Hoje, Dia do Pai, decidi transcrever uns textos sobre dois pais – o meu e o de dois dos meus filhos, o primeiro, extraído de “Melodias do Passado”, publicado pela “SINAPSES”, na Internet, em 2007, o segundo, contido no livro “Anuário – Memórias Soltas”, publicado em 1999 pela Editorial Minerva.
Com eles pretendo mostrar que a sociedade em que hoje nos integramos não é melhor nem pior do que aquela em que sempre vivemos – sociedade injusta, de artifício, de benesses a quem saiba merecê-las, junto de quem pode fornecê-las.
Mas sempre vivemos. Não somos piores. Somos iguais. Só que dantes, a disciplina era maior, a perversão mais refinada, o autoritarismo mais absoluto. Hoje em dia, na indisciplina que reina, a estocada pode ser devolvida através da denúncia mediática, por inútil que seja, o poder bem seguro na devoção geral da Nação, que facilmente aceita os desmandos governativos, ilibatórios da sua própria corrupção, ou deles podendo vir a beneficiar.
Porque nos estamos a tornar um povo sem princípios, a mocidade que educamos – tirando os casos da excepção – leva-nos a profetizar uma progressiva dissolução, nas aptidões, nos costumes. Como o Império Romano da decadência, talvez que precisemos de sangue novo dos bárbaros para nos reerguermos do chão.
Eis os excertos do primeiro livro citado:
“(...) Enquanto estivera na tropa, em Macau, o meu pai estudara e fizera o segundo ano do liceu – que nessa altura incluía literatura e noções de latim e agora cada vez mais se limita a simples noções apoiadas em muita banda desenhada para estimular os raciocínios das crianças. Interrompeu o curso graças à discrepância de um superior – um sargento – para quem os versos de Camões “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” não faziam sentido, deslumbrado apenas com o irresistível fulgor da espada, mesmo em tempo de paz, mas sobretudo avesso a saídas nocturnas para frequência de aulas, de possíveis competidores futuros nos quadros do exército ou até mesmo em algum curso superior que meu pai gostaria e talvez pudesse ter seguido, conforme lhe ouvi contar, não foram as contingências portuguesas dos autoritarismos opressores específicos da nossa mentalidade de longa data tacanha e mesquinha. Desistiu do curso, mas não interrompeu o seu jeito para a meditação e o autodidactismo que sempre lhe conheci, a par dos ombros um pouco curvos de pessoa modesta, incapaz de singrar na vida por meio de atropelos ou influências alheias ao seu próprio mérito. (...)”
“(...)Por alturas do meu segundo ano, deu-se um incidente importante na sua vida de funcionário. Um desentendimento com o seu director levou-o a ter de responder em processo, que ganhou, porque inegavelmente a razão lhe pertencia. Pôde, entretanto, adquirir mais amplos conhecimentos humanos, através da debandada de alguns colegas previdentes, postos do lado do partido superior contra ele. Lembro-me da sua indignação e também do extenso interrogatório a que respondeu no Esquadrão, sem o auxílio de nenhum advogado, porque a sua probidade advogou, melhor do que ninguém, com grande espanto do seu cepticismo, a causa que defendia. Julgo, todavia, que as respostas do meu pai - que chegámos a conhecer porque nos fez ditar-lhas, para uma cópia pessoal, nas tardes de Sábado, em que (com quanta impaciência delicadamente contida!) tivemos que suspender as brincadeiras por detrás da nossa casa - apresentavam a lucidez e clareza que sempre lhe conheci e lhe valeram a vitória no processo.
Como consequência, porém, da incompatibilidade surgida, foi transferido para Quelimane, a fim de se especializar no conceito de que os poderosos possuem sempre na mão a vara condutora dos seus interesses e respeitabilidade. (...)”
Eis o segundo texto: “História Curta”
«Órfão de pai aos nove anos, numa família de mãe e mais quatro irmãs, trabalhou cedo para ajudar. Numa aldeia portuguesa. Era brioso e cumpridor, era estimado. Serviu a pátria, fez a guerra em Angola, trabalhara em Moçambique desde os catorze. E estudou. À noite. Casou, dois filhos, curso técnico, universidade, retorno à pátria com a descolonização.
Por concurso, entrou em empresa poderosa. Trabalhou sem faltas, sem truques de atestados médicos para melhor preparação para os exames do Técnico. A empresa estava acima de tudo, o curso podia arrastar-se. Formou-se tarde. Engenheiro civil, quarenta e sete anos.
A empresa abriu concurso para colocar engenheiros. Mas preteriu os seus próprios técnicos de curso recente e idade madura, para exigir técnicos jovens, apoiados em boas notas, apoiados em bons empenhos.
Honestidade, zelo, competência, a empresa ignorou tudo isso. Só queria técnicos jovens. Os técnicos de formação recente e idade madura não eram precisos. Continuariam nas suas funções de funcionários zelosos e competentes. Amadureceram a zelar pela empresa, envelheceriam continuando a zelar.
A oportunidade de aplicar os seus conhecimentos foi-lhe negada. Quarenta e sete anos. Uma vida de trabalho e de estudo arrastado. Acima de tudo contara a empresa.
