Foi
um texto que escrevi aos trinta anos, encontrado entre os papéis salvos da
reciclagem. Admirava Camões, lera-lhe o teatro e espantava-me como nas escolas
os manuais de literatura não fornecessem sequer um cheirinho das suas qualidades
como dramaturgo, ou ao menos integrassem versos da sua dramaturgia –
essencialmente lírica e psicológica – entre os seus poemas líricos de estudo
obrigatório. Não é um estudo circunspecto, projectando o estudioso tanto quanto
a obra estudada. Trata-se de uma análise sem rebuscamentos, como narrativa
inspirada subjectivamente na admiração e no encantamento por um génio que nos
pertenceu, motivo do nosso amor e do nosso orgulho. E assim transcrevo o texto,
do blocozinho que com tanto gosto encontrei, (onde o Ricardo, com sete anos,
escreveu também uma carta ao vovô, datada de 65, e a Paulinha, com cinco,
escreveu pá, pé, pi, po, pu, umas contas de somar e também um desenho) Fiz,
naturalmente, alguns ajustamentos ao texto, para guardar no meu blog e reviver:
«Camões dramaturgo»
«…
Espírito verdadeiramente humanista, manejando com facilidade os clássicos
latinos, e capaz de abarcar todos os aspectos de uma cultura, quis Camões
ensaiar-se igualmente no género dramático, onde, se não atingiu as culminâncias
dos outros géneros literários a que se dedicou, não deixamos, em todo o caso,
de sentir bem presente a sua personalidade literária inconfundível.
São
três as comédias que escreveu. O “Auto dos Anfatriões” o “Auto de
El-Rei Seleuco” e o “Auto de Filodemo”. Se o primeiro é directamente
inspirado no “Amphytruo” plautino, e o segundo de um episódio narrado por
Plutarco na “Vida de Demétrio”, o “Auto de Filodemo” desliza no rasto do teatro
vicentino de carácter novelesco.Trata-se, pois, de um teatro romanesco, um teatro de Amor, de intriga resultante quer de equívoco – “Anfatriões”- quer de incesto – “El-Rei Seleuco” – quer de diferenciação social – “Filodemo”. Não é nele visível a crítica social que marcou o teatro vicentino - embora exista intenção crítica sobre a dialéctica amorosa - nem de profundidade caracterológica, como, um século depois, encontraremos na comédia molieresca em França.
Apesar dos temas clássicos de duas delas, e apesar dos novos ventos classicistas contrários ao uso da redondilha, como já Sá de Miranda e António Ferreira tinham salientado nas comédias em prosa, que escreveram, e na tragédia “Castro” do último, em decassílabo branco, é entre os cantares na medida velha que se incluem os autos camonianos, embora os dois últimos sejam entremeados de prosa e verso. E o lirismo das suas peças tem a mesma leveza e graciosidade e a mesma subtileza na análise do sentimento amoroso, que apresentam as suas cantigas à maneira tradicional. De facto, a essa característica psicológica se resumem, quase unicamente, os conceitos expressos, excluída a intenção de crítica social, embora não o cómico resultante das situações de quiproquó, já existentes na peça de Plauto.
De notar ainda a sua maior unidade em relação às peças de Gil Vicente, unidade proveniente do maior conhecimento que possuía Camões da estrutura das peças clássicas, conhecimento que escapava a Gil Vicente, mas também resultante dos temas de duas delas - de importação – “Anfatriões” e “El-Rei Seleuco” – e focando casos que tinham forçosamente que se deslindar dentro de um prazo limitado de tempo (um dia, segundo a regra clássica das três unidades –( o lugar era convencionalmente o mesmo e a acção sequente e coesa, segundo uma estrutura interna de Exposição, Conflito e Desenlace - a estrutura externa, de várias unidades sequenciais num único acto, como o próprio nome “auto” traduz). Em todo o caso, a unidade de acção não é absoluta, não só pelas cenas em prosa de função vária, mas pelos episódios secundários entre os servidores dos amos, desnecessários para o desenvolvimento da intriga central, embora se tornem natural fonte de cómico. Também no “Auto de Filodemo” não se observa a unidade de lugar, pelo posicionamento da acção em dois espaços.
«Auto dos Anfatriões»
Directamente
inspirado do “Amphytruo” de Plauto, o “Auto dos Anfatriões” expõe
um tema muito aproveitado pelos comediógrafos clássicos, ou mesmo contemporâneos
– Molière, Giraudoux… – ou a “ópera” jocosa do nosso Judeu, “Anfitrião” ou
“Júpiter e Alcmena”, do século XVIII. Também a peça “Um Deus dormiu lá em
casa” (1949) do escritor brasileiro Guilherme de Figueiredo se inspira no
tema, mas alterando jocosamente os dados.
