vigor?

Mas, verdade, eu chorei demais! As Alvoradas são enervantes
Toda a lua é atroz e todo o sol amargo:
O ácido amor inchou-me de torpores inebriantes.
Oh! Como a minha quilha estala! Oh! Que eu vá para o mar!

Se desejo uma água da Europa é o charco
Negro e frio onde ao crepúsculo perfumado
Um menino cheio de tristezas, larga, acocorado,
Um barco frágil como uma borboleta de maio.

Eu não posso mais, banhado com a vossa languidez, ó ondas
Seguir o seu rasto aos portadores de algodões,
Nem atravessar o orgulho das bandeiras e das chamas
Nem nadar sob os olhos horríveis dos pontões (1)!
(1-velhos navios ancorados num porto: navegar de porto em porto, como um navio costeiro)

Contra o que sugere, pois, François Musseau, a imagem do barco ébrio e do ministro encalhado até nos vem honrar. É certo que com tanta viagem, a lembrar a do nosso Gama que também descreve trombas marítimas, fogos de santelmo, costumes e violências dos povos percorridos, o barco aventureiro até chegou ao fim cansado, o que não aconteceu com o nosso Gama e os seus nautas que tiveram recompensa farta, no seu regresso, ao encalharem na ínsua de Vénus. E o nosso PM não parece tão encalhado assim, na força do seu discurso altissonante.
Além disso, o nosso Portugal e seu timoneiro, terão sempre a recompensa de serem ilustres, porque citados. No Libération, pelo menos. E poderão dizer, no final do seu percurso, que tiveram um fartote de viagens e maravilhas nestes últimos tempos. Um para desenvolver o país, com os empresários que leva nelas. O outro, para ser desenvolvido. Não tem razão, pois, François Musseau.

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