Foi George Orwell que, em 1948
publicou o livro «1984», talvez em jogo figurativo – na inversão dos
dois algarismos finais – ou cauteloso – encobrindo uma intenção crítica por uma
sociedade então subjugada a um real conflito entre forças políticas opostas, (de
capitalismo mais ou menos liberal e de comunismo ansioso pelo domínio do mundo)
– ou em jogo de futurologia - pois que a monstruosidade nele retratada de
manipulação dos indivíduos, se já fora tema de obras como “O Processo”, “A
Peste”, “O Estrangeiro”, parece ultrapassar em horror os ambientes
totalitários neles descritos antes ou durante a Segunda Guerra. A total
aniquilação humana que o “Big Brother” impõe no romance de Orwell é pesadelo
que talvez fosse arriscado situar nesse ano de 48, e de expressiva e cautelosa
vidência o situá-lo umas décadas mais tarde.
É claro que a intenção de Vasco
Pulido Valente, ao intitular «1988» o seu artigo do «Público» de 30 de
Novembro, se não se sustenta por nenhuma das motivações da intencionalidade
orwelliana, tanto mais que é de recuo temporal a data, e não de avanço, não
deixa de conter expressiva ironia contra um povo que, injectado em opulência
repentina, lá para esses anos de prodigalidade europeia, fechou olhos a
responsabilidades e cuidou que não mais chegaria a hora de resgatar os
dinheiros emprestados que, se foram usados em efectivos melhoramentos no nosso
país, também foram esbanjados de forma incauta e muitas vezes criminosa,
possibilitando a difusão de uma imediata corrupção, não de estranhar,
infelizmente. A nossa história pátria está conspurcada de actos de
desonestidade e sofreguidão, que tanto favoreceram naufrágios nos tempos das
naus construídas com madeiras não totalmente secas, na ânsia de fabrico
múltiplo e rápido, cujas junturas de tábuas facilmente se despegavam no mar,
como de histórias de estradas citadinas mal alcatroadas, abrindo em fossas
descomunais às primeiras chuvas, mal acabavam de ser construídas. Vi-o muitas
vezes em Moçambique, sei do que falo. Ou os encarregados da construção dos
caminhos de ferro, também por lá, enriquecidos na construção de casas próprias
à custa dos materiais surripiados ao Estado. E por cá, as fortunas recentes que
se geraram, como cogumelos em dia de chuva, com dinheiros europeus, e que já
não há quem as encubra, como se fazia dantes.
Digo, pois, que o defeito vem do
nosso feitio de pouca lisura, talvez porque sempre fomos um povo educado longe
dos princípios de uma cidadania mais igualitária, e em discriminação social que,
se noutros países também sucedeu, em todo o caso uma maior educação impôs a
sujeição a valores de real justiça e disciplina sujeita a regras e punição, pelo
que o artifício manhoso de “as pregar pela calada” não seria tão possível
nesses, onde as regras são obedecidas com mais rigor, numa sociedade educada segundo
essas.
Daí que seja verdadeira a conclusão
de Vasco Pulido Valente de que os partidos “continuam ainda em 1988” na
questão da dívida, funcionando nós como ninhada de bicos abertos virados
indefinidamente para a mãe pássaro que lhes traz o alimento, esquecidos de que
a ninhada cresce e se liberta, segundo as regras da vida e da educação.
O texto de Vasco Pulido Valente adverte-nos,
todavia, não para um novo perigo vermelho mas para o perigo do domínio
germânico que, tantas vezes manifestado ao longo da história, parece querer
impor novamente as suas garras de ferro ou aço – desta vez talvez com o auxílio
dos parceiros nortenhos, cujos climas aguçam as inteligências e esfriam
provavelmente os sentimentos e os conceitos de cortesia, só válidos entre os
próprios, que os outros, segundo Pulido Valente, são “bárbaros da periferia”.
Mas a leitura do texto de Pulido Valente e o conhecimento de que as imposições
de novas leis de trabalho e orçamentos com tantas restrições penalizantes e destruidoras
dos povos em débito não se aplicam ao país credor, levam-nos a crer que as leis
do rigor e da educação com muito nível possuem as suas contingências de
desumanidade unilateral e segregacionista.
É importante ser-se educado e
rigoroso, sim. Mas humano também. E na questão de humanidade e simpatia talvez
pudéssemos dar algumas lições aos povos intelectualmente superiores.
Desleixados, sim, mas com a alegria de viver que nos dá talvez o bom sol. Ou o
bom Deus.
Eis o texto de Vasco Pulido Valente:
«1988»
«A EU foi desde o princípio uma ideia
utópica, que só podia levar a uma catástrofe. Nascida durante a “guerra fria”,
tinha por força de ser democrática, na forma e na retórica. Mas nunca deixou de
estar sob o domínio do poder dos grandes países que a tutelavam e da burocracia
de Bruxelas que os servia.
O cidadão da Europa, que tinha um
Parlamento para disfarçar, não pesava na política que a França e a Alemanha
decidiam a favor do seu interesse nacional e dos seus protegidos. A famosa
“solidariedade” que hoje se mendiga sempre se limitou a uma espécie de esmola
para garantir a obediência e o sossego dos bárbaros da periferia. Havia em
certos meios a ilusão de que eles seriam eventualmente educáveis sob a direcção
do Norte civilizado. Hoje já toda a gente decidiu que a tentativa falhou.
Infelizmente, o colapso da União
Soviética e a efectiva transferência das forças militares da América para
outros teatros ressuscitaram o medo atávico da Alemanha, que a partir de 1870
dominou a França. E para evitar a repetição da I Guerra e das cenas de 1940,
Mitterrand resolveu exigir o euro, que teoricamente evitaria uma nova hegemonia
de Berlim. Mal preparado e mal pensado, o euro levou em pouco tempo ao
resultado contrário: ao empobrecimento dos países mais fracos, da própria
França ao nosso pindérico Portugal, e estabeleceu a Alemanha como a única
potência económica e financeira da região – o que não deixa de a consolar e
satisfazer e a conduziu a um isolamento pacato e certamente feliz que não quer
ver perturbado pelas raças inferiores do Sul e os seus sarilhos.
O acordo entre os socialistas do SPD
e as tropas de Merkel revela bem o estado da Alemanha em 2013. O SPD conseguiu
alguns limitados gestos a benefício da
populaça mais pobre. Merkel conseguiu que
não se mexesse no resto, nomeadamente na política europeia: nada de
dívidas soberanas, nada de défices para esconder a miséria de cada um e,
principalmente, nada de eurobonds para obrigar o contribuinte alemão a pagar a
irresponsabilidade e a incúria de estranhos. O contribuinte alemão usará as poupanças
para viver bem, embora modestamente, e para se passear no verão por climas
quentes, como de resto inteiramente merece. Do que Merkel mais gosta na
Alemanha são janelas bem calafetadas. Chegou agora a altura de calafetar a
Alemanha. Por aqui, nem a esquerda nem a direita falam disso. Continuam ainda
em 1988.
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