Mas a empresa ignorou o zelo, a empresa não deu oportunidade. Quarenta e sete anos. Mangas de alpaca.»
Com eles pretendo mostrar que a sociedade em que hoje nos integramos não é melhor nem pior do que aquela em que sempre vivemos – sociedade injusta, de artifício, de benesses a quem saiba merecê-las, junto de quem pode fornecê-las.
Mas sempre vivemos. Não somos piores. Somos iguais. Só que dantes, a disciplina era maior, a perversão mais refinada, o autoritarismo mais absoluto. Hoje em dia, na indisciplina que reina, a estocada pode ser devolvida através da denúncia mediática, por inútil que seja, o poder bem seguro na devoção geral da Nação, que facilmente aceita os desmandos governativos, ilibatórios da sua própria corrupção, ou deles podendo vir a beneficiar.
Porque nos estamos a tornar um povo sem princípios, a mocidade que educamos – tirando os casos da excepção – leva-nos a profetizar uma progressiva dissolução, nas aptidões, nos costumes. Como o Império Romano da decadência, talvez que precisemos de sangue novo dos bárbaros para nos reerguermos do chão.
Eis os excertos do primeiro livro citado:
“(...) Enquanto estivera na tropa, em Macau, o meu pai estudara e fizera o segundo ano do liceu – que nessa altura incluía literatura e noções de latim e agora cada vez mais se limita a simples noções apoiadas em muita banda desenhada para estimular os raciocínios das crianças. Interrompeu o curso graças à discrepância de um superior – um sargento – para quem os versos de Camões “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” não faziam sentido, deslumbrado apenas com o irresistível fulgor da espada, mesmo em tempo de paz, mas sobretudo avesso a saídas nocturnas para frequência de aulas, de possíveis competidores futuros nos quadros do exército ou até mesmo em algum curso superior que meu pai gostaria e talvez pudesse ter seguido, conforme lhe ouvi contar, não foram as contingências portuguesas dos autoritarismos opressores específicos da nossa mentalidade de longa data tacanha e mesquinha. Desistiu do curso, mas não interrompeu o seu jeito para a meditação e o autodidactismo que sempre lhe conheci, a par dos ombros um pouco curvos de pessoa modesta, incapaz de singrar na vida por meio de atropelos ou influências alheias ao seu próprio mérito. (...)”
“(...)Por alturas do meu segundo ano, deu-se um incidente importante na sua vida de funcionário. Um desentendimento com o seu director levou-o a ter de responder em processo, que ganhou, porque inegavelmente a razão lhe pertencia. Pôde, entretanto, adquirir mais amplos conhecimentos humanos, através da debandada de alguns colegas previdentes, postos do lado do partido superior contra ele. Lembro-me da sua indignação e também do extenso interrogatório a que respondeu no Esquadrão, sem o auxílio de nenhum advogado, porque a sua probidade advogou, melhor do que ninguém, com grande espanto do seu cepticismo, a causa que defendia. Julgo, todavia, que as respostas do meu pai - que chegámos a conhecer porque nos fez ditar-lhas, para uma cópia pessoal, nas tardes de Sábado, em que (com quanta impaciência delicadamente contida!) tivemos que suspender as brincadeiras por detrás da nossa casa - apresentavam a lucidez e clareza que sempre lhe conheci e lhe valeram a vitória no processo.
Como consequência, porém, da incompatibilidade surgida, foi transferido para Quelimane, a fim de se especializar no conceito de que os poderosos possuem sempre na mão a vara condutora dos seus interesses e respeitabilidade. (...)”
Eis o segundo texto: “História Curta”
«Órfão de pai aos nove anos, numa família de mãe e mais quatro irmãs, trabalhou cedo para ajudar. Numa aldeia portuguesa. Era brioso e cumpridor, era estimado. Serviu a pátria, fez a guerra em Angola, trabalhara em Moçambique desde os catorze. E estudou. À noite. Casou, dois filhos, curso técnico, universidade, retorno à pátria com a descolonização.
Por concurso, entrou em empresa poderosa. Trabalhou sem faltas, sem truques de atestados médicos para melhor preparação para os exames do Técnico. A empresa estava acima de tudo, o curso podia arrastar-se. Formou-se tarde. Engenheiro civil, quarenta e sete anos.
A empresa abriu concurso para colocar engenheiros. Mas preteriu os seus próprios técnicos de curso recente e idade madura, para exigir técnicos jovens, apoiados em boas notas, apoiados em bons empenhos.
Honestidade, zelo, competência, a empresa ignorou tudo isso. Só queria técnicos jovens. Os técnicos de formação recente e idade madura não eram precisos. Continuariam nas suas funções de funcionários zelosos e competentes. Amadureceram a zelar pela empresa, envelheceriam continuando a zelar.
A oportunidade de aplicar os seus conhecimentos foi-lhe negada. Quarenta e sete anos. Uma vida de trabalho e de estudo arrastado. Acima de tudo contara a empresa.
Mas a empresa ignorou o zelo, a empresa não deu oportunidade. Quarenta e sete anos. Mangas de alpaca.»
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