(Resposta ao texto “Septuageneidade” de Edmundo dos Santos Figueiredo)
Começo por agradecer as palavras de apoio, referentes ao texto “A Cama”. E por referir, também com gratidão, a elevação do pensamento, acompanhando a elegância de forma do seu texto.
Mas o meu texto simples não enveredava por esses caminhos da eutanásia que Edmundo Figueiredo extrapolou do meu texto. Creio que se circunscrevia ao problema da prisão que a doença ou a idade trazem no percurso da vida, bichos que somos, debatendo-nos nas malhas da impotência. Para além, é claro, do amor pelo ser que nos deu o ser, que não está ainda preparado para o perder, mau grado as idades respectivas da mãe e da filha, que na juventude se admite levianamente como suficientemente recuadas e inúteis já, para se aceitar facilmente o seu termo.
Mas o medo da morte preside ainda no cérebro da minha Mãe – eu quando penso na minha é com saudade pelos meus, que iria deixar, não com aquele apego que sinto enraizado na mulher de fibra que sempre foi minha Mãe. E quando agradeceu deslumbrada o êxito da sua operação – “A Ciência está tão evoluída! Eu não senti nada!” – apercebi-me melhor dos seus terrores antes dela, julgando que não sobreviveria. E agora que a ultrapassou, continua voluntariosa, abusando egoisticamente dos que a tratam, exigindo protecção reiterada, embora vá considerando que é tempo de partir, em humilde chantagem para merecer a graça divina da não anuência a tal decreto, do que por honesta convicção da sua veracidade. Aliás, toda a sua vida última, desde que atingiu o centenário, tem girado à volta do seu medo e da sua exigência de atenção para consigo, numa esperteza egoísta que nos enfurece e simultaneamente nos faz rir, pelas suas capacidades de comando inalteráveis.
Daí que nunca a ideia da eutanásia me ocorreria, por respeito pela vida, por amor também, por muito que a degradação atinja o homem na ratoeira do destino.
Admito opiniões diferentes, como admito o suicídio, admito a liberdade de opção de cada um, admiro a coragem que tais opções fazem pressupor, mas talvez porque não sofri ainda tanto que me levasse a um acto tão consciente ou tão tresloucado, eu creio que jamais optaria por tal gesto de valentia. Será por atavismo, também, no respeito por uma religião que não pratico, mas na qual fui criada e me fala no pecado de atentar contra a vida.
Mas, por simpatia para com Edmundo dos Santos Figueiredo, talvez ainda menos septuagenário do que eu própria, transcrevo para ele um texto sobre a liberdade da opção final que nos anos setenta escrevi, e que está contido no livro “Pedras de Sal” de 1974, em 2ª edição no livro “Cravos Roxos”, de 1981.
Dedico-o, igualmente, à minha colega e de longo tempo amiga, Fernanda Sá Pires, mulher franca e sem papas na língua, Viscondessa de um Vale qualquer, pelas suas palavras de apreço, que não posso deixar de agradecer. Servirá para desanuviar, com um humor mais alegre do que o de agora, porque mais felizes então – por sermos jovens, talvez, ou por não sabermos ainda o mundo que nos esperava:
“A ESTAÇÂO DE EMBARQUE”
«As ocorrências de grande repercussão dramática sobre a cidade transmitem-se aos nervos das pessoas sensíveis ao dramatismo das ocorrências. Por isso, como pessoas sensíveis, temos discutido com animação um desses acontecimentos últimos.
A Flávia, moça de carácter recto, condena os suicídios espectaculares na via pública, com consequências psicológicas sobre as almas infantis e até cardiológicas sobre os adultos desprevenidos e horrorizados.
A Telma, sempre reflectida e metódica e ressentindo-se além disso de vagas influências chaplinescas e leituras eutanásicas, dispõe que a melhor maneira de se embarcar para o porto sem regresso é a botija de gás aberta sobre o corpo adormecido a comprimidos.
A entusiástica Joaninha acha muito românticas as mortes à Werther, com a bala misericordiosa após a despedida desesperada à digníssima Carlota.
Cá por mim não pensara no caso, achando que cada pessoa tem o direito de escolher a sua morte, já que não teve o direito de escolher o seu acto de viver.
A Sócrates foi imposta a morte e portou-se tão impassivelmente que para sempre ficou recordado pelo seu estoicismo final. É natural que ainda hoje tenha adeptos, os quais desejem tornar-se gloriosos também pela sua morte, forma de realização que não possuíram talvez em vida. Todos sabemos, de resto, que basta morrermos para sermos descritos em termos muito louváveis e imortalizantes, pois só na sepultura deixamos de causar preocupações, ou de fazer sombra.
Por isso, se desejarmos embarcar desta para a melhor, num curto voo estatelante, ou com o gás misericordioso ou a pistola romântica, ninguém precisa de se preocupar muito com isso. Com efeito, há imensos que para lá embarcam sem ser de livre vontade e possivelmente até deixando atrás de si um cortejo de saudades mais reais e mais discretas.»
