Do meu livro “Anuário- Memórias Soltas”
transcrevo o texto “Figuras de Papelão”, prova dessa admiração e do repúdio,
nesses anos de 95, por entrevistadores de um exibicionismo de intelectualidade
grosseira, com as suas questões em que a indelicadeza era a pedra de toque para
destruir mitos e aparentemente erguer anões:
“Figuras de papelão”
«Três protagonistas. Uma entrevista
pouco cívica. Um cenário macabro, de figuras de cartão envolvendo-os
circularmente, símbolos hílares e grotescos de sardónicas intenções
desfeiteadoras.
Um gigante enfrentando dois anões:
bem-falantes, escudados nos seus textos, o rosto severo tentando afanosamente
denunciar as irregularidades de um comportamento ambíguo. Truques de uma
sagacidade antiga, bem presentes nas velhas fábulas clássicas. O leão escouceado
à beira da morte pelo próprio burro, o leão impotente ante o mosquito astuto,
a rã inchando a rivalizar com o boi…
Um gigante. Defendendo-se sem
impaciência das críticas perversas e estouvadas, imagem de segurança e
honestidade, cônscio do seu papel de vários anos de um trabalho empenhado, de irrefutável
intenção patriótica: erguer o país do atoleiro, criar estruturas para uma
continuidade possível, fazer obra necessária, embora sempre atropelado pelos
defensores das ideologias fáceis, quando manipuladas na sombra de oposições
palreiras e velhacamente destrutivas.
Um gigante. Num país de muitos anões,
protagonizados no cerco das figuras de papelão de um cenário agressivo,
enxovalhante e lorpa e nos entrevistadores soturnos, de ataque pouco educado e
ingrato, às reais qualidades do entrevistado preferindo sobrepor o sensacionalismo
das acusações ligeiras, em propósito exibicionista de pseudo-agudeza crítica.Sem efeito, contudo.
Porque breve se impunha o magnetismo do gigante, na sua personalidade sóbria, consciente do seu valor e do trabalho feito.
Um gigante. Cavaco Silva.»
Ontem ouvi Cavaco Silva, e juntamente Frederik de Klerk, último presidente
branco da África do Sul. Falaram daqueles tempos da libertação de Mandela, em
que de Klerk teve acção predominante quer na extinção do apartheid quer na
mudança do governo concedido a um natural sul africano negro, e com isso tendo
de enfrentar a oposição dos brancos e as violências desencadeadas. Graças a essa
figura de grande envergadura moral que foi Mandela, a passagem do testemunho
foi conseguida modelarmente, mostrando-se de Klerk um homem de grande coragem e
dimensão moral, e a nação sul africana um país modelo, igualmente, entre as
várias nações de África, entregues a chefes as mais das vezes ambiciosos e sem
escrúpulos.
Nelson
Mandela foi figura de doçura, dos deuses amado, a merecer a explosão das
homenagens e admiração mundiais. Mas admirei, na entrevista, de Klerk e a sua
coragem e dimensão humana. E igualmente Cavaco Silva, que merecera, pouco
antes, os rugidos de parte da assembleia, ao dar-se conhecimento de que aquele,
em tempos, não fora adepto da saída de Mandela da sua prisão. Na sua voz calma,
expôs conceitos e razões, mostrou-se o homem corajoso e altivo, de quem
prossegue na sua linha de firmeza e responsabilidade, indiferente ao clamor,
apesar do desprezo da intelectualidade inerte. Gostei muito da reportagem no
Canal 1.
E
lembrei a linda melodia de Maria Guinot, como retrato desse homem silencioso
mas eficaz, nos altos e baixos de uma actuação profundamente difícil, a que
devíamos ser mais gratos. A canção de Maria Guinot, na solidão como tema, pode
bem retratar a figura de Cavaco Silva, nos escolhos de uma governação penosa, num
mundo de gente que “grita” “em qualquer lugar”:
“Silêncio e tanta gente”
«Às vezes é no meio do silêncioQue descubro o amor em teu olhar
É uma pedra
Ou um grito
Que nasce em qualquer lugar
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal aquilo que sou
Sou um grito
Ou sou uma pedra
De um lugar onde não estou
Às vezes sou também
O tempo que tarda em passar
E aquilo em que ninguém quer acreditar
Às vezes sou também
Um sim alegre
Ou um triste não
E troco a minha vida por um dia de ilusão
E troco a minha vida por um dia de ilusão
Às vezes é no meio do silêncio
Que descubro as palavras por dizer
É uma pedra
Ou um grito
De um amor por acontecer
Às vezes é no meio de tanta gente
Que descubro afinal p'ra onde vou
E esta pedra
E este grito
São a história d'aquilo que sou»
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