quinta-feira, 11 de março de 2010

A cama

Foi uma cama bonita, que há uns anos, quando a minha Mãe passou uns tempos cá em casa, comprei para ela, atida ao preceito de que a minha Mãe gosta de se estender, às vezes no sentido do comprimento, outras no da largura, ou até na diagonal. As camas cá de casa, tirando a nossa, eram de solteiro, das crianças, enquanto não desertaram. Quando a minha Mãe veio definitivamente para cá, há uma dúzia de anos, ainda dormiu numa dessas, mas, logo que pude, comprei-lhe uma bonita, de madeira, com cabeceira e pés ondeados e quatro esferas da mesma madeira nas pontas. Quando regressou à sua casa, ofereci-lhe a cama, para as visitas.
Mas os noventa anos trouxeram a minha Mãe de volta, e passou a dormir numa cama de madeira prensada, dum conjunto de mobília de quarto com que eu presenteara um filho independente que, ao casar, o devolveu. De facto, nunca gostei dessa cama, dura e pesada, mas a minha Mãe não se importava e nela foi envelhecendo mais.
Quando partiu o colo do fémur, por se ter apoiado a uma porta que julgava fechada e cedeu, decidi trazer a cama bonita de casa dela, para a instalar cá em baixo, no escritório, e não ter que subir as escadas para o seu quarto do primeiro andar, tais como os restantes.
Trouxe do quarto dela um armário condizente, para as suas roupas, o quarto ficou um primor, com vasos, fotos, quadros, os livros na estante do anteriormente escritório, um maple e as almofadas. E o rosário – aliás, terço – também em madeira, pendurado a um dos lados da cabeceira da cama, e que adquirira a uma qualquer missão interessada em difundir missal e terço, em troca da espórtula conveniente, que tudo neste mundo se esportula, até mesmo os terços. A minha Mãe não teria grades na cama bonita, poderia deitar-se na vertical na horizontal, na diagonal, como quisesse, se pudesse.
É claro que a minha irmã censurou a pressa e a anjice na colocação de tal cama. A uma pessoa que ficaria acamada, convinha uma cama articulada e as respectivas grades. A minha Mãe teria que se habituar às grades.
No Hospital, ela provou que a sujeição à cadeira de rodas e à cama de grades ultrapassavam o seu entendimento e que os seus jeitos desesperados de libertação, para a solução do seu problema intestinal, no sítio certo e não em fraldas dela desconhecidas, provocavam animosidade em quem tinha que a atender, nem sempre respeitando a idade de todas as liberdades, numa nova infância apelativa de ternura e não de tanta impaciência. Como ela sempre disse, nos seus complexos de mulher que se recusa ao fim da vida, os velhos “cheiram mal”. Não sei onde foi buscar isso, mas tem razão. E não são só os velhos que incomodam. São todas as situações de fragilidade, e sobretudo na doença, que a vulgarização nos hospitais banaliza, sobretudo nas suas enfermarias, pois que os quartos particulares merecem o estatuto da respeitabilidade e atenção adequadas. O meu filho mais velho, sensível à morte do seu Pai, considerou há dias quanto a morte eminente reduz o homem, até – e sobretudo – junto daqueles que têm o poder de manipular os derradeiros momentos das vidas que a sua função obriga a limpar e alimentar e tratar e que muitas vezes abusam grotescamente desse poder. Já o afirmei, em relação ao meu Pai, que não teve a assistência tão contínua como a minha Mãe, no Hospital onde morreu, não só porque havia as condicionantes das horas das visitas, mas porque havia as condicionantes dos horários de trabalho.
Veio a minha Mãe para casa, para o seu quarto novo, para a bonita cama da sua liberdade, em que nem sequer reparou. O primeiro dia foi de apelo constante, impondo movimentação contínua. Veio o médico no segundo dia, que receitou também para as dores e para o sono. Dormiu melhor, mas acordou várias vezes para ser limpa das fezes do seu cativeiro. Mas as aflições de obstipação não aceitam – tal como já no Hospital – o uso da fralda protectora. A casa de banho é o lugar da sua fixação. Ou o bacio. E ontem, pelas onze da noite, ao deixar-me adormecer do rodopio da véspera, no sofá, acordei em sobressalto, ouvindo uns ruídos esquisitos. Corri imediatamente ao quarto improvisado: a minha Mãe gozava a sua liberdade no meio das muitas mantas em que se enrodilhara, tendo-as puxado para o chão, para onde descera, sem gritos, por isso julgo que com todas as cautelas da sua esperteza, de mulher que na juventude plantara, ceifara, carregara à cabeça pesadas cestas. E aprendera também a nadar no rio da terra, experiências que lhe cimentaram o carácter voluntarioso.
O certo é que se apeara da cama, caladinha que nem um rato, quando, geralmente, com assistência, se rebela com os gemidos e gritos do seu mimo. Quis procurar a sanita, ou o bacio, mas a incapacidade não a deixou avançar. O meu marido desceu ao meu apelo petrificado, chamámos os filhos e genros, que num instante compareceram, apesar da distância.
Entretanto, o meu marido lembrou que era melhor a minha Mãe dormir no colchão, no chão. Vá de retirar as partes da bonita cama, a cabeceira e os pés com as esferas de madeira, que eram a minha vaidade. Ficou no colchão, a minha Mãe. Mas de manhã tinha já a perna sã de fora, para disparar à procura do bacio.
A cama de grades vem aí, desfeita a ilusão da liberdade proporcionada pela bonita cama da minha ternura. A idade não ajuda à recuperação, apesar da fisioterapia. Nunca mais a minha Mãe se deitará livremente, segundo o comprimento, ou a largura, ou na diagonal da cama.
Mas as grades para a cama articulada terão que ser suficientemente altas, caso contrário, voltará a cair, na busca do seu conforto, e na linha da sua teimosia voluntariosa e dominadora, que a impotência conduzirá gradativamente à perda da razão. Quanto eu desejaria não ter razão, na minha profecia angustiada!

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