Começo por agradecer as palavras de apoio, referentes ao texto “A Cama”. E por referir, também com gratidão, a elevação do pensamento, acompanhando a elegância de forma do seu texto.
Mas o meu texto simples não enveredava por esses caminhos da eutanásia que Edmundo Figueiredo extrapolou do meu texto. Creio que se circunscrevia ao problema da prisão que a doença ou a idade trazem no percurso da vida, bichos que somos, debatendo-nos nas malhas da impotência. Para além, é claro, do amor pelo ser que nos deu o ser, que não está ainda preparado para o perder, mau grado as idades respectivas da mãe e da filha, que na juventude se admite levianamente como suficientemente recuadas e inúteis já, para se aceitar facilmente o seu termo.
Mas o medo da morte preside ainda no cérebro da minha Mãe – eu quando penso na minha é com saudade pelos meus, que iria deixar, não com aquele apego que sinto enraizado na mulher de fibra que sempre foi minha Mãe. E quando agradeceu deslumbrada o êxito da sua operação – “A Ciência está tão evoluída! Eu não senti nada!” – apercebi-me melhor dos seus terrores antes dela, julgando que não sobreviveria. E agora que a ultrapassou, continua voluntariosa, abusando egoisticamente dos que a tratam, exigindo protecção reiterada, embora vá considerando que é tempo de partir, em humilde chantagem para merecer a graça divina da não anuência a tal decreto, do que por honesta convicção da sua veracidade. Aliás, toda a sua vida última, desde que atingiu o centenário, tem girado à volta do seu medo e da sua exigência de atenção para consigo, numa esperteza egoísta que nos enfurece e simultaneamente nos faz rir, pelas suas capacidades de comando inalteráveis.
Daí que nunca a ideia da eutanásia me ocorreria, por respeito pela vida, por amor também, por muito que a degradação atinja o homem na ratoeira do destino.
Admito opiniões diferentes, como admito o suicídio, admito a liberdade de opção de cada um, admiro a coragem que tais opções fazem pressupor, mas talvez porque não sofri ainda tanto que me levasse a um acto tão consciente ou tão tresloucado, eu creio que jamais optaria por tal gesto de valentia. Será por atavismo, também, no respeito por uma religião que não pratico, mas na qual fui criada e me fala no pecado de atentar contra a vida.
Mas, por simpatia para com Edmundo dos Santos Figueiredo, talvez ainda menos septuagenário do que eu própria, transcrevo para ele um texto sobre a liberdade da opção final que nos anos setenta escrevi, e que está contido no livro “Pedras de Sal” de 1974, em 2ª edição no livro “Cravos Roxos”, de 1981.
Dedico-o, igualmente, à minha colega e de longo tempo amiga, Fernanda Sá Pires, mulher franca e sem papas na língua, Viscondessa de um Vale qualquer, pelas suas palavras de apreço, que não posso deixar de agradecer. Servirá para desanuviar, com um humor mais alegre do que o de agora, porque mais felizes então – por sermos jovens, talvez, ou por não sabermos ainda o mundo que nos esperava:
“A ESTAÇÂO DE EMBARQUE”
«As ocorrências de grande repercussão dramática sobre a cidade transmitem-se aos nervos das pessoas sensíveis ao dramatismo das ocorrências. Por isso, como pessoas sensíveis, temos discutido com animação um desses acontecimentos últimos.
A Flávia, moça de carácter recto, condena os suicídios espectaculares na via pública, com consequências psicológicas sobre as almas infantis e até cardiológicas sobre os adultos desprevenidos e horrorizados.
A Telma, sempre reflectida e metódica e ressentindo-se além disso de vagas influências chaplinescas e leituras eutanásicas, dispõe que a melhor maneira de se embarcar para o porto sem regresso é a botija de gás aberta sobre o corpo adormecido a comprimidos.
A entusiástica Joaninha acha muito românticas as mortes à Werther, com a bala misericordiosa após a despedida desesperada à digníssima Carlota.
Cá por mim não pensara no caso, achando que cada pessoa tem o direito de escolher a sua morte, já que não teve o direito de escolher o seu acto de viver.
A Sócrates foi imposta a morte e portou-se tão impassivelmente que para sempre ficou recordado pelo seu estoicismo final. É natural que ainda hoje tenha adeptos, os quais desejem tornar-se gloriosos também pela sua morte, forma de realização que não possuíram talvez em vida. Todos sabemos, de resto, que basta morrermos para sermos descritos em termos muito louváveis e imortalizantes, pois só na sepultura deixamos de causar preocupações, ou de fazer sombra.
Por isso, se desejarmos embarcar desta para a melhor, num curto voo estatelante, ou com o gás misericordioso ou a pistola romântica, ninguém precisa de se preocupar muito com isso. Com efeito, há imensos que para lá embarcam sem ser de livre vontade e possivelmente até deixando atrás de si um cortejo de saudades mais reais e mais discretas.»
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