A
intriga do auto fundamenta-se, como já na comédia plautina, em um equívoco
resultante das semelhanças de dois Anfitriões e de dois Sósias. Esse equívoco é
provocado pela paixão de Júpiter por Alcmena - fiel esposa de um general tebano,
ausente na guerra – o qual, industriado por Mercúrio, reveste os traços
daquele, enquanto, para maior mistificação, Mercúrio adquire os de Sósia,
criado de Anfitrião, igualmente na guerra.
É
evidente que tal dualidade se prestaria a forte manancial de gargalhadas
resultante da estupefacção das personagens reais, ignorantes do quiproquó,
sobretudo quando se defrontassem os criados ou mesmo os amos, ou quando se
pusessem os dois Anfitriões na presença de Alcmena, caso este que em Camões se
não observa.
Exposição:
Entra
em cena uma Alcmena enamorada, exprimindo as suas saudades do marido, numa
análise de finura psicológica e linguagem conceituosa, pelo paralelismo e o trocadilho:
“Ah! Senhor Anfitrião,
Onde está todo o meu bem!Pois meus olhos vos não vêem
Falarei com o coração
Que dentro n’alma vos tem.
Ausentes duas vontades,
Qual corre mores perigos,
Qual sofre mais crueldades:
Se vós entre os inimigos,
Se eu entre as saudades.
Que a Ventura que vos traz
Tão longe da vossa terra,
Tantos desconcertos faz,
Que se vos levou à guerra,
Não me quis deixar em paz.”
Um
Júpiter muito humano, preso de uma paixão terrena, exprime pateticamente a
insensatez dos seus amores, tão inferiores à sua dignidade de pai dos deuses,
enquanto ingenuamente observa a sua incompetência para quebrar a virtude de
Alcmena. A solução dá-lha o industrioso Mercúrio, por meio de um processo de
transformação fácil para o deus soberano: o de revestir as formas de Anfitrião
enquanto ele, Mercúrio, tomará as de Sósia. E o ardente namorado, pouco
escrupuloso, resolve pôr imediatamente em prática tal estratagema, só
estranhando não se ter lembrado dele, atribuindo o facto à cegueira proveniente
do seu muito amor:
De subtil e sabedor;
E quem fora está do jogo
Enxerga o lanço melhor.”
Segue-se
nova cena secundária, em que Calisto e Feliseu discutem sobre amores e arte de
trovar.
Júpiter
e Mercúrio, já transformados respectivamente em Anfitrião e Sósia, analisam os
últimos pormenores da mistificação. Surge Alcmena que, naturalmente, mal pode
crer nos seus olhos:
O que está no coração?”
Notemos, a propósito, a necessidade de, para maior unidade da peça, o verdadeiro Anfitrião regressar nesse dia – desse modo a acção decorrerá no tempo requerido pelas regras da unidade clássica.
Soy luego cosa ninguna.
Oh! Dioses, que desconcierto!
Yo por ventura soy muerto,
Ó murió me la razón?
Yo no soy de Anfitrión?
El no me mandó del puerto?
Yo sé que no estoy loco.
De mi madre no nací?
No ando? No hablo aquí?»
«Quién seré de aquí adelante
Pues no soy quien de antes era?»
A
perplexidade de Sósia, a perda da sua própria identidade, tornam-se magnífica
fonte de cómico. Observemos que, ao contrário do criado, nunca Anfitrião perde
a consciência da sua personalidade, julgando-se vítima de um engano. Da mesma
forma é cheio de comicidade o diálogo entre um Sósia desvairado por não ser ele,
e Anfitrião, intrigado com a falta de siso do criado.
O
encontro do verdadeiro Anfitrião com Alcmena teria forçosamente que provocar
melindres entre os cônjuges: Anfitrião, porque esperava um acolhimento mais
expansivo da parte de Alcmena, que há tanto tempo não via, e Alcmena porque não
compreendia os exageros do marido, que há poucos momentos a deixara. E ao ser
informado da noite que passara com a sua própria mulher, fica furioso e resolve
ir à nau buscar o patrão Belferrão, como testemunha idónea de que passara a
noite no barco. Mas Alcmena, inocente e cônscia da sua verdade, afirma:
Pouco
depois de Anfitrião se ter retirado, aparece Júpiter/Anfitrião que, com suaves
argumentos consegue abrandar os despeitos da ofendida Alcmena.
