Andamos todos excessivamente refilões,
Cheios de acusações
Contra as imposições
Do nosso Governo socrático
De percucientes e ferinas intenções,
Que a cada passo pretende limitar
As nossas vidas ao estritamente prático
Ou seja, às exigências
De vivermos parcimoniosamente
A fim de cordialmente
Participarmos na salvação da Nação
Que ele tanto contribuiu para perder,
E que está cada vez mais imprestável,
Segundo as condições requeridas
Pelos emprestadores financeiros
Que são alguns dos povos estrangeiros,
Trabalhadores encartados
Para viverem bem e ainda por cima ajudarem
Os deficitários como nós, que arrecadamos
Parcelarmente
Segundo as conveniências
Dos espertalhotes
Que tudo querem para eles e só eles
E nada para nós, os pequenotes.
É por isso que estamos todos fartos
De salvar a pátria e não é só o Henrique Monteiro
Que impertinentemente
Faz o historial dos seus pagamentos
Dos vencimentos
Ao longo dos governos tontos
Que foram os antecedentes
E é também o presente
Do nosso Sócrates inclemente
Sem termos escapatória,
Na nossa secular história.
Por isso, para livrar
Henrique Monteiro da sua insatisfação
Dir-lhe-ei que o dinheiro
Não faz a felicidade de ninguém
De bem,
O que é comum dizer-se.
O próprio La Fontaine o disse
Em “O Sapateiro remendão e o Financeiro espertalhão”,
Embora não seja essa a opinião,
Pelo menos em relação a si mesmos,
Dos nossos espertalhotes de ocasião
Cada vez mais abundantes e indiferentes
Aos Henriques Monteiros da nação:
“Um Sapateiro remendão
Cantava de manhã à noite e mesmo ao serão;
Era maravilha vê-lo
E ouvi-lo.
Ele remendava, remendava,
E enquanto assim fazia escancarava
Os lábios
Mais contente que nenhum dos sete Sábios.
O seu vizinho, pelo contrário, cosido em ouro,
Cantava pouco, e dormia menos ainda;
Era um homem de finança infinda.
Se ao amanhecer por vezes dormitava
Cantando, o Sapateiro, o acordava;
E o Financeiro vá de se planger
Por a Providência cautelosa
Não vender na praça o dormir,
Tal como o comer e o beber.
Ao seu hotel o cantor mandou chamar
E disse-lhe: -“Ora pois, senhor Gregório,
Quanto ganha você por ano?”
- “ Em boa fé, Senhor, por ano,
Não é a forma do meu contar”
- Respondeu, num tom risonho,
O Sapateiro laracheiro – “Eu não junto
Dia a dia; basta que no fim
Eu apanhe a ponta do ano assim,
Cada dia traz o seu pão.”
- Quanto ganha por dia então?”
- Ora mais, ora menos: o mal é, por minha fé,
Que dias há
(E sem isso os nossos lucros seriam mais honestos
Quero dizer menos modestos)
Em que não se deve trabalhar.
As festas são ruinosas,
Prejudicam o trabalho, e o padre cura
Carrega a sua prédica a cada momento
Com um novo santo”.
O Financeiro rindo-se da ingenuidade
Disse-lhe: “Eu quero pô-lo hoje num trono;
Tome estes cem escudos. Guarde-os com cuidado
Para deles se servir, em caso de necessidade.”
O Sapateiro julgou ver primeiro
Todo o dinheiro que a Terra produzira
Há mais de cem anos para a gente.
Para casa voltou, na cave o dinheiro enterrou
E a alegria com ele, consequentemente.
Foi-se a cantoria, a voz perdeu
No momento em que ganhou o causador das humanas penas.
O sono o deixou,
Teve por hóspedes as preocupações
As suspeitas, os alarmes vãos, as inquietações,
Durante o dia sempre à coca dos ladrões
E de noite, ao menor miar do gato,
Era o gato o ladrão.
Por fim, o pobre Sapateiro
Correu a casa do Financeiro,
Que nunca mais acordara:
“- Devolva-me – disse-lhe – o sono e as cantigas
E tome os cem escudos de fadigas.”
Portanto, Henrique Monteiro,
Retome a sua alegria,
Desfaça-se do dinheiro
Que diz estar farto de usar
Para a Nação salvar.
Uma consciência clara
Não sobrecarregada
De finança
É a maior fiança
De tranquilidade,
Como bem mostrou
O Sapateiro gaiteiro,
Filósofo por necessidade,
Embora, é bem verdade,
Os tempos dele fossem diferentes,
Sem telemóveis nem automóveis
Nem outros móveis
E mesmo imóveis
- Sobretudo imóveis -
Tão importantes
Para as gentes...
terça-feira, 23 de março de 2010
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