segunda-feira, 15 de março de 2010

O trânsito

O Dr. Salles Da Fonseca enviou-me o seguinte email, a propósito do texto “A Cama” que as provas de apreço que me tem manifestado e o meu reconhecimento da sua “fundura” humana, como patriota e “chevalier sans peur” e provavelmente “sans reproche” também, me fizeram remeter-lho.
«As pessoas ficam teimosas quando chegam a idades avançadas ou chegam a idades avançadas porque são determinadas?
Creio que é a segunda versão a dona da verdade. Só quem sabe o que quer é que assume atitudes de mando como essas que descreve tão bem no seu texto. O nosso problema - dos assistentes - é que esses nossos queridos velhotes já não têm condição física para o exercício do mando e somos nós que temos que executar o que eles determinam.
Sempre entendi que essa atitude não é de egoismo, pieguice ou qualquer outra fórmula de menoridade mas sim da tal férrea determinação que os fez chegar a tão longevos.
São fantásticos, estes nossos velhotes...
Assim consigamos um dia estar à altura deles.»
É bem reflectido este seu ponto de vista, prova de sábias certezas de caminheiro da vida. E na continuação do meu retrato de admiração pela minha Mãe, que, reduzida a uma condição de diminuição física, se revelou tão forte ainda, quer nos seus gritos, quer nos seus gemidos, quer na sua ladainha de afirmação de presença, quer em gestos inesperados da sua ânsia de libertação dos seus incómodos.
E nós censurávamos o seu egoísmo que fez algumas noites – de dia estava mais acompanhada por nós – as enfermeiras levarem-na para outro quarto, para não incomodar os outros doentes. Mostrávamos-lhe as outras senhoras também operadas, mais contidas nas suas manifestações. Mas a minha Mãe, de cabeça perdida, só queria um bacio que a fizesse soltar os gases do seu problema fecal.
Veio para casa e tudo fizemos para lhe diminuir o sofrimento. Sumos de laranja e de limão com água e açúcar, azeite na barriga, microlax, laevolac da receita médica, as primeiras noites foram de tormenta, e grande era a nossa alegria quando conseguíamos obter algum resultado. Mas aos êxitos iniciais seguiu-se a fase das bolas, duras bolas que se alojavam no ânus e a faziam gritar de dores. Expus o caso a uma naturista, vendeu-me um produto de frutos e fibras. Foi a salvação. Na primeira noite, após o primeiro comprimido – anteontem – chamou, ensonada, já sem gritos. Tinha a fralda não com bolas mas com fezes que tinham escorrido sem dor. Dormiu a noite inteira, esgotada pelo dia trágico de apelo pelo bacio, pela sanita do seu único reconhecimento, na contínua constatação da sua inferioridade de dependência, no seu pudor envergonhado de quem nunca se vira em tais assados: “Ao que a gente chega!”. Eu também ferrei num sono feliz, ao pensar que o seu problema estava resolvido graças ao “Frutos & Fibras” da ORTIS, que "favorece um trânsito intestinal natural”. Quando, na manhã seguinte, meio ensonada, acudi ao seu apelo, pisei um monte desse “trânsito” de que me não apercebera, no chão, sob as grades. Antes mesmo de acudir à minha Mãe, tratei de lavar o chinelo e o chão, pensando que, tal como nas noites anteriores em que se deslocara sozinha para fora do colchão, obstinada na ânsia de resolver o seu problema fecal, agora, na cama de grades, impossibilitada de fazer o mesmo, despejara a fralda que arrancara, no chão, sozinha, sem gritos, e só depois chamara. Tratei de a limpar e, com o auxílio do meu marido, repusemo-la na posição normal, esperando que alguém acudiria para a mudar mais tarde. E dormiu. Mas continuou a defecar, numa quantidade que me deslumbrou, lançando de si as fezes armazenadas de anos, se é possível. Tomou quatro comprimidos, ao todo. Vou suspender o “tratamento”, pois ainda esta noite lhe mudei a fralda três vezes e continua a pedir que a leve à casa de banho, ou ao bacio. Ei-la que me chama. Quer o bacio.
A minha amiga acha que eu não devia contar isto, a minha Mãe não gostaria que falasse dela, a contar destas mazelas íntimas. Outros o acharão também. Mas a minha Mãe, para mim, é um símbolo. A forma desesperada de querer ser auto-suficiente, de não se sujeitar a estas misérias da incapacidade física, peixe ou fera ou outro qualquer outro bicho contorcionando-se nas malhas que o prenderam, superiorizam-na, pela não entrega, perante a ironia trágica do "Céu sereno".
Creio que este narrado vai ao encontro do lindo texto de Salles da Fonseca. Mas a “férrea determinação” da minha Mãe encontramo-la hoje, na mesma, nos jovens que pretendem ir longe nos seus destinos, nos mais velhos que pretendem consolidar os seus.
Outros destinos se preparam, em termos pessoais, entre nós. Porque os destinos da Nação estão há muito consolidados. Na indiferença acéfala dos que a governam e dos que a querem governar a seguir. No “trânsito” nacional, causado pelo “trânsito” pessoal que vai sendo fabricado ao sabor das ambições, no desprezo pelo espaço que nos abriga, no desrespeito pelos que aí vivem, sempre em questiúnculas de mando, em arremetidas às cegas à sacola do poder, mesmo sabendo quanto esse poder é irrisório, porque já nem nos pertencerá qualquer dia a parcela de terreno em que vivemos. Mas a férrea determinação está bem visível, quer nos que governam, quer nos que se propõem governar a seguir, supondo que lhes chegou a vez de esfacelar mais um pouco, em seu proveito.
A “férrea determinação” da minha Mãe resulta do pudor de quem não deseja expor as próprias mazelas, porque criada no preconceito do corpo mostrável. A daqueles que se agitam para o “osso” é desprovida desse sentimento.

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