quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A importância de se chamar… educado


Foi George Orwell que, em 1948 publicou o livro «1984», talvez em jogo figurativo – na inversão dos dois algarismos finais – ou cauteloso – encobrindo uma intenção crítica por uma sociedade então subjugada a um real conflito entre forças políticas opostas, (de capitalismo mais ou menos liberal e de comunismo ansioso pelo domínio do mundo) – ou em jogo de futurologia - pois que a monstruosidade nele retratada de manipulação dos indivíduos, se já fora tema de obras como “O Processo”, “A Peste”, “O Estrangeiro”, parece ultrapassar em horror os ambientes totalitários neles descritos antes ou durante a Segunda Guerra. A total aniquilação humana que o “Big Brother” impõe no romance de Orwell é pesadelo que talvez fosse arriscado situar nesse ano de 48, e de expressiva e cautelosa vidência o situá-lo umas décadas mais tarde.

É claro que a intenção de Vasco Pulido Valente, ao intitular «1988» o seu artigo do «Público» de 30 de Novembro, se não se sustenta por nenhuma das motivações da intencionalidade orwelliana, tanto mais que é de recuo temporal a data, e não de avanço, não deixa de conter expressiva ironia contra um povo que, injectado em opulência repentina, lá para esses anos de prodigalidade europeia, fechou olhos a responsabilidades e cuidou que não mais chegaria a hora de resgatar os dinheiros emprestados que, se foram usados em efectivos melhoramentos no nosso país, também foram esbanjados de forma incauta e muitas vezes criminosa, possibilitando a difusão de uma imediata corrupção, não de estranhar, infelizmente. A nossa história pátria está conspurcada de actos de desonestidade e sofreguidão, que tanto favoreceram naufrágios nos tempos das naus construídas com madeiras não totalmente secas, na ânsia de fabrico múltiplo e rápido, cujas junturas de tábuas facilmente se despegavam no mar, como de histórias de estradas citadinas mal alcatroadas, abrindo em fossas descomunais às primeiras chuvas, mal acabavam de ser construídas. Vi-o muitas vezes em Moçambique, sei do que falo. Ou os encarregados da construção dos caminhos de ferro, também por lá, enriquecidos na construção de casas próprias à custa dos materiais surripiados ao Estado. E por cá, as fortunas recentes que se geraram, como cogumelos em dia de chuva, com dinheiros europeus, e que já não há quem as encubra, como se fazia dantes.

Digo, pois, que o defeito vem do nosso feitio de pouca lisura, talvez porque sempre fomos um povo educado longe dos princípios de uma cidadania mais igualitária, e em discriminação social que, se noutros países também sucedeu, em todo o caso uma maior educação impôs a sujeição a valores de real justiça e disciplina sujeita a regras e punição, pelo que o artifício manhoso de “as pregar pela calada” não seria tão possível nesses, onde as regras são obedecidas com mais rigor, numa sociedade educada segundo essas.

Daí que seja verdadeira a conclusão de Vasco Pulido Valente de que os partidos “continuam ainda em 1988” na questão da dívida, funcionando nós como ninhada de bicos abertos virados indefinidamente para a mãe pássaro que lhes traz o alimento, esquecidos de que a ninhada cresce e se liberta, segundo as regras da vida e da educação.

O texto de Vasco Pulido Valente adverte-nos, todavia, não para um novo perigo vermelho mas para o perigo do domínio germânico que, tantas vezes manifestado ao longo da história, parece querer impor novamente as suas garras de ferro ou aço – desta vez talvez com o auxílio dos parceiros nortenhos, cujos climas aguçam as inteligências e esfriam provavelmente os sentimentos e os conceitos de cortesia, só válidos entre os próprios, que os outros, segundo Pulido Valente, são “bárbaros da periferia”. Mas a leitura do texto de Pulido Valente e o conhecimento de que as imposições de novas leis de trabalho e orçamentos com tantas restrições penalizantes e destruidoras dos povos em débito não se aplicam ao país credor, levam-nos a crer que as leis do rigor e da educação com muito nível possuem as suas contingências de desumanidade unilateral e segregacionista.

É importante ser-se educado e rigoroso, sim. Mas humano também. E na questão de humanidade e simpatia talvez pudéssemos dar algumas lições aos povos intelectualmente superiores. Desleixados, sim, mas com a alegria de viver que nos dá talvez o bom sol. Ou o bom Deus.

Eis o texto de Vasco Pulido Valente:

«1988»

«A EU foi desde o princípio uma ideia utópica, que só podia levar a uma catástrofe. Nascida durante a “guerra fria”, tinha por força de ser democrática, na forma e na retórica. Mas nunca deixou de estar sob o domínio do poder dos grandes países que a tutelavam e da burocracia de Bruxelas que os servia.

O cidadão da Europa, que tinha um Parlamento para disfarçar, não pesava na política que a França e a Alemanha decidiam a favor do seu interesse nacional e dos seus protegidos. A famosa “solidariedade” que hoje se mendiga sempre se limitou a uma espécie de esmola para garantir a obediência e o sossego dos bárbaros da periferia. Havia em certos meios a ilusão de que eles seriam eventualmente educáveis sob a direcção do Norte civilizado. Hoje já toda a gente decidiu que a tentativa falhou.

Infelizmente, o colapso da União Soviética e a efectiva transferência das forças militares da América para outros teatros ressuscitaram o medo atávico da Alemanha, que a partir de 1870 dominou a França. E para evitar a repetição da I Guerra e das cenas de 1940, Mitterrand resolveu exigir o euro, que teoricamente evitaria uma nova hegemonia de Berlim. Mal preparado e mal pensado, o euro levou em pouco tempo ao resultado contrário: ao empobrecimento dos países mais fracos, da própria França ao nosso pindérico Portugal, e estabeleceu a Alemanha como a única potência económica e financeira da região – o que não deixa de a consolar e satisfazer e a conduziu a um isolamento pacato e certamente feliz que não quer ver perturbado pelas raças inferiores do Sul e os seus sarilhos.

O acordo entre os socialistas do SPD e as tropas de Merkel revela bem o estado da Alemanha em 2013. O SPD conseguiu alguns limitados  gestos a benefício da populaça mais pobre. Merkel conseguiu que  não se mexesse no resto, nomeadamente na política europeia: nada de dívidas soberanas, nada de défices para esconder a miséria de cada um e, principalmente, nada de eurobonds para obrigar o contribuinte alemão a pagar a irresponsabilidade e a incúria de estranhos. O contribuinte alemão usará as poupanças para viver bem, embora modestamente, e para se passear no verão por climas quentes, como de resto inteiramente merece. Do que Merkel mais gosta na Alemanha são janelas bem calafetadas. Chegou agora a altura de calafetar a Alemanha. Por aqui, nem a esquerda nem a direita falam disso. Continuam ainda em 1988.

 

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