Traduzindo
o próprio pensamento céptico camoniano, um Anfitrião desencantado da vida
exprime considerações pessimistas sobre o desconcerto que preside aos bens
deste mundo:
«Quis-nos
nossa natureza
Com
tal condição fazer,Que já temos por certeza
Não haver grande prazer
Sem mistura de tristeza.
É tal e tão rigoroso
Que ninguém antes da morte
Se pode chamar ditoso.
Com esta justa balança
O fado grande, profundo,
Nos refreia a esperança,
Porque ninguém neste mundo
Busque bem-aventurança.
Com tamanho rei vencer,
Venho achar minha mulher
De todo fora de si.
Mas de outra parte que digo?
Que se é verdade o que vi,
E o que ela diz é assi,
Virei a cuidar comigo
Que eu sou fora de mi.
É
no inocente Sósia que surge com Belferrão, que vinga a sua sanha de amo
desatendido e insultado. E quando aparece Júpiter, o próprio Sósia o reconhece
por seu senhor, porque aquele que lhe bate injustamente não pode ser seu amo.
Chegámos
a uma cena capital da peça – a do encontro dos dois Anfitriões. Anfitrião não
perde nunca a consciência da sua identidade, discute acaloradamente, e embora
abandonado por todos, só pensa na vingança:
Que me faz ensandecer,
E não me ajuda a romper
As paredes desta casa!
E porque não tenho eu
Forças, que tudo destrua,
Pois que tanto a salvo seu,
Outro acho que possua
A melhor parte do meu?
Eu irei hoje buscar
Quem me ajude a vir queimar
Toda esta casa sem pena,
Donde veja arder Alcmena
Com quem a vejo enganar…»
«Se
ver desonra tão clara
Me
não tivera o sentidoTotalmente endoudecido,
Que gravemente chorara
Ver tão grande amor perdido!
E quando vejo a verdade
Do nosso amor e amizade
Desfeita com tanta mágoa,
Enchem-se-me os olhos de água
E a alma de saudade.
Que agora, estando presente,
Viva mais saudoso dela,
Que quando dela era ausente…»
O
«Auto de El-Rei Seleuco» é precedido de um anteacto em prosa, para
gáudio dos espectadores, e no qual sobressai a figura do Moço, o “servus”
latino, gracioso de resposta sempre pronta em linguagem vulgar e tosca e
atitude irrespeitosa, com parentesco também no herói pícaro da novela
espanhola.
O
assunto da lenda grega supõe-se que o colheu Camões em Petrarca. Trata-se da
paixão de Antíoco, filho do Rei Seleuco, por Estratónica, sua madrasta. Levado
pelo seu amor de pai, Seleuco cede a mulher ao filho.A análise do sentimento amoroso em Antíoco, que a ninguém quer revelar a causa do seu sofrer, está feita com bastante perspicácia e eloquência. Da mesma forma nos parece a reacção da rainha ao saber do amor do enteado. Confessa à criada ( e confidente) Frolalta que o amava como a um filho – não podemos esquecer que é uma mulher digna, como logo na primeira cena, em, conversa com o marido revelara. Em todo o caso, não suporta a ideia de que Antíoco morra e deseja morrer com ele. Esse seu desejo acaba por traí-la, denunciando a sua paixão pelo enteado:
E
lamenta ter-se casado com Seleuco por interesse:
“Que
não há mor desvario
Que
o forçado casamentoPor alcançar alto assento;
Que enfim todo o senhorio
Está no contentamento.”
Há
alguma inverosimilhança na atitude do rei Seleuco, em face da alternativa malabarística
apresentada pelo médico de ver o filho morrer ou dar-lhe a própria mulher em
casamento. É pobre de emoção, de debate interior, a sua reacção bonacheirona de
ceder a mulher ao filho, desejando festas e alegria, quando pouco antes
elogiara a mulher como causa do seu remoçamento, pelo muito amor que esta lhe
inspirava.
Não
podemos, como paralelo, deixar de referir que, com idêntico tema, compôs Racine
uma tragédia, onde a tirania e a vileza das paixões, fizeram de “Phèdre” uma
obra-prima do teatro de todos os tempos.Mas não se trata esta peça de tragédia e o próprio Mordomo, ou “dono da casa” a apresenta como “Isopete”, isto é, uma farsa com moralidade, à maneira de Esopo, segundo o Autor humorista:
Antes
de se entrar propriamente em acção, expõe-se, em prosa, o argumento do Auto: duas
crianças nascidas de um fidalgo português e de uma princesa dinamarquesa, fugida
de casa com o amado, numa galé que naufraga e donde só ela escapa, acabando por
morrer depois de as dar à luz, foram recolhidas, por um pastor que lhes chamou
Filodemo e Florimena. Aquele acaba por ir para a cidade servir a um D.
Lusidardo que se prova mais tarde ser seu tio, apaixonando-se por sua prima
Dionisa. Florimena fica com o pastor, guardando-lhe o gado. Um filho de D.
Lusidardo, Venadoro, andando à caça, encontra a jovem e dela se enamora, pela
sua beleza e o seu espírito pouco em harmonia com o ambiente em que vive. Não
regressa a casa, e quando o pai o encontra, vê-o transformado em humilde
cabreiro. O reconhecimento da sua alta estirpe é feito pelo pastor que salvara
os dois irmãos, afinal primos dos filhos de D. Lusidardo, pelo que os
respectivos casamentos se tornam possíveis.
A
acção desdobra-se, assim, em dois andamentos: o primeiro em torno do par
Filodemo- Dionisa, o segundo em torno do par Florimena – Venadoro, com cenas
intermédias entre personagens secundárias, ou mesmo em prosa, entre principal
(Filodemo) e secundária (Duriano, seu amigo), sobre a dialéctica de oposição
entre o amor pela passiva (platónico, que se satisfaz na contemplação) e o amor
pela activa (o de Duriano em que “ela há-de ser a paciente e eu agente”).
É, de resto, sobre a análise do sentimento do amor e os seus efeitos que versam
as falas das personagens principais, e mesmo de secundárias, como Solina,
intermediária nos amores da ama Dionisa, espécie de Celestina ou alcoviteira, e
ela própria também interessada por Duriano.
As
manifestações do sentimento do amor em Dionisa parecem-nos das mais completas do
teatro camoniano, lembrando as comédias psicológicas de Marivaux, no séc. XVIII. “Le Jeu de l’Amour et du
Hasard”, por exemplo, versa um tema parecido: dois jovens de posições distintas
que supõem o outro de baixa condição,
porque ambos se vestem de criados, para poderem avaliar melhor o pretendente
(da escolha paterna) e que insensivelmente se enamoram, embora contrariados,
devido ao equívoco, em virtude do espírito que ambos revelam nos seus diálogos.
Dionisa
procura lugares onde possa praticar com a criada sobre o jovem Filodemo que
ama, embora com despeito, por aquele ser seu criado. Exalta-se contra Solina
porque revelou a Filodemo que a ama escutava os seus cantares, assim
denunciando o seu interesse por ele, tal que descera a ouvir a conversa dos
criados. Afirma que receia a indiscrição de Filodemo. Solina, porém,
tranquiliza-a dizendo-lhe:
“Então
vós, gentil donzela,
Folgais
muito de o ouvir?”Tudo quanto me escutais.
Parvo! Que vê-lo não posso!”
Defende-se
com o pai e o irmão que, se viessem a descobrir esses amores
E,
finalmente, manda a criada buscar almofadas para lavrar:
Dar no chão com a fantasia,
Toda noutra transformada!
Outro dia lhe ouvirão
Lançar suspiros a molhos,
E com a imaginação
Cair-lhe a agulha da mão,
E as lágrimas dos olhos!
Ouvir-lhe-eis,
à derradeira,
A
ventura maldizer,Porque a foi fazer mulher.
Então diz que quer ser freira,
E não se sabe entender.
Então gaba-o de discreto
De músico e bem disposto
De bom corpo e de bom rosto.
Quant’a então eu vos prometo
Que não tem dele desgosto.
Amar homem deste jeito;
E que não pode alcançar
Pôr seu desejo em efeito.
Logo se faz tão senhora,
Logo lhe ameaça a vida,
Logo se mostra nessa hora
Muito segura de fora,
E de dentro está sentida.
Quando
regressa com a almofada pedida, a ama revela as suas inquietações e
enfadamentos de mulher prisioneira, a quem não é permitido expandir, como aos
homens, os seus sofrimentos - a condição feminina, não ainda de marginalização
mas de limitação, já perceptível, como, de resto, também o fora na farsa " Inês
Pereira” de Gil Vicente:
Da mulher que vive amando.
Que um homem pode passar
A vida mais ocupado:
Com passear, com caçar,
Com correr, com cavalgar,
Forra parte do cuidado.
Mas
a coitada
Da
mulher sempre encerrada,Que não tem contentamento,
Não tem desenfadamento
Mais que agulha e almofada?”
São todos de Filodemo.
Qual será seu fundamento
Que mil vezes me faz dar
Mil voltas ao pensamento?
Não entendo dele nada.
Mas inda que isto é assi,
Me sinto tão alterada
Que me arreceio de mi.”
“Tudo
isso cuido e vi
Mil
vezes miudamente;Mas estas mostras assi
São desculpas para mi,
E não para toda a gente.”
Também
a paixão lhe faz perder o apetite e o desejo de ver gente:
“Oh!
Quem pudera escusar
De
comer, nem de ver gente!”“Irei, mas não por jantar
Que quem vive descontente
Mantém-se de imaginar.”
À vista se me oferece!
Deusa dos montes parece
E se é certo que é humana,
O monte não na merece.-
Pastora tão delicada,
De gesto tão singular,
Parece-me que em lugar
De perguntar pela estrada
Por mim lhe hei-de perguntar.
Até
qui sempre zombei
De
qualquer outra pessoaQue afeiçoada topei,
Mas agora zombarei
De quem se não afeiçoa.
Serrana,
cuja pintura
Tanto
a alma me moveu,Dizei-me: Por qual ventura
Andareis nesta espessura
Merecendo estar no céu?
Andar na serra parece?
Pois a ventura da gente
Sempre é muito diferente
Da que, ao parecer, merece.
Venadoro:
Tal
resposta é manifestoNão se aprender entre as cabras.
Pois não vos parece honesto
Saberdes matar co gesto
Senão inda com palavras.
Não no creio:
Florimena:
Porque não?Não suprirá natureza
Onde falta criação?
Venadoro:
Já
logo nisso, Senhora,Dizeis, se não sinto mal,
Que do vosso natural
Não era serdes pastora.
À conversação do monte?
Que as cousas duras de crer,
Um as faça, outro as conte.
Venadoro:
Esta
fonte que está aqui,Que sabe do que dizeis?
Porque outra cousa de mim,
Sabei que não sabereis.
De vós agora sabei
O que não tendes sabido:
Se quereis água, bebei;
Se andais, por dita, perdido
Eu vos encaminharei.
Que ninguém me encaminhasse;
Que o caminho que eu queria
Se o eu agora achasse,
Mais perdido me acharia.
Não quero passar daqui
E não vos pareça espanto,
Que em vos vendo me rendi,
Porque quando me perdi,
Não cuidei de ganhar tanto.
Também entende a verdade
Dos enganos da cidade,
Vá-se embora ou fique embora
Qual for mais sua vontade.
Venadoro:
Oh!
Lindíssima donzelaA quem ventura ordena
Que me guie como estrela!
Quereis-me deixar a pena
E levar-me a causa dela?!
E já que vos conjurastes
Vós e Amor para matar-me
Oh! Não deixeis de escutar-me!
Pois a vida me tirastes
Não me tireis o queixar-me!”
Não
nos parece longa a distância que separa esta discreta Florimena, da donzela
espirituosa, feminina, graciosa e rebelde do teatro marivaudesco, dois séculos mais
tarde.
És tu este?
Que julgo que este não sou.
Lusidardo
Certo que me maravilhoDe quem tanto te mudou!
Como estás assi mudado
No rosto e no vestido?
Venadoro
Ando já todo trocado
Tanto que fiquei pasmado
De como fui conhecido.”
“Oh! Solina, minha amiga,
Que todo este coraçãoTenho posto em vossa mão!
Amor me manda que diga
Vergonha me diz que não.
Que farei?
Como me descobrirei?
Porque a tamanho tormento
Mais remédio lhe não sei,
Que entregá-lo ao sofrimento.
Já da vida aborrecido,
Buscando o filho perdido,
Tendo a filha cá perdida!
Sem cuidar, foi a casa encomendar
A quem destruir-lha quer.
Olhai que gentil saber,
Que vai comigo leixar
Quem me não leixa viver.”
E, não resistindo, concerta com a criada um encontro com
Filodemo,
“Para ver
Se é por ventura verdadeO que dizeis que me quer.”
Mas quando aquele lhe aparece, o mesmo embaraço a toma:
Filodemo exprime exaltadamente o seu amor e o desejo de se
sacrificar para lho provar. Dionisa manifesta uns últimos rebates de altivez:
“Nesse deserto apartado
De toda a conversaçãoMerecíeis degradado
Por justiça. Com pregão,
Que dissesse: “Por ousado”.
E eu também merecia
Metida a grave tormento,
Pois que, como não devia,
Vim a dar consentimento
A tão sobeja ousadia.”
Para poder responder